terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Direito à alegria

Mas confesso ter certas dificuldades com o “porque sim”. Não com o conceito de amor gratuito – pois me parece líquido e claro que se deva polvilhar amor sem miséria –, e sim com a prodigalidade em se autoconceder alegrias. Tipo: a gente compra um colar espetacularmente divino e já sai com ele da loja, como se não houvesse (festa) amanhã. Um amigo traz de mimo um champanhe de safra translumbrante e a gente estoura ali mesmo, no mais pleno domingo comum. O parceiro convida a uma fuga para as montanhas no finde, bem longe do níver, só para celebrar o casamento em sua mera existência. A blusinha preferida, que supostamente só poderia ver luz em dias santos e feriados, é vestida quinze vezes por semana e ameaça falecer em combate. São fartas despesas de alegria que eu docemente invejo: quem me dera economizar menos delas para o túmulo.

Não que eu seja uma carmelita descalça. Embora sem exageros, me dou um ou outro acessório quando a paixão é fulminante, e tenho uma ficha corrida na Estante Virtual de humilhar perseguido da Interpol. Também já escrevi por aqui que todo dia necessito de sobremesa mental, ou seja, a perspectiva de alguma delícia que possa a-vida-é-belezar as horas comuns: um sabor, um cinema, um capítulo inédito da série, uma experiência inusitada. Ainda assim, a fome da spoonful of sugar diária não me impede de viver culpada e avarenta. Não sei se é aquela porcentagem de TOC que todos escondem, não sei se é herança de algum antepassado que passou perrengue e estocava suprimentos; só sei que nasci com a detestável tendência do acúmulo – não de dinheiro (ou não seria professora), mas de chances e belezas. Raramente “desperdiço” bênçãos em ocasiões feijão-com-arroz. Guardo felicidades em conserva. Deixo algumas envelhecerem na adega um, dois, vinte anos.

Trago um adereço de viagem e faço a maior cerimônia para usá-lo a primeira vez: pode quebrar, arrebentar, soltar tinta, então que pelo menos tenha seu esplendor numa formatura, num Valentine’s Day, num passeio superúnico, numa reunião maior de família – num evento memorável o suficiente para poetizar até um possível estrago no objeto querido. Encomendo livro de um autor predileto e mantenho o negócio dando traça no armário, enquanto emendo uma leitura menos suculenta na outra. Descubro que tal blusa e tal saia fazem uma combinação muito, muito perfeita – tão perfeita que preservo religiosamente a dupla para os dias de mais gente vendo, de mais foto rolando. E não tem nadíssima a ver com cifrões: não compro nem tenho acesso a luxos. O que conta, o que gera ciúme e proteção daquela pequena alegria, é a raridade do encontro, do afeto embutido. É a impossibilidade de achar um semelhante. É a cor que calha, a simbologia de quem deu, o conforto que traz, o medo de em outra situação precisar e não ter, o pânico do arrependimento, o pavor da saudade. Sim, tenho pavor da saudade que sente quem abre sua garrafa de glórias sem saber se é a hora certa.

Sou doida, claro, e por me saber doida é que vou fazendo um exercício de desencanation e de libertação do ritual. Rituais são fronteiras importantes e ajudam a memória, mas tão casmurros podem se tornar que acabamos parados na alfândega. Free o direito à alegria, abaixo a burocracia: menos papelada a ser preenchida para nomear ocasiões especiais, menos carimbos de datas e números, menos selo-rótulo-registro se quiser voar. Para comemorar a lua, a taxa não é alta; festejar o sol não pede identidade: pode-se usar lingerie novinha sob a roupa do trabalho, sair para dançar em qualquer terça-feira, comprar flores frescas sem haver visita, desfilar de salto alto dentro de casa (não desfilo nem fora, mas tem quem curta), brincar de arborismo num sábado de agosto. Significados são coisa nossa, e onde criamos uns podemos inventar novos. Por que não plantar urgência em celebrar o aniversário de José de Alencar, a aprovação da prima em oitavo grau no Enem, o Dia Mundial do Mágico (que, aliás, é hoje; partiu?), o fato de ter amanhecido às 5h51, os dez anos da peça de escola em que o filho se vestiu de curumim?

Só é preciso o nosso apetite dando sim, sim, sim, sim.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Porque sim

Quando a gente está quase demitindo a humanidade por justa causa, corre a notícia de que um ator de 31 anos (não sei se americano) levou para morar em seu apê a vizinha de 89, já que ela, diagnosticada com leucemia, iria precisar de cuidados permanentes em casa, mas não tinha grana para manter uma enfermeira. Chris Salvatore – o ator – partilhava vizinhanças e amizades com Norma Cook – a senhorinha – havia quatro anos, e se arrepiou com a possibilidade de sua parça ir parar num asilo: “Eu simplesmente não poderia fazer isso com alguém que é como minha própria avó”. O fofo abriu crowdfunding, arrecadou verba, carregou Norma para o novo lar, cuida da amiga várias horas por dia, usa o fruto da vaquinha para pagar enfermeira quando ele não está e, num cúmulo de lindeza, pretende doar o restante do dinheiro a pessoas igualmente precisadas, depois que a sra. Cook virar uma lembrança querida. Não que ela tenha pressa: havia pouquíssima chance de Norma sobreviver a dezembro, e aí está ela embalada para fevereiro – and counting. Provavelmente sustentada por essa coluna de amor espontâneo que arrebentou as chances e as estatísticas, e agora está matando a gente de ternura aguda.

Não há idioma suficiente para me declarar encantada. Chris Salvatore (vou nem comentar um nome tão simbólico) não está ligado a Norma Cook por sangue, sobrenome, herança, obrigação ou promessa; não é seu neto, não é seu cuidador, não só não ganha para adoçar a vida da amiga como sequer usou a desculpa – real – do capital limitado. Chris agiu pela mesma razão coerentíssima que o lindo professor Keating apresentou, em Sociedade dos poetas mortos, para o fato de fazermos poesia: porque somos humanos. Ora, por que acolher uma vizinha doente terminal, idosa, sem ter tempo, dólar ou espaço sobrando? Porque se é humano, ué. Que pergunta. Por que o relógio fica o dia inteiro ponteirizando, por que o cozinheiro tempera os pratos, por que a impressora solta folhas cheias de letrinhas, por que a girafa estende o pescoço e arranca o almoço da árvore com serenidade elegante? Porque é o lógico, é o instintivo, porque sim. Fomos feitos assim; nossas especificações de fábrica o exigem e nos impelem. A não ser, é claro, que os defeitos das peças nos traiam ou que algo no ambiente nos quebre por mau uso.

Em nossa plenitude, em nossa glória de humanos, exercemos a incondicionalidade – porque só ela põe em exercício tudo quanto temos de habilidade e músculo. Os humanos que são íntimos de seu potencial não precisam exibi-lo a fim de validá-lo: são-se, e pronto. Cristalinamente. Segundas intenções são para fracos e inseguros; humanos profissionais devolvem a carteira intacta, não sossegam até achar os pais da criança extraviada, deixam um bolo para o porteiro, doam sangue antes do serviço, se metem na discussão para defender a vítima de preconceito, votam pelos direitos de uma classe economicamente inferior à sua, mandam gérberas só para enfeitar a sala, fazem leitura voluntária. Não há preço em reais, objetivo prático, lucro em qualquer prazo, aumento, promoção, lobby, incremento de popularidade, bateção de metas; existe, em jogo, apenas o não jogo, a não disputa, a total descompetição, o mais limpo e entregue interesse pelo que interessa ao outro. Dar conforto aos companheiros de espécie é nosso jeito melhor de proteger a ninhada e tornar viável a travessia.

A humanidade vacila; mas, quando dá certo, dá MUITO certo e é o porque sim encarnado. Somos daquele estranhíssimo grupo animal em que o coração só bate de verdade quando está fora de si mesmo. 

domingo, 29 de janeiro de 2017

Ilusão de ótica

Acho no mínimo hilário quando qualquer mente generosa manifesta sua esperança em igualdade e dignidade, aí vem outro ser com ar de PhD em mundologia aplicada e decreta: “Ah! Você está muito iludida(o), querida(o). Isso nunca vai acontecer, é uma utopia cor-de-rosa, tem sido do jeito que é desde o início dos tempos, desde a descoberta do fogo”. Quanto a vocês não sei, mas a mim parece absolutamente estapafúrdio que haja um certo consenso sobre como as coisas deveriam ser (todos com casa e acolhida, alimento e família, medicina e roupa lavada), uma geral concordância a respeito do básico que se deveria ter, uma Declaração Universal dos Direitos Humanos louvada e replicada em verso e prosa – e mesmo assim se considere ilusão tudo que aponta para o coletivamente aceito, enquanto a “dura realidade” dos experientes seria composta pelo exato erro que nos repugna. Me internem se for o caso, me avisem se perdi o bonde, mas antes recapitulemos juntos: o correto, apesar de 90% do planeta admitirem publicamente que é o correto, não passa de fantasia, e especificamente o que esses 90% classificam como ruim/tosco/injusto/indesejável formam a parte prática e efetiva de nossa existência – confere, produção? Ah, tá, era só para confirmar que não sou a única insana in tha house.

Andamos, de fato, terrivelmente iludidos; mas por excesso de utopia é que não é. Andamos iludidos com a ideia de que um sistema que faz muito mais escravos do que faraós possa se sustentar para sempre. Andamos desvairados pela crença de que um mundo que tende a produzir mais mulheres do que homens (somos mais resistentes à dor, precisamos de menos comida, nos viramos melhor, nos cuidamos mais, vivemos mais) vai concordar em permanecer ad aeternum na mão dos machistas. Andamos falsamente persuadidos de que bilhões de Homo sapiens cada vez mais aperfeiçoados vão achar sempre normalíssimo matar alguém a pauladas por não se gostar de sua cor, credo ou vida amorosa. Andamos – para mostrar que somos sabiamente amargos na medida certa – orgulhosos da impressão de que iremos emendar um apocalipse no outro, como se não soubéssemos que a ciência já conseguiu reverter extinções, erradicar doenças, fazer carros voarem e mais um trilhão de belezas impossíveis há cem anos. Andamos doidos, sei lá por quê, para provar que seremos idiotas permanentes, carrascos inevitáveis, agressores, exploradores, torturadores, racistas e misóginos, negando as evidências de nossa própria evolução.

Não há lógica em esperar o pior de nós: fomos projetados para crescer como espécie, curar, inventar, criar estratégias. O fato de alguns terem estacionado mentalmente em 1270 não impede os demais de seguirem seu 2017 compulsório, progredindo com recém-descobertas consciências, tecnologias e informações; não impede sequer uma ou outra cabeça iluminada de já frequentar os insights de 7210. Na média, pois, estamos bem – e os incrédulos que catem propagandas nojentamente preconceituosas de décadas atrás e comprovem que seguimos, sim, sempre adiante, embora dez passinhos à frente venham às vezes com um de recuo. Só não se pode crer que, contra a nossa mais estomacal natureza, retrocedemos; não se pode defender que o destino da caminhada seja lenda e os pântanos de onde viemos, a meta. Não se pode supor que, eternamente, os mais numerosos se deixarão espezinhar para cobrir oito ou nove de luxo. Não se pode raciocinar que o ilusório seja a vontade de milhões – e que o pé-no-chão seja o capricho de dois ou três meninos mimados. Fosse assim, estaria ainda a monarquia em plena posse do mundo. Mas impérios não duram. Potestades humanas tropeçam. O futuro é espontaneamente igualitário e republicano.

Da próxima vez que alguém o chamar de sonhador, pode inflar: sou mesmo. É voando que melhor se nivelam as mesquinharias do chão e se enxerga o todo. 

sábado, 28 de janeiro de 2017

Pareço legal

Pareço legal, mas até hoje zoneio a ordem das estrofes de Hey Jude. Pareço legal, mas azul nunca foi minha cor favorita. Pareço legal, mas jamais assisti a um Jaspion sequerzinho. Jamais fui à rua de havaianas – nem de roupa do Bicho Comeu – nem de bicicleta sem rodinha – nem com cartão de crédito. Dobro a pontinha da página para marcar a pausa na leitura. Adoro bicho, mas não me comprometo a cuidar nem de samambaia. Odeio faxina. Odeio cerveja. Odeio camarão. Não chorei em Sempre ao seu lado.

Pareço legal, mas não teve jeito de eu aprender a assobiar. Não tem santo que me faça curtir esporte. Não tem mártir dermatologista que me dê serenidade para usar protetor solar. Não houve modo de eu guardar para sempre aqueles climas, afluentes, bandeiras, capitais. Não furei a orelha, não aprendi maquiagem, não me capacitei no salto, não tirei os óculos no casamento. Não gosto de Macunaíma. Não consigo distinguir banda estrangeira (os Beatles sim, né, gente – só não me peçam para cantar Hey Jude; prometo nada). Não diferencio um carro do outro. Não colei nenhum cartaz de artista na parede do quarto. Não tenho paciência para calça comprida.

Pareço legal, mas era louca por Pollyanna e Pollyanna moça. Pareço legal, mas acho 2001uma odisseia no espaço bem cacete. Dormi na primeira vez que tentei ver Poltergeist (em casa, em casa! Minha religião lasca oitocentas e quarenta chibatadas em quem dorme no cinema). Ainda não patinei no gelo. Nem fora do gelo. Era apaixonada pelo mais jovem e frágil Cavaleiro do Zodíaco. Sou apaixonada pelo Loki. Me distraio com programas de psicopata – sobre, e não para psicopatas – no Investigation Discovery. Dispenso pipoca doce. Dispenso pizza calabresa. Metia atestado de asma para não fazer educação física.

Pareço legal – mas deixe comigo seu filho bochechudo e eu o massacro de fofura. Dê-me um pedaço de panetone e eu farei bolinha com a massa. Peça que eu coma com hashis e eu me desculparei pesarosa, mas continuarei feliz a refeição com os metais do ocidente. Não tente me converter ao WhatsApp. Não aguarde que eu vença a preguiça de Game of thrones. Não ofereça um tiquinho do prato se não lida bem com a ideia de eu aceitar. Não converse enquanto eu escrevo. Não converse enquanto eu leio. Se eu estiver em-mimesmadamente de boas, não converse. 

Principalmente: não converse se eu estiver vendo Criminal minds e você tem apego à existência. Pareço e sou legal – mas nunca se sabe.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Vendedores de nada

OK, admito que não entendo chonguinhas de bolsa de valores e mercado financeiro. Mas me corrijam se eu estiver errada: o que sustenta nosso fagueiro sistema capitalista tem sido, há décadas e já séculos, a perversão inacreditável de negociar abstrações. Há uma ideia, um conceito, uma aposta, uma esperança, com base numa também abstrata tendência, numa possível necessidade; em torno desse ectoplasma se briga, se discute, se especula, criam-se e vendem-se ações (nome sarcástico de algo tão fantasmagoricamente passivo, que melhor se chamaria de factoides). Esses pedacinhos de nuvem, esses lotes de paraíso comprados na planta murcham ou embalofam de prestígio conforme a TPM do mercado, o boato que alguém sibilou na piscina do hotel, o espirro do presidente, a ameaça surda e pairante de ataque terrorista. Ao fim e ao cabo, um bolhão maior de mistificações termina estourando, tsunamizando a vida dos menores, regando a horta e enchendo o açude dos maiores – uns vão pro topo da Forbes, outros vão pra baixo da ponte: segue o lance. That’s life.

That’s life o caramba.

Tá que esse resumo é de um simplismo ridículo, mas nisso estamos quites, planeta: tens complicado demais, dificultado demais o que era simples, seu pulha. O que era simples? Quem produz o que é material – vende: planta alface, tira petróleo, dá aula de dança, abre um sebo, faz artesanato, desenvolve um software, monta uma carrocinha de cachorro-quente. Colhe, cria, ensina, desenha, costura, troca, orienta, treina, constrói. (Já acaba não sendo justo, porque nem todo mundo tem a mesma chance e o mesmo começo; mas aí é buraco de mais para cavar numa assentada.) Assistir ao ótimo e cruel A grande aposta, entretanto – que quase abocanhou o Oscar ano passado –, soca em nosso estômago a realidade de irrealidades: ganha-se dinheiro forte vendendo absolutamente nada. Só fumos de uma loteria imaginária. Só brisas de uma sacada mental. Rien de rien.

Gente de verdadinha, carne-osso-nervos, passa uma fome bem denotativa porque uma seca BEM palpável lhe arrasou o plantio, enquanto um Mister Fullanon toma café da manhã com espumante porque acertou em prever que muita gente de verdadinha perderia suas casas. Gente com cabeça-tronco-membros não consegue financiamento para seu ateliezinho de vestidos de noiva, enquanto um conglomerado já bilionário de manipulações despeja seu dote em outro conglomerado já trilionário de outras tantas, em feliz união, até que a morte de inúmeros pequenos negócios mais os una. Gente feito sua mãe ou seu filho foi arrancada do prédio abandonado há 28 anos, enquanto há 28 anos a construtora está com o megablasterprojeto congelado, após ter vendido aos clientes a fantasia colorida do éden. “O mundo é complexo”, argumentam com seriedade as gravatas da velha dinastia, “há regras, há normas, há uma organização”. Beleza; mas o legal não é necessariamente o moral (por sinal, que fácil seguir as regras que nós mesmos fazemos ou compramos!), e, da última vez que olhei, as leis é que tinham sido feitas para o homem – não o contrário. Também fica um pouco constrangedor falar sobre legalidade/moralidade depois que soubemos: tem oito caras com a posse de metade da Terra, e tá supercool para o restante de nós. Há regras. Há normas. Os que apostaram no cavalinho mais adequado têm prioridade.

E eu tenho o palpite do milênio: cem contra um que este mundo já não está dando certo. 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Ao ponto

Sou do time dos congelados (caseiros, bem entendido) e só cozinho quando falta qualquer alternativa – não por detestar a tarefa, mas simplesmente por não me dispor a perder tempo com ela. Tem gente que manda bem no fogão e quer vender, eu não tenho paciência de quituteira e topo comprar: eis o equilíbrio do mundo. Pelos mesmos motivos de desinteresse, nunca fui fã de programa algum de culinária. Pra que recolher receitas e dicas, se honestamente não vou meter a mão na massa – e o pior: se vou ficar aguadinha no sofá, sem acesso aos acepipes da tela? Eu, hein. Ofélia, Oliver, Olivier, Rodrigo, Palmirinha (e suas fabulosas bochechas) que me desculpem, mas bandeja de prova é fundamental.

A exceção se abriu quando o Fábio começou espiando o MasterChef brasileiro, enganchou de ir vendo, ir vendo e finalmente se viciou. Euzita – que já ouvia o povo comentando e tinha, pela atração, a mesma nenhuma inclinação que pelas similares – fui chegando do trabalho, estava ali passando, nós convivendo, coisa e tal, até que cedi o coração improvavelmente. MasterChef Brasil é um encanto; mui principalmente pelo molho fofíssimo que deu liga entre os jurados, salpicado do açúcar afetuoso com que Ana Paula Padrão conduz os eventos. Que lindamente brasileiro o fato de apenas um dos membros do júri – chef Henrique Fogaça, o maior metaleiro de pelúcia que você respeita – ter nascido em nosso chão! Que majestade na presença da chef argentina Paola Carosella, absoluta em cada conselho, queridona em cada aula, phyna e dyvah até comendo ostra! Que diversão à parte no sotaque legendado de Érick Jacquin, em sua gula gaiata, em seu tradicional biquinho francês resmungando a sobra ou a ausência de tompero!

São esses quatro amadíssimos e um quinto ingrediente especial: a manifestação estrepitosa (e às vezes desastrada) de criatividade. Em outros shows gastronômicos, o normal é haver foco numa só bancada ou duas, num só cozinheiro profissa ou dois, e muito papo de parça que se encontra esporadicamente, muita risada, muita mise-en-scéne. Particularmente, odeio ver papo de parça e mise-en-scéne. É pacumê ou pacunversá? No MasterChef, é pacuzinhá em ritmo pauleira, sem blablablá nem mimimi. E são váááárias bancadas, vááááárias ideias simultâneas, diversos planos bês e zês, inúmeros truques de desespero, dúzias de malabarismos que acabam dando certo, pencas de reaproveitamentos que dão errado – mas acendem na gente a lampadazinha de novos caminhos –, montes de delícias que ao mesmo tempo brotam do talo, da palha, do resto, da casca, do caroço. Os participantes viram bagaço e flecha, se viram nos trinta-ou-poucos-mais minutos para entregar e entregam: a gororoba que sair, mas entregam. E nós descobrimos fascinados que, do improviso e da pressa humana, da máxima objetividade do talento, explodem pequenos big bangs entre sabores que nunca se esbarrariam em sã consciência (como me apetece a beleza improvável!). Descobrimos também que nem tudo rola by the book, porque muito da receita não está em qualquer book; está na finíssima alquimia do furinho prévio na casca do ovo, do tompero colocado na frigideira e não na comida, do segundo ínfimo entre o creme e o purê, entre o caldo lisinho e o embolotado. O segredo está nas manhas, nas tentativas e nas margens – nas anotações off the record de um Príncipe Mestiço. 

Fica, aliás, a dica amiga: MasterChef é que nem supermercado; só se deve frequentar de barriguita cheia, menos vulnerável a chamados e seduções. Caso contrário, mano, prepara – que a sua dieta vai sentar na graxa.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

O contrário de amor

Nosso primeiro salto é dizer – ódio! –, e está bem certo: o amor bota vida no que toca, o ódio é um trator universal que derruba, atira, estupra, persegue, esfaqueia. Outros de nós afirmarão que o oposto do amor é a indiferença, e estão igualmente corretíssimos: o amor se derrama em interesse perpétuo, a indiferença dá de ombros e passa ao largo, concordando que tantos morram de suas várias fomes. Outros ainda vão soprar que o reverso de amor é paixão, e eu novamente assino cem por cento embaixo: o amor é a alegria de doar encarnada, a paixão é a desesperada sede de tomar. E se garantirem que o contrário de amor é guerra, ou morte, ou preconceito, serei obrigada a chamar aplausos: sim, precisamente. Tudo que arrebenta, picota e destrói, tudo que permite arrebentar, picotar e destruir, é o oposto específico do amor.

O contrário de amor é tudo que não é amor.

Funciona assim porque o amor não se detém no que é romântico ou materno: o amor é arca de Noé, o amor é time, o amor é hemisfério. Está-se dentro ou fora, no abrigo ou no dilúvio, numa metade ou noutra. O amor é casa sem varanda, sem meio-termo entre o interior e a rua; mora-se nele ou se dorme à margem. O que entra nas chamas para salvar quem quer que haja para ser salvo, o que cede um rim tanto ao filho como ao transeunte, o que pede respeito ao discurso do partidário e ao do rival, o que não celebra fuzilamento nem de terrorista, o que não transige com nenhuma forma de barbárie, o que adota sem condições (inclusive seus herdeiros de sangue), o que zela pelo de todos como pelo particular, o que sorri sem barganha, o que escuta sem afoiteza, o que reserva o berro só para a montanha-russa – esses moram inquestionáveis sob o guarda-chuvaço do amor, a redoma que acolhe a vida em todas as vertentes. E há os que observam do outro polo: os que grunhem bom-dia sem desejá-lo, os que encobrem o crime do neto mas acham que pivete tem que morrer mesmo, os que põem na gangorra o seu bem e o mal do outro, os que promovem qualquer dano a uma obra de arte, os que jogam a natureza no esgoto e vice-versa, os que sob algum pretexto se consideram melhores, os que com alguma quantia encomendam as leis. Quem quer que use de boa vontade seletiva, de gentileza bipolar, de olhar com raio humilhador, de sarcasmo como espada, de dever como escudo, de saliva como ácido, de dinheiro como fuzil – pode até ser o orgulho fazendo cosplay de valentia, pode até ser o vampirismo travestido de amizade, pode até ser a manipulação metida em roupa de afeto, mas amor não é. Não está no amor. Não roça pelo amor.

That radical? That radical. “Ah, mas assim não sobra ninguém” – nem prometi que sobraria, ou que sobrariam muitas partes aproveitáveis de nós mesmos. Os que ainda não somos o amor, mas que o olhamos com empenho sincero, ao menos saibamos que não existe o pouco ou o quase nessa meta, não existe segundo lugar no pódio: quem necessita não necessita de meio sorriso, de um quarto de paciência, de 37% de honestidade. Se queremos tudo inteiro, que nos deixemos colher também inteiros. Amor tem tantos antônimos porque é a integridade itself: tudo que dele minimamente se afasta já o trai. Tudo que não o é – já é seu inimigo e seu extremo. Tudo que o atrapalha joga com a outra camisa e pretende fazer gol na rede adversária. 

Já pertence ao amor quem não o estorva e se alinha à equipe a seu serviço, anotando os pedidos, preenchendo os vazios. Se não formos os iluminados que o preparam e temperam, pelo menos ajudemos a levá-lo quente de mesa em mesa.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Um brinde aos corações que sofrem

Quem já assistiu ao doce La la land vai reconhecer, aqui no título, um dos versos cantados pela protagonista Mia em seu teste de elenco mais importante. A música da audição, fofa e melancólica, é a completa celebração da arte: um viva aos tolos que sonham, aos malucos-beleza que se entregam, aos que amam a ponto de esfacelar-se, aos que nadam no Sena mesmo à custa de alguns espirros. Sobretudo, comoveu-me esse brinde aos corações que se partem – não porque seja bonito e necessário sofrer, muito menos porque haja qualquer alegria em festejar a dor alheia, mas apenas porque a canção sugere, carinhosamente, que os capazes de se deixar fragilizar são os que mais íntimos estão de sua própria humanidade.

Um brinde, então, aos que se sentem fracassados em conviver com o mundo, por não compreenderem que um grama de papel possa valer mais que oitenta quilos de pessoa. Um brinde aos que dissolvem por dentro toda vez que passa reportagem falando de quem perdeu tudo na enchente. Um brinde aos que morrem da mesma flecha que dispara preconceito no vizinho. Um brinde aos que não digerem a ofensa a eles não dirigida, aos que ficam órfãos do filho de outros pais, aos que gemem sob o fardo de outro povo, aos que gritam da injustiça a outra vítima. Um brinde aos que lançam fora o escudo e se permitem crivar das tragédias que não são suas.

Saúde aos tão desencouraçados que sucumbem ao primeiro baque das próprias tragédias. Saúde aos frágeis e pequenos, aos suscetíveis e permeáveis, aos impressionáveis pela inocência, aos escandalizáveis pela pureza, aos transparentes como fada, aos etéreos, aos poetas, aos delicados. Saúde aos que se chocam, aos que choram, aos que se espantam, aos que não se encaixam; saúde aos que duvidam da sanidade coletiva, aos que têm fome excessiva de ternura, aos que compõem escondidamente de madrugada, aos que soluçam de dó e saudade ao verem o que era colorido ser coberto de cinza. Saúde, tim-tim e vida longa aos que serão sempre muito jovens, aos que enfartam com a lógica do mercado, aos que se enternecem pensando como dura pouco uma borboleta, aos que se arrepiam com certos acordes, aos que se arrepiam com certos acordos, aos que pensam com cândido horror numa rotina milionária. Um brinde aos que são turistas da realidade louca. Santé aos que são imigrantes de um éden paralelo. Cheers aos proscritos, aos viúvos de seres mais humanos, aos exilados de paraísos futuros, aos hóspedes de uma dimensão que os aterroriza. Tim-tim aos que dia a dia se rasgam, se esvaem, se medicam, se perdem, se atormentam, se questionam, se assombram, porque não pertencem.

Eu vos saúdo, abraço e amo! irmãos que perdoam e recebem, ainda que rotulados de pamonhas; irmãos que preferem encolher-se no quarto a retaliar com um só peteleco; irmãos que se afligem mas não julgam, se amarguram mas não condenam. Bato convosco um hi-five de coração a coração. Sem os que se apelidam otários não resta beleza, pois que é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não; sem os tolos não há a delícia sutil, há apenas causa e efeito. Sem os tontos que gemem, não existe som de viola, nem soneto, nem rap, nem concurso de fotografia, nem tango. Sem os que suam sob a própria pele, não há fantasia. Sem os que se estafam de fumaça, não há jardins botânicos. Sem os deslocados, não há observadores gentis; sem observadores gentis, não existem empáticos; sem empatia, Homo sapiens é cronicamente inviável.

Um brinde eterno ao amor que mora no que é triste; só no coração traspassado se lavra a portinha para o outro entrar.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Melhorar de infelicidades

Vamos combinar: nunca seremos completa e azulmente felizes nesta terra, nem em outra nenhuma debaixo do sol. Um tem caviar no almoço e na janta, mas não a companhia dos herdeiros; um segundo ama e é amado, mas lhe coube uma saúde lascada de horrível; aquele da esquina é a robustez em pessoa, mas está sendo despejado do apê; um quarto é o gênio do pôquer mas canta como uma hiena com bronquite, e nunca realizará o sonho de integrar um coral; seu colega de faculdade tem os filhos mais doces do universo, mas não supera a mágoa de seus pais continuarem preferindo o irmão do meio. Que fazemos então desse enxugamento de gelo psicológico, sem precisarmos nos atirar sem boia da primeira ponte? Vai uma dica da experiência própria: a gente acerta com a gente mesmo de ser feliz melhorando de infelicidades.

Cuma? Me acompanhem. Fui uma criança feliz como as crianças podem ser – tinha papai, mamãe, vovó, maninha, lanche com broa, tia visitando, programa do Bozo, gibi da Mônica, parquinho aos domingos. Nenhuma queixa, tudo nos conformes. Só que as crianças não sabem estar sempre nos conformes (se você acha que sim, tem alzheimer seletivo). Crianças habitam o mundo há pouquíssimo tempo e não têm elementos para entendê-lo, nem, portanto, para defender-se de suas paranoias particulares. Crianças enjoam em vinte minutos de ônibus porque não compreendem as distâncias, que são sempre assustadoras e enormes; não sabem ainda domar a sede, a fome e os chamados da natureza em benefício próprio; não são as donas do dinheiro nem das decisões tomadas a respeito dele; não conseguem medir suas dores, urgências, necessidades; não desvendam satisfatoriamente as intenções e cobranças alheias; não são maduras para digerir novos conhecidos com a naturalidade dos adultos. E pior: geralmente não têm instrumentos para verbalizar, ou ao menos representar seus vácuos, seus sustos, suas abstrações – que existem tão confusa e exclusivamente nelas mesmas. Crianças administram uma psiquê assustadiça, impressionável e flutuante; tudo arde demais, dói demais, é triste demais, longo, longe, difícil demais. Ou seja: Deus me livre e guarde de voltar a essa época, por mais externamente feliz que eu tenha sido, por mais dentro das condições normais de temperatura e pressão que eu tenha crescido. Em si, toda criança é um bololô. Tem infelicidades impalpáveis e fantasmagóricas. Que melhores me são, agora, as infelicidades práticas e desmonstrizadas da vida adulta!

Meu filho, confesse: você também não gostava de estudar (pelo menos não de estudar o que lhe enfiavam goela abaixo), e, se acredita que gostava, sofre de excesso de romantismo ou de péssima memória. Todo mundo tem seu freddy krueger acadêmico. Matemáticas, especialmente, me tiravam lágrimas e quase sangues; o medo de falhar ante a avaliação dos colegas me calafrizava as horas; semana de provas bimestrais me deixava a perna e os ombros doloridos de tensão. Amei desde logo as infelicidades da faculdade: tenho de estudar latim e nunca mais nadinha com número, maravilha! Hoje os próprios enfados do latim, as obrigações de anotar matéria e redigir monografia só em pensamento me arrepiam, e eu abençoo os dramas de professora em comparação com os de aluna. Minhas definições de desgosto foram atualizadas, e, felizmente, tendo a achar que a grama do eu atual é o jardim de Versailles perto dos anteriores capins.

Esse é o lance: eleger os pesares razoáveis e, na medida do possível, ir eliminando os mais impraticáveis. Se a dor maior do dia é botar o pé fora de casa na megalópole, estude a chance de ir mais para o interior, mesmo com a chateação de ganhar um pouco menos. Se só falar no trabalho já o faz apalpar o saquinho de vômito, veja se não cabe uma guinada radical na profissão, ainda que signifique abandonar colegas amados. Se a arritmia começou por causa dos grupos de WhatsApp, famintos como tamagotchis e canalhas que nem tabloides, procure o botãozinho mágico do “excluir” e lide, mais saudável, com algumas ausências. Creia que há muito pouco – além de fome, sede e força – que realmente nos obriga: nem um sonho caduco de infância, nem um o-que-vão-pensar em família, nem o diploma emoldurado no corredor, nem o casarão que veio no inventário, nem o escritório que chegou de herança, nem o prestígio social, nem a opinião cochichada entre vizinhos, nem as roupas já compradas, nem um dígito no contracheque nos retiram o peso e a leveza da escolha. E na escolha há troca, não milagre; há continuidade, não solução. Enquanto estamos vivos, nada é solução porque tudo é mudança de fase – cada qual com sua ninhada fresca de mogwais fofinhos ou de gremlins alimentados após a meia-noite.

A andança é compulsória; escolhemos o sapato. Não nos falte nunca a agudeza de calçar a vida que menos nos aperta. 

domingo, 22 de janeiro de 2017

De repente funciona

Acho muito engraçada nossa mania de dizer “cara, faz isso que de repente dá certo”, “de repente essas manchinhas aí são de dengue, hein?”, “não decidi ainda, mas de repente eu vou lá amanhã”. Não sei se de repente pegamos birra com o “talvez” e o “quem sabe” e resolvemos variar, enjoadinhos; tenho, porém, outra impressão: que essa expressãozinha matreira encaixa fabulosamente em nossa cultura de abracadabras. Os brasileiros, e notadamente os cariocas, levamos por tradição esse pensamento mágico – a coisa não é, não é, não é, até que do nada passa a ser e fica sendo, olha que lindo. A gente vê, a gente se encontra, a gente se esbarra por aí; não carece marcar, criar compromisso. Fica mais gostoso de repente, não mais que de repente.

Compreendo que a linguagem ajude a atenuar as dores: na verdade não tem vírus nenhum não, ele está ali só de boas, só dando uma olhadinha, e bem casualmente pode gostar do que vê e decidir se instalar. Entendo isso; somos herdeiros duma história sofrida e o idioma é nossa almofada. Mas um discurso que anda de capacete, caneleira, joelheira, óculos blindados, luva, cachecol, escafandro, macacão de astronauta e colete à prova de balas também nos tolhe o ímpeto linguístico, o movimento categórico. Vamos marcar? Sim. Quando? Terça. Que horas? Dez – sem surpresa, sem bibbidi-bobbidi-boo, sem a Fada Azul dos encontros. Bora falar com a Godofreda para consertar esse vazamento do prédio? Agora? Agora. Pronto. Falei. E ela? Telefonou para a equipe responsável; estão a caminho – sem sustos, sem esperas de um milagre hidráulico, sem de-repências filhas da procrastinação.

Admito que sou, também, procrastinadora típica dos quarenta e vários graus cariocas. Quem sabe se a escaldância de nossas quatro estações – verão, mais verão, semioutono e inferno – nos deixa parvos demais para decisões longas; quem sabe se nosso passado de bajuladores da família real nos predispõe ao que é flexível e caprichoso; ou se o vaivém do mar nos martela que tudo muda o tempo todo no mundo, e dane-se tudo, porque nada do que foi será. Mas o fato de termos mais desculpas do que praias amacia e não soluciona. Precisamos não precisar de heróis – porque o “de repente” é o deus ex machina ideal, a magia da cartola, o ídolo dos que não se organizam. Nunca viveremos a perfeita ordem finlandesa, OK, porém é necessário que todos funcionemos, todos queiramos, todos fiscalizemos, em lugar de aguardarmos o Indiana Jones da política, o Luke Skywalker que trará equilíbrio à nossa falta de força. O “de repente” é a exceção, o contato imediato de terceiro grau, o rei Dom Sebastião que vem a galope. Mas tem coisa que não rola a galope, que pede a vontade ligeira e coletiva do trem-bala, pronta sempre, sempre forte. É impaciente demais o campo de batalha de todos os dias, não dá tempo de sentar e esperar o Encoberto; o jeito é, num abraçaço, darmos cobertura uns aos outros.

Quanto mais nos apoiarmos num ciclo de cuidado mútuo, menos subjugados estaremos a qualquer um que, de repente, prometa cuidar de nós.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Importante o suficiente

Li em algum lugar que as últimas palavras de Sir Arthur Conan Doyle, ao morrer, foram dirigidas à esposa Jean Elizabeth: “Você é maravilhosa”. Nem posso dizer o quanto fiquei tomada de ternura. Era o pai de Sherlock Holmes que se ia, e podia muito bem ter cunhado e guardado alguma literatice para a posteridade, algum “saio da vida para entrar na História”, algum “a morte é a coisa mais elementar, meu caro Watson” (eu sei, eu sei que essa expressão não é dos livros de Sir Arthur, mas vai que?), um troço qualquer que lhe dourasse o epitáfio de escritor. Conan Doyle, porém, tinha morrido segundos antes, e naquele momento do ataque cardíaco foi apenas Arthur, e o último eixo do homem resumiu-se em amor, gratidão e saudade. O essencial de nós é o que parte mais no fim.

Pois então, já que temos em nós aquilo que sabe o que diríamos na morte, não podemos acessar mais sempremente o arquivo durante a vida? Se é certo que nosso último “ai” não será – “O senhor viu, Doutor Peçanha, as cotações de hoje?” –, por que topamos conviver com a mania dos cifrões 87 horas por dia? Se acharíamos ridículo que nossa declaração final fosse – “Menina do céu, você não adivinha quem o Gustavo Lima tá pegando!” –, por que boiamos tanto tempo precioso nesse marzão besta, besta de informações nulas? Se os filhos são mesmo a alegria mais linda e não prisão domiciliar, se o trabalho se limita a uma fonte de renda e não virou ração de um orgulho doido, se as selfies são brincadeirinha dispensável e não alimento de uma vaidade ensandecida, se o amor é a pérola querida e não o ser que intimamente se empurra e despreza, que estamos nós fazendo aqui, jogando esse tantão de vida fora – na ausência de casa, no expediente infinito, no correr solitário da infância dos pequenos, nas partidas intermináveis no celular, nas milhares de poses coreografadas no espelho – com o que não desejamos que nos represente e nos sobreviva?

Conan Doyle só dirigiu as últimas palavras à esposa porque estava com a esposa. Não somente diante dos olhos: mais junto, mais perto, mais fundo, mais sempre. Jean estava no altar do que é importante o suficiente para ser nossa urna, para nos receber como ideia e lembrança quando deixamos de ser corpo. Últimas palavras são restos mortais do que escolhemos, cinzas da motivação que tivemos, semente caçula das crenças que levamos. Aos nossos césares o que é desses césares, e ainda em plena vida, para que a linha final do script não seja senão um (bom) arremate do que já lhes é mui visto e sabido. “Você é maravilhosa”: uma fofura – mas, eu espero, não uma novidade. “Você é maravilhosa”, digam os olhos na contemplação diária. “Você é maravilhoso”, digam as mãos ao desenformarem o doce preferido, just because. “Vocês são maravilhosos”, diga o sorriso de quem alerta com paciência para os erros no dever de casa. Sem agenda, sem limite, sem voz até: o você-é-maravilhosa de Conan Doyle tanto nos acompanhe e se manifeste que, no último capítulo, nada mais tenha a fazer do que nos acompanhar e manifestar-se, fechando todas as questões sobre os quês que mais nos importam.

E os quens – elementar, meu maravilhoso Watson.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Como será o amanhã

Há algumas semanas, fiquei deslumbrada ao aprender o conceito de foreshadowing (“prenúncio”, em tradução aproximada): aquelas pistas que se salpicam no decorrer da trama – em livro, filme, novela ou o que seja – para dedurar habilmente o que está por vir. Não é um mero easter egg; o easter egg é plantado como brincadeirinha, assinatura, referência, piscada de olho, porém não tem a função específica de antecipar fatos. O foreshadowing, quando bem executado, é a joia da coroa, e aumenta exponencialmente nossa loucura pela ficção.

Exemplos? vamos a alguns, lindíssimos, do cinema: no primeiro Jurassic Park, lembram que o personagem de Sam Neill não consegue fechar o cinto de segurança do helicóptero, porque as duas pontas são “fêmeas”? Ele dá seu jeito, no entanto, ao amarrar um pedaço no outro. Pois a ceninha inocente não está ali à toa: serve para anunciar que também as dinossauras, todas fêmeas, darão seu jeito de se unir e multiplicar-se. Já no premiado Os infiltrados, cada personagem que será morto aparece, em algum momento, perto de um X – grades que se cruzam, detalhes de parede, elementos de arquitetura etc.; afinal, “X marks the spot” (“o X assinala o local”). No instigante Clube da luta, entre a montoeira de foreshadowings existentes, destaca-se um que quase esfrega o gabarito na nossa cara: quando o Narrador espanca a si mesmo para posar de vítima do chefe, nós o ouvimos comentar em off que, por algum motivo, aquilo o fez recordar sua primeira briga com Tyler – o que revela claramente vocês-sabem-o-quê.

Foreshadowings são sensacionais na ficção, e nós adoramos (confessem) a doce entrega de sermos “enganados”, pegos de surpresa mesmo com todos os autospoilers, reconquistados pelo enredo ao destrinchá-lo após o the-end. Rimos de nossa incapacidade de perceber as dicas, juramos que da próxima vez estaremos mais espertos, mas da próxima vez continuaremos prontos para cair na mesma esparrela – só para novamente podermos nos apaixonar a posteriori. É divertidíssimo reolhar, ressignificar.

Na ficção.

Porque o foreshadowing está muitissíssimo mais presente do lado de cá da tela e das páginas; apenas sem igual doçura na descoberta, e sem metade do valor artístico. Há antecipações, há prenúncios, há sinais em quase tudo – e, principalmente, em quase todos. O namoradão ultrarromântico que começa mandando joia, urso, girafa, bombom, champanhe, trinta e sete dúzias de rosa vermelha, e lá pela terceira semana de love pede a senha do Face, pergunta quem era aquele cara, dá uma discreta puxadinha de braço: é fria, miga, e as próximas temporadas podem ter locação em hospital e delegacia; personagem inocente e amor verídico não caem no ciúme, na manipulação barata ou na barganha de sentimentos. Sabe também aquela criança bela e fofucha que adivinha salivantemente cada ponto fraco alheio, e o catuca de olhos brilhando? sabe aquelas mãozinhas que nunca se impedem de cortar o rabo do gato e alfinetar o cachorro? Não estou dizendo que seja um estripadorzinho em formação, mas, se eu fosse você, já marcava uma hora com o psiquiatra do plano. E o sujeito de negócios que vai ao seu encontro exibindo todo o branqueamento da arcada superior, só que (você bem viu) passou reto e cego pelo porteiro? Quem sou eu para me meter no seu business, mas, se aceita um palpite camarada, arrume outro sócio pra chamar de seu. Um que saiba que só a integridade legítima é sustentável.

Estou afirmando que cada ser se entrega todo no mínimo gesto, sem a margem de erro da serotonina baixa, da enxaqueca, do estresse de um trânsito doido ou de uma briga em família? Óbvio que não. Não somos roteiros oscarizáveis com 100% da obrigação de encaixar tudo redondinhamente. Mas afirmo, sim, que uma parte tem chance gigante de fazer delação do resto, que a essência morreria de exaustão se passasse 24 horas sem berrar sob a aparência, que existem motivos para contratar analistas de linguagem corporal, que a gente não acha pelo em ovo a não ser que o ovo seja kiwi, que cada porçãozinha nossa pode até não spoilar o futuro – mas pelo menos liga a luz amarela sobre o presente. Franqueza aqui: dá muito mais trabalho melhorar do que piorar; não é razoável supor que os defeitos se sublimem, etéreos, em vez de irem (como é mais natural) ladeira abaixo. Olho vivo, então, no machismo do ato e da frase, para que não se acabe dormindo com o inimigo. Atenção triplicada aos menores ensaios de crueldade, para que jamais se noticie um dia de fúria. Foco nas mostras de (nenhum) caráter, para que não se contrate o advogado do diabo. Faro fino na escolha das companhias, para que não se chegue ao protagonismo de relatos selvagens.

Delicadeza no olhar, firmeza na análise, coragem na reação, independência na atitude, humildade no pedido de socorro, zero onipotência na avaliação, tranquilidade mas precisão, elegância mas energia – antes. Para que não nos reste falar sobre o Kevin só depois.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

O processo

“Computadores são inúteis”, resmungou Pablo Picasso certa vez: “Eles só podem te dar respostas”. A prova de que não concordo cem por centão é que tenho blog, Face, consulto tia Wíki e não venho escrevendo exatamente a lápis, mas entendo bem a indignação de Pablito e a moral da história. Computador – ou qualquer outro trambolhão/trambolhinho que entre na internet, faça uma resenha amiga daquele livro obrigatório, converta dólar em euro em libra em estaleca em iene, diga se já é uma hora decente de ligar pro primo na Suíça, aplane o dilema “enfim, a Dona Coisiane separou ou não separou?” – é instrumento apenas, e o pior, não é instrumento burro. Picasso não chegou a saber (e não sei se intuiu) que essas geringonças maravilhosas viriam não só trazer respostas imediatas, mas implantar perguntas inúteis. Viriam de tal modo seduzir, excitar, distrair e pornografizar a atenção humana que nos perderíamos entre as sereias, esquecidos de Ítaca; nos atiraríamos à casinha de doces, deslembrados do caminho da própria casa – ou da casa de alguém que não pretendesse devorar-nos.  

Computadores & cia. foram criados para responder, porém logo cooptados para desviar. Enquanto boiamos em sua lagoa azul de facilidades, esquecemos o objetivo da expedição. Enquanto nos entupimos das informações mais açucarentas sobre a barriga chapada de Fulaneusa, o mais recente casalzinho júnior, as dúzias de fórmulas coloridas de florzinha (e gramaticalmente medonhas) para dar bom dia no WhatsApp – falta-nos apetite para o almoço. Quem vai acordar do feitiço nessa hora e se dar conta de que pode investigar mais a fundo aquela acusação que viralizou na rede? Quem vai sacudir a poeira de fada, baixar da Terra do Nunca Pararei de Jogar Candy Crush e aterrissar na conclusão de que nós somos o joguinho de outrem? Quem vai catar respostas, se nós estamos na Disney virtual e elas estão no Hades? Quem vai investir na busca sólida, se moramos em ilha banhada de leviandades líquidas?

O importante é o processo da chegada à resposta, se resposta houver; e não o processo apenas: também a motivação do processo. Precisamos saber como saber e para que sabê-lo. Não nos interessa ter os tecnológicos como cérebros terceirizados: ou os fazemos simples secretários, ou alguém nos faz escravos através deles. Ou ganhamos células cinzentas marombadas pelo raciocínio, ou molengas que não resistem a ser arrastadas. Ou amadurecemos pela inquietação que não nos deixa achar o mundo normal, ou ficamos infantilizados ao receber o mundo quentinho na mamadeira. Ou descobrimos o que é importante escarafunchando onde não nos querem, fuçando arquivos que não gritam, deslacrando pastas seladas, questionando acasos inexplicáveis, comparando dados sufocadinhos, duvidando de versões faxinadas – ou somos alimentados por sonda, canudo, papinha mastigada previamente. Ou a tecnologia é nosso Robin, ou é nosso Iago. Ou é nossa estrela de Belém, ou é nosso Judas.

Respostas prontas economizam sola e frete (por falta de peso): concordo. Mas os apaixonados de verdades raras vão ajoelhar-se pessoalmente. Bem sabem que elas não se entregam de encomenda.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Inteligências

Diz que existe (e eu até já escrevi sobre) uma doença chamada prosopagnosia, que impede a criatura de reconhecer rostos. Não rostos do rapaz da farmácia ou da vizinha do 504, mas todos e os mais íntimos: os dos próprios filhos, da mãe, da esposa. Uma tragédia psicológica. E no entanto – matutava eu – todos somos prosopagnósticos afinal de contas, numa coisa ou noutra. É certo que não chegamos perto do drama de uma síndrome rara, mas temos sim nossas cegueiras específicas, nossas típicas incapacidades, nossas tolices geradoras de folclore na família e denunciadoras, no fundo, de nossas importâncias particulares.

Há um par de anos identifiquei-me, por exemplo, com um meme fabricado por alguém analfabeto em marcas de carro: “Se um dia eu for testemunha de algum crime, espero que os bandidos fujam de Fusca”. Toca aqui, irmão. Carros só me representam pontos móveis de quatro rodas que carregam a gente, e eu no máximo leio cor e tamanho – ou placa; sim, entendo que é o carro dos meus sogros (meu conhecido há década e meia) somente quando vejo a placa. Ora vão explicar tamanha burrice. É o mesmo com outras certas maquininhas, como celulares: tem os com botãozinho e os sem botãozinho, acabou-se. Se é iPhone, iPad, Galaxy, Lenovo, Z9032, S4675, XPTO, K-9000 – perguntem à Nasa (embora eu tenha certeza de que são todos X9). Já não bastam as 4.892 senhas de site? esses psicopatas ainda querem enfiar mais alfanumerices na minha vida? Nada. É COM e SEM botãozinho. Eu só uso COM. And proud.

Imagino que bugigangas com várias peças simplesmente não me façam sentido no cérebro, tipo conversa em coreano. Zero results na pesquisa. São utilitários ocasionais demais para que mereçam ampliação do verbete. Já é o contrário com a percepção de rostos: sem ter nada que se pareça com memória fotográfica, consigo por muito tempo me lembrar deles, escavar identidades sob as mudanças, pilhar semelhanças entre os olhos da garçonete e aquela atriz, entre o sorriso da cantora e os trejeitos da recepcionista. Por quê? Ué, porque é uma língua que faz sentido, porque sou miçangueira de humanas, lá sei? a ciência que disseque e descubra. Do mesmo jeito, acabo registrando lindamente as canções com letra (ainda que não saiba a letra), mas sou surda para a trilha instrumental que tocou naquela cena incrível. Percebo uma completa sinfonia nas análises sintáticas, mas sou jumenta em xadrez. Guardo facilmente nomes e turmas de alunos, mas sou uma total palerma para me localizar no espaço. Tenho o carinho de sentir a lógica de outro idioma (em nosso alfabeto, please), mas posso ver e rever e milver o lance do futebol sem nunca apontar um impedimento na prática, embora saiba descrevê-lo em teoria. Aliás, não sou páreo para texto teórico – após duas linhas, tudo vira mandarim arcaico –, mas me mande decorar um soneto pra você ver. Me dou intuitivamente bem com caixas eletrônicos e máquinas vendedoras de bilhetes, mas vou olhar qualquer questão de probabilidade como um burro olhando para um palácio. Ah! e não me peça para levantar o braço esquerdo ou o direito assim, de chofre: faltei nesse dia e preciso antes estudar a matéria. 

Fora do campo motor, consigo reconhecer direita e esquerda muito bem, obrigada. Todo colírio é pouco para se fugir à cegueira ensaiada que anda fazendo a gente dar outra vez com a cara no poste.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Logo eu

A brincadeirinha tomou a rede há dias, irritando até a loucura: "Quis me dar um gelo. Logo eu, a rainha Elsa"; "Achou que eu ia ligar. Logo eu, que tô sem crédito"; "Tentou me iludir. Logo eu, pote de sorvete com feijão dentro" – e uns milhares de bobagices tais. Não é que não pareça engraçadinho sustentar os jogos verbais por 24, 48 horas, exercitando a criatividade da palhaçada e convidando neurônios alheios a fazer o mesmo. São memes que surgem feito virose de clube: paciência, uma hora se vão e deixam outro micróbio. Mas é que esse, esse... Esse, especialmente, diz um bocadão de nós e resume infernalmente bem nossa cultura de exceções fofinhas, de inocência desculposa. 

Me acusou de racista (ou homofóbico) – logo eu, que até tenho amigos negros (ou gays)! (Não sei dizer o quanto me fere a lança desse até, dessa condescendência por si só excludente, dessa justificativa que tenta purificar a forma geral com o ponto particular, a atitude coletiva com o exemplo de estimação.) Me chamou de coxinha – logo eu, que estudei em escola pública (e estou aqui sentado na doçura de meu esquecimento, tachando de vagabundos os alunos das ocupações). Me falou que eu deveria me informar – logo eu, que assisto a todos os principais jornais (de uma grande mídia que monopoliza os canais e vive dos mesmos anunciantes que financiam nossos amadíssimos políticos). Me disse que eu tinha de pensar mais nos outros – logo eu, que distribuo sopão nas madrugadas de quarta (mas defendo que os refugiados não venham tirar nosso emprego, nem que família de preso assassinado venha comer do nosso imposto).

Somos a lamentável terra do "logo eu". Os impulsivamente cordiais, os boas-praças, os dadores de tapinhas superficiais e levadores de criança para ver Papai do Céu no presépio. Somos o malandro sorridente que quer se eximir do fundo pecado com uma crosta de ternura. Mas sim, sim, logo nós, e que não haja desculpas ou máscaras para a posteridade: logo nós, país fruto de um estupro imenso, ousamos questionar se é vítima a menina que passa por uma roda de violência; logo nós, todos descendentes de gente arrancada (pelos europeus) à liberdade e escravizada a um novo clima, temos a audácia de afirmar que os refugiados estão acabando com a Europa; logo nós, manipulados até a medula pelo sistema que nos suga e dementa, caímos na esparrela de defender a censura e ser contra a regulação da mídia; logo nós – filhos de bruxas queimadas, cristãos-novos perseguidos, pajés massacrados, africanos de cultos amordaçados –, logo nós sustentamos, com nariz petulante, que possa existir perseguição de Deus contra religiões do diabo. Logo nós, operários, bradamos pelo interesse do senhor de engenho; trabalhadores de três horas de condução, aplaudimos a reforma da Previdência; batedores de panela pela lei e a ordem, pouco ligamos que a lei esvazie outras tantas panelas; cidadãos do país coberto de vermelho-sangue no nome e na história, nos verdeamarelamos de indignação seletiva.

E depois de nos prestarmos ao show e ao circo, miquinhos amestrados que somos – a conta chega logo para nós.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

1.313 dias


Depois de 1.313 dias sem lugarzices, que dizer? Que o mundo não está mais nem menos cretino do que quando saí por aquela portinha (mas, se eu tivesse de jurar, diria que está menos: essas babas de ódio por aí são o último urro do vilão antes de estrangulado). Que alianças rebeldes seguirão explodindo estrelas da morte. Que os vizinhos começaram a bater panelas, pararam de bater panelas, mas desconfio de que há esperança: continuam chegando às janelas assim que ouvem o barulho perfumado da chuva de verão. Que o algoritmo do Face se aperfeiçoou na big-brotherice, porém o perdoamos, já que sabe sempre para onde queremos viajar e busca passeios, como o cãozinho ensinado que volta triunfante com o gravetinho. 

Digo que agora mesmo – bom janeiro que é – está tendo chuva de verão, e para nós tudo bem, há o calmoso sossego de quem não saiu de casa nem tem roupa lá fora; mas nos espanta o cada vez maior espanto dos governos com as calamidades chuvosas, eternamente imprevistas. Digo que, apesar de destra, o que eu tinha de inclinação à esquerda virou residência fixa. Que só aumentou minha paixão por fofuras, em especial se incluem bochechas, em especial se envolvem olhos puxadinhos. Que os clichês me parecem progressivamente mais odientos, exaustivos e indefensáveis. Que a pasmaceira concordante já me dá tanto nos nervos quanto o preconceito histérico. 

Digo e repito que ler demais é melhor que escrever muito, mas não adianta, sem o segundo a gente acaba não fazendo a digestão do primeiro. Que pretendo ficar sabática de filhos por todo o sempre: há muita pessoa para educar sem precisar trocar-lhe a fralda. Que ainda planejo entrar no cadastro dos doadores de medula, porque também há muita forma de se dar à luz. Que continuo fascinada por enfeites de Natal. Que agora me entrego sem pudor às montanhas-russas de looping. Que ainda não aprendi francês, mas já sei contar até dez. Que ando mais incomodada com o fato de ser quase impossível saber tudo quanto se deveria. 

Declaro que sou bem a mesma em outra folha de rascunho, provavelmente também prestes a ser amassada para melhorar em outro esboço. Sou eu ainda e sou ampliada pela paixão de novos personagens, pela cultura de novas séries, pelo desapego de novos cansaços. Se tenho vontade de aqui voltar? não. Mas é meu voo, meu tijolo, meu cinzel, minha resiliência. Meu IPTU do lugar que me coube no mundo. Hei de escrever fatalmente, descarregar as leituras evaporadas, como o verão que chove. 

1.313 dias depois, que a precipitação não seja breve.