quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Classificâmbios

Vou humilde, com minha banquinha de escambos, a uma dessas feiras de oferecer negociações; mas chego sem grandes produtos, confiada mesmo assim em que haja nos arredores um serial adquiridor de bugigangas que, passeante e ocioso, pare para jogar lances por recreação. Trocar proposta honesta não ofende, e há bem gordas chances de eu, seja qual seja a pechincha topada, sair no lucro.

Pois bem. Troco minha memória indelével da fórmula de Bhaskara pela capacidade vitalícia de andar de bicicleta – olhem aí, meninos do Enem, que barganha filezinha: meu Bhaskara teve pouquíssimos anos de uso, foi vestibularmente bem-sucedido e tem estado na gaveta desde então, embaladito contra mofo. Por meio talento de pedalar mantendo razoável equilíbrio a gente já fecha negócio, precisa nem driblar as intempéries cariocas, está suficientão conservar a dignidade em qualquer reta de ciclovia.

Troco algumas salteadas lembranças de velhos filmes e novelas (à minha escolha entre os vistos, acumulados mas jamais apreciados) por umas noçõezinhas sub-básicas de bandas estrangeiras ao longo de todas as décadas, matéria na qual venho existindo analfabetamente há dezenove gerações. 

Troco um inexplicável livro de esperanto que não faço ideia de onde esteja pela conjugação redonda de dois verbos em francês. Um, vá lá.

Troco um pacote de dicas de viagem hypíssimas pela sabedoria ancestral de distinguir dor de cabeça café-com-leita de enxaqueca que ri na cara do menino Tylenol – ANTES de tomar o menino Tylenol. 

Troco respostas perfeitas (para situações que provavelmente nunca) por uma decoração frozen de árvore de Natal, um encontro de três minutos com a neve ou a habilidade de segurar um bebê sem que os pais tenham a sensação de estarem escalando o guri para uma apresentação no trapézio do Cirque du Soleil. 

Troco 643 horas de Domingão do Faustão sem "Dança dos famosos" por... leva. LEVA. Estou doando. Pago sim o frete, e uma casquinha do Bob's. 

Troco toda a discografia de musiquildas mentais aleatórias – alerta de tema dO iluminado – por um gif que se aplique otimamente a mais de 58 casos de necessária interação social no Facebook. 

Troco sonhos doidos de quarentena por interfones que não deem enfarte, troco 8.478 horas de "Então é Natal" por uma passagem (do disco) para Marte, troco 37 citações por um corte de cabelo, troco o Palácio do Planalto por um mate sem gelo, troco qualquer aparição do coiso até pela Hora do pesadelo. E excessos de sono por tempo de escrita, por tempo de leitura, por gente sem frescura, por gente que não grita, mais gente que acredita. Troco cada versão ever feita de Cats por meio Parasita. Loucura por ciência e treta por ternura. 

Troco 2020 por sua cura.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Today years old


Gosto alegremente da expressão em inglês today years old, em geral usada pelo falante para admitir que era tão velho quanto agorinha há pouco ao ter uma grande revelação ("I was today years old when I found out Gandalf carried his pipe in his staff" = "Eu tinha a idade de hoje quando descobri que Gandalf carregava seu cachimbo em seu cajado", traduzido marromeno. E sim, esse é um tweet real dum sujeito chamado Sam Sykes – o lance do cachimbo também é real, podem conferir). Gosto tanto da brincadeirinha idiomática tão expressiva que confesso uma pena sincera de não haver correspondente direta em nossas brasileirices. Problema não, adoto mesmo assim ou por isso mesmo; bem-vindos sejam todos os instrumentozinhos linguísticos que alcançam sentidos não alcançados pelos nossos. O que é humano de dizer, um qualquer vocabulário humano dirá entre o céu e alguma terra.

Estreias para celebrar com rajadas fogo-artifícias da expressão não faltam, já que todo dia de certo modo nos inaugura. Eu, por exemplo, era today years old quando descobri que os bonequinhos sacanas de André Dahmer nas tirinhas dOs Malvados vêm a ser, na realidade, dois girassóis. Quando fui inteirada de que existe uma teoria doida sobre os acontecimentos no filme Coringa, baseada no fato de que três relógios marcam o horário 11h11 e, depois que Arthur quebra o terceiro deles, os números que aparecem em cena vão fazendo uma espécie de contagem regressiva (uns dizem que o tempo estar parado significa que é tudo um delírio do protagonista, outros apontam que o personagem se encontrava estagnado até o ponto em que passou a se transformar aceleradamente em seu alter ego. Não fui checar ainda não, amizadinhas, mas estejam à vontade). Eu também tinha a idade de hoje quando engordei meu acervo cultural com a informação de que uma das típicas sobremesas natalinas do Reino Unido é o spotted dick, graciosamente traduzível para "pinto manchado" – o que não é nadíssima perto do smalahove, prato de festa norueguês que consiste numa cabeça de ovelha INTEIRA defumada e cozida após a devida remoção do cérebro. Sei não, mas desconfio de que passar um Natal na Noruega seria o empurrãozinho que me falta rumo ao vegetarianismo.

Fiz poucos segunditos de níver de saber que, em Homem de Ferro 2, Tony Stark salvou a vida de um Peter Parker ainda criança (o garotinho com máscara igual à de Tony que não recuou diante de um robô atirador). Estou há alguns instantes nascendo de constatar que o verdadeiro nome do Jotalhão é Jota Matheus Elefantônio Moreira; o da Maria Cebolinha, Mariângela Cogumélio Menezes da Silva; o do Zé Lelé, José Leocádio Eleutério da Cunha Filho; e o do Louco, Licurgo Orival Umbelino Cafiaspirino de Oliveira. Completei a exata idade de um minuto atrás quando soube que os mosquitos são os animais mais assassinantes do mundo e superam, em vítimas, todas as guerras da história. Acabei de cantar parabéns para minzinha por descobrir que "enfiar o pé na jaca" era, originalmente, "enfiar o pé no jacá" – sendo jacá o nome do grande cesto, posicionado aos pares sobre mulas, em que tropeiros transportavam seus produtos nos séculos XVII e XVIII, e em que acabavam literalmente enfiando o pé quando ficavam bêbados e tentavam subir nas mulinhas. Com o tempo tropeiros e jacás foram sumindo da rotina, o acento despencou junto e o símbolo da esbórnia se tornou, digamos, mais hortifrutigranjeiro, ganhando aliás o triplo da eloquência. 

Particularmente sou apaixonada por essas jovens epifanias que, volta e meia, atropelam a gente com sua radiante trivialidade e seu saboroso espanto; que tornam o dia berço, a tarde escola, a jornada miniaventuresca e farta de inícios fresquinhos. Para os que ignoram a lindeza do fluxo, o mundo é notícia velha. Para os que se abrem aos abracadabras, a noite é uma criança.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Quem quer ser um milionário?


Entendo muito perfeitamente a meu modo as palavras dum Gabriel García Márquez quando afirma: "Eu não sou rico. Sou um homem pobre com dinheiro, o que não é a mesma coisa". A meu modo porque, claro está, não sou nem rica nem uma mulher pobre com dinheiro – porém, considerando que vivenciasse algum dia um milagre e ganhasse solitária na Mega-Sena, passaria certamente a ser do segundo grupo; ao primeiro não pertenceria nunca, ainda que a Madonna tivesse meu número no celular e volta e meia ligasse para pedir um troquinho emprestado. "Âin, você só diz isso porque jamais ganhou na Mega-Sena, senão eu queria ver essa simplicidade toda." Chame de simplicidade se quiser; eu chamo de conhecimento histórico, falta de paciência e preguiça. Primeiro, é tarde demais para dester consciência de que há gente dando farinha com água para os filhos, por não haver mais nada a lhes dar – e não é gente da qual se pescam vagas notícias pela National Geographic, são vidas daqui do lado, com que se esbarra indo à padaria. Segundo e terceiro, é mui igualmente tarde para implantar em mim qualquer farelo de respeito por cotidianos milionários que considero cafonééééérrimos até o último triquetrique de decoração ou etiqueta. Sou minimamente polida, mas 100% imprestável para essas palhaçadas (com a devida vênia a meu Coringa) de salão nobre; uma Gabriela sem canela, sem cravo. Com sapatos. Coladinhos na terra.

"Aaaaah, você ia se acostumar." Amigues: não ia. Essências não mudam, e a minha essência é de feira de artesanato, sebos, antiguidades, popices, fofices, roupas de brechó. Quer me ver entediada em viagem é me colocar num daqueles shoppings ou ruas chiques que só têm Chanel, Gucci, Prada, esses troços iguais no mundo todo, com as mesmas vitrines semelhantemente desinteressantes e os mesmos preços obscenos, pornográficos; bocejo, passo reto, não olho, não entro, nem se pudesse comprar me sentiria atraída tenuamente. Quer me ver encantada é me meter nessas lojitas obscuras ou nesses mercados loucos de rua, cheios de traquitanas muitíssimo dali, só dali, próprias, charmosas, características, de preferência feitas por artistas pequenamente locais. Livros com dedicatória, peças com história, bonitices nunca dantes encontradas, descobertas inopinadas, é isso o mais provável de eu sacolar para o hotel (com gasto de poucas notas, diga-se); sob quaisquer novas circunstâncias continuaria sendo o mais provável. Essa exclusividade da ocasião e da narrativa, sim, é podre de chique. 

"Então você não gostaria de ficar rica?" Não só gostaria como gostaria IMENSO, logo, já, anteontem. Não desprezo em absoluto o dinheiro, desprezo e odeio a forma exploratória como a maior parte dos milhões das gentes é obtida; desprezo a maneira acintosa, oca, ridícula, fetichista, irresponsável, exibicionista como a maior parte dos ditos milhões é empregada. No entanto, viesse a mim limpamente essa bolada em reais, eu a abençoaria de todíssima alma por me permitir comprar dois luxos maiores: tempo e espaço. Não, não quero calcular a velocidade; quero tempo caudaloso para os trabalhos desobrigatórios e espaço não ampliado para mim (que não veria a menor necessidade de mudar de imóvel para ter mais lida e despesa), e sim para os nus de parede, de piso, de teto, a quem eu amaria vestir de casinhas fofíssimas. Ter o prazer supremo de entregar a alguéns chave e escritura das respectivas tranquilidades – duvido haver maior joia em qualquer coroa, bebida de melhor safra, piscina de borda mais infinita. E antes que me estendam o indicador na cara, sim, também acho ser uma manifestação muito particular de egoísmo desejar a autoria de algumas felicidades, não nego; porém é egoísmo que espero seja perdoado, em nome do efeito plantadinho. Já que estamos condenados a buscar o que nos agrada, prefiro cobiçar me divertir dando uma contribuição milionária a todos os acertos. 

Se é Prada que o diabo veste, não sei; mas desconfio que a grana torrada em adereços na loja que lhe seja favorita é parente em primeiríssimo grau de vários desendereços do mundo – aqueles em que ninguém pode entrar não, porque nesses números, estranhamente, só tem chão.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Um pouquinho de cada tudo


Uma das crianças fofurildas "de" Pedro Bloch, minhas inspirações infinitas, declarou certa vez que queria aprender tudo, mas sabia que era um pouco de mais. Conformou-se, então: "Basta eu saber um pouquinho de cada tudo". Pois. Ante a triste impossibilidade de abarcar tudãozão que já foi dito ou visto ou vivido neste planeta de pura estranheza azul, mergulho alegremente na mesma vibe da humildade bocadinha; é o que temos. Ei, amado, desce aí um pouquinho de cada tudo no capricho. Sem gelo, por favor.

Preciso bater ao menos uma quilolitragem respeitável de Star Wars com uma diminuta de Star Trek e doses absolutamente cavalares de Avengers e Harry Potter. Preciso coquetelar uns rudimentos do francês com umas garrafas do inglês e barris inteirões da nossa flor do Lácio. Preciso duns goles de fazer arroz, de tirar mancha, de entender a Segunda Guerra, de pregar botão, de descrever (teoricamente) a regra do impedimento, de arranhar o basiquinho das capitais, de frequentar um mínimo de redes sociais, de explicar a Inconfidência das Minas Gerais. Preciso reconhecer um Caravaggio, um Lennon/McCartney, um Rodin, um Manoel de Barros; preciso já ter assistido a De volta para o futuro e Psicose, O iluminado e Dirty dancing; preciso nomear os Cavaleiros de Bronze, definir "razão de aspecto", listar os ingredientes do tiramisù, dublar ao menos cinco hits do ABBA, citar ao menos três pokémons, quatro impressionistas, oito filósofos, dez programas do Discovery Home & Health, vinte e dois poetas e uma flor para cada letra. E a letra de "Evidências".

Tenho a necessidade premente de já ter trocado cartas, ouvido a chiadeira do Windows 95 buscando internet, colocado disco em vitrola, colocado fichinha em orelhão, armado árvore de Natal, pesquisado na Biblioteca Nacional, aprendido a fórmula de Bhaskara, calculado a área do trapézio, escrito em papel almaço, comido comida japonesa, protestado na rua, dado looping em montanha-russa. Quero me saber composta por orações subordinadas substantivas, falas de Shakespeare, filmes do Tim Burton; construída pela Nona de Beethoven e pelo Fantasma da Ópera; atravessada pelo Montmartre e pelo estádio de São Januário. Apetece-me ser uma pitada de masala chai, um pingo de Backstreet Boys, um toque de Três Marias, bocados suculentos de Machado, fatias gordas de Mafalda, Elizabeth Gaskell, Elizabeth Harmon, Elizabeth Bennet. Ser os sabores todos em girândola; ser-saber Monet, Roupa Nova, Marquesa de Rabicó, Rick Deckard, Central Park, Luke, Loki, Rachmaninoff, Paola Carosella, "For the first time in forever", alexandrinos e o valor de pi.

(E ainda mal existi.)

domingo, 27 de dezembro de 2020

Porta-retrato e parede


Um presente extraordinariamente querido que recebemos de Natal foi a versão ampliada, p&bzada e emoldurada duma foto de nós dois sentados – à moda de Woody Allen e Diane Keaton, em cena icônica do filme Manhattan – de costas num banquito de Nova York, com a mesma ponte de cinema ao fundo. Amamos tão imensamente que começamos a escarafunchar arquivos à cata doutros cliques de viagem que pudessem, embora em tamanho menor, acompanhar a imagem-presente na parede. Dificílimo, por motivos de: aparentemente existem (diz estudo por nós realizado muito exatamente hoje) fotos de porta-retrato e fotos de quadro, que têm a curiosa tendência de excluir-se – e a amofinação é que a maior parte das "perfeitinhas" também tem a curiosa tendência de pertencer ao primeiro grupo.

Fotos de porta-retrato são em geral denotativas; normalmente as pensamos como registro jornalístico, miniaturas do lugar e instante, maquetes tão representativas quanto possível da aventura em questão. Fotos de quadro são conotativas, metafóricas, metonímicas, sem compromisso em cartório com o me mostra como era lá, sem obrigação de bater ponto no álbum compartilhado com tios e amigaiada. Fotos de porta-retrato não podem estar piscadas, não podem não estar sorridas, não podem desviar do nítido, não podem detonar o óbvio. Fotos de quadro não precisam sequer estar olhadas – nem humanamente frequentadas se precisam; às vezes são fragmento, símbolo, objeto, frase, grafite, muro, sol, placa, verso ou qualquer outro instantâneo do momentoverso que não revele no atacado mas traduza no varejo, como um botton que anexa ao portador não uma obra e sim uma essência.

Fotos de porta-retrato são o funcionário do mês, fotos de quadro são a alma da festa. Fotos de porta-retrato são apostila, fotos de quadro são galeria. As primeiras são quens e ondes, as segundas são comos e quês; estas poesia, aquelas conto. Fotos de porta-retrato andam escoteirando boas ações pela casa, ora aqui ora ali, saltitantes de agradabilidade; fotos de quadro são divas cool e fixas que condescendem em estender o dedinho de como vai? e, no mais, deixam-se permanecer absolutonas, moradoras, anfitriãs, tão partes da casa que lhe fazem cicatrizes. Umas são boas meninas, melhores alunas, cheias de noventa graus e composições de cores e skylines e enquadramentos perfeitos; as outras são bem outras, bem elas, imperfeitas e alternativas, tortas e interessantes, possivelmente toscas, possivelmente loucas. Umas coram, as outras piram. Umas resenham, as outras redesenham. Umas têm tato, as outras têm bossa.

Ambas são qualquer parte nossa.

sábado, 26 de dezembro de 2020

No ponto

Creio não haver autor tão apropriado quanto Kafka para citar neste aninho, digamos, diferenciado; vai então um de seus 109 Aforismos de Zürau, produzidos durante a temporada passada pelo escritor na aldeia do título: "A partir de um certo ponto, não há retorno. Esse é o ponto que é preciso alcançar".

Sim, Franzito (se me permite a intimidade), é esse o ponto – o equador feitinho mesmo para ser ultrapassado, quando a integridade é o hemisfério seguinte. À parte os fanatismos todos, que têm como diferencial negativo o fato de serem perfeitamente isentos de raciocínio, fomos concebidos para o radicalismo; o radicalismo pensante, pensado. O radicalismo de quem atravessou um longo tecer de observações e estudos e conceitos, emaranhou-se e desemaranhou-se sucessivamente no choque de ver nascer uma lucidez, até que concluiu todo o módulo básico de seu processo de humanização e (formado e coerente) declarou para si: não há volta. Em certas esferas não há possível relativização, possível negociação, a não ser que se picote a alma, se mutile uma verdade intrínseca, se degole uma obviedade, se construa uma horcrux das próprias cláusulas pétreas. Uma vez expandidas, consciências não se retraem sem decepar brutalmente partes muito carnudas de si – e quanto mais longe houverem ido, mais duvidoso se torna que essas perdas fundamentais não as hemorragiem até a morte. 

Ter a noção translímpida de tudo que a vacina representou e representa nos corredores da História, por exemplo. Depois de incorporada no sangue, nas vísceras essa apostilinha de Ciências da segunda série, uma criatura (com atestado de sanidade em dia) consegue falar/sentir/defender algo que NÃO seja a urgência de meter uma seringada anticorônica em cada braço do universo? Ou em termos de outras sobrevivências: alguém que já tenha lido com olhos honestos as estatísticas consegue, sem autotraição, sustentar qualquer argumento em favor do porte de armas – da mera EXISTÊNCIA de armas? consegue não se posicionar ao lado dos que sonham distribuir renda? consegue não pelejar pela manutenção e melhora do sistema público de saúde? consegue ser contra a taxação de milionários? contra a criminalização de racismo e homofobia? contra a escuta atenta e evitante no caso das potenciais vítimas de feminicídio? contra a matança das espécies todas?

Cruzado todo um oceano de leituras, lições, evidências, passa a não existir senão oceano; mesmo um improvável ensaio de retorno não esbarraria em nada senão oceano, oceano adiante, voltante, circundante – oceano inevitável, oceano interminável, oceano compulsório e absoluto. Saber, estar ciente, é um mar ciumento que não deixa em nós coisa alguma desencharcada, coisa alguma que não passe a ser a mesma certeza que a contorna. Não apenas defendemos a igualdade, SOMOS a igualdade; SOMOS o antipreconceito; SOMOS o fim de todas as manifestações do escravismo. Para além do point of no return de uma nossa convicção intelectual e ética, resguardá-la é resguardar-nos, protegê-la é proteger-nos mesmo à custa de nossa desproteção.

Vale a pena? – é pergunta que não há, por não haver pena: nem autopiedade nem condenação nem dor. O que há é o abraço entranhado de um fiat, a incondicionalidade da natureza que se cumpre. Ser é estar sendo até que não se diferencie de seu cúmulo.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Eu lhes desejo


Abraço de deitar no peito, micro-ondas que aqueça no meio, despertador que não grite cedo, fotos amadas de corpo inteiro; lençóis autodobráveis de elástico; nenhum serzinho d'água sepultado em plástico; zeríssimo trauma de música do Fantástico. Mais Baby Yodas, menos golas, mais memórias, menos emboras, mais agoras – e certamente mais após (cá entre nós).

Contas e rabanadas recheadas, dívidas pagas, paisagens largas, ceia farta, livro da Martha. Perspectivas. Alternativas. Respeito aos fatos e mãos nenhumas fazendo o Pilatos. Gratidões de criança, dança, dança (por enquanto na sala ou na varanda), pinturas de lavanda, guirlanda, gente bacana. Fim de semana. A cura da terra plana. 

Basílica de Aparecida, documentário do Emicida, estrada matusalênica de vida, ideia que calha precisa, delícias da Pixar, grana no Pix, joias da Netflix. Rock, Loki, Pedro Bloch, Roupa Nova, roupa folgadinha, Boulos de Celtinha, pacote de figurinha, live da Teresa Cristina, vacina, piscina, purpurina, serotonina, ocitocina, medicina. Família que raciocina.

(E nenhuma na esquina. Nenhuma com fome. Nenhuma sem nome.)

Extinção de racistas, fascistas, elitistas, negacionistas, armamentistas, absolutistas. Mais abelha, menos gafanhoto. Mais Calcanhoto. Mais cabelo solto. Mais pés descalços por escolha, mais salubridade fora da bolha, mais folha, mais flor, mais amor – menos calor, por favor. Frescor na fala, na sala, leveza na mala, rodado na saia, jogo sem vaia. Pitaya. Goiaba. Durante-férias que não acaba. Brisa que não para. Rima rara. Turminha do mal quebrando a cara (to-ma-ra). 

Buganvília, receita de família, horas de livraria, ducha quente em noite fria, ducha fria em tarde quente, presente, nenhum ausente. Amor recente. Amor antigo. "Xá comigo", figo em calda, artigo de uma lauda, lua alta, amanhã sem falta. Som de flauta – transversa – que atravessa o peito e a pauta. Sol para o dia, e vice-versa. Fim do assédio, saudade com remédio, síndico mara no prédio, balão de hélio, tênis velho, chinelo, 7Belo, caramelo, AmarElo. História com castelo. Ensinar sem enxugar gelo. Flor no cabelo. Doce de marmelo. 

Um planeta mais ameno, menos tenso, mais manso. Mais descanso. Convívio sem ranço. Menos chamadas, mais piadas, mais alívio. Cartas trocadas, gorjetas dobradas, almoços sem tretas, Romeus, Julietas (sem morte), dias e vidas de sorte, mais vozes pretas, mais nenhum adeus. Festivais, manacás, Cascais, vocais, Theatros Municipais, encerramentos do caos, lições para os Lobos Maus, luaus, Bacurau. Aurora boreal. 50% cacau.

E um feliz Natal.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Órfãos da Terra


24 de dezembro, no Brasil, foi declarado Dia do Órfão – e considero escolha de acertadinha sensibilidade: é provavelmente o dia que mais amacia toda a gente para o que é mais sozinho, mais vulnerável. Há na data, claro, o componente paralelo, o do preparativismo estou-ocupado-me-deixa-não-posso-ver-isso-agora, sempre atabalhoado de compras e providências e ceias; mas paira indiscutivelmente um sopro de enternecimento e colo no mundo. Está-se, em geral, suscetível a ver, competente para pressentir – em parte pelo Natal mesmo, em parte por uma talvez subdivisão emocional entre empatia, exaustão e culpa, variando de proporção conforme a vivência do sentidor. Existem os de natureza feita de amor perene (tenho a honra de conhecer alguns), existem os que ficam tenros para dores alheias à força de serem moídos pelas próprias, existem os indiferentes por hábito e ofício que são cooptados pela época e, meio avexadamente, passam um tempo se importando. Seja o que seja; a data é boa, propícia, capaz de flagrar poucos fora de uma (pelo menos aparente) postura de acolhimento à orfandade no sentido mais vasto.

Porque orfandade vai muito além de sua representação mais direta – e obviamente mais relevante: a da criança tutelada pelo Estado (ou por ninguém) após a perda dos pais. É a imagem mais icônica do desamparo, porém não a única; dão-se orfandades várias, várias, em todas as idades, de gente que desconhece o básico da infraestrutura humana, o mínimo de apoio, zelo, desvelo. Gente born into emptiness, "nascida para o vazio", como resumem os versos de "Learn to be lonely" (canção de Lloyd Webber feita para os créditos finais dO Fantasma da Ópera); gente naturalmente não destinada ao vácuo emocional, mas de toda forma recebida por ele. Há órfãos de pais que, embora vivos, são de sua parte também órfãos morais, destituídos de tradição afetiva, de percepção humanística pré-requisitada para a criação de pessoas. Há órfãos de pais abusadores, menores de idade presos entre a perversidade de um elemento do casal e a cegueira – não raramente voluntária – do outro. Há órfãos de pais que concordam em prostituir seus filhos. Há órfãos de pais áridos, desérticos, sádicos, narcisistas, autocentrados, inseguros demais para qualquer vínculo, egoístas demais para qualquer gratuidade. Há órfãos de pais que não morreram mas mataram: mataram cedo, mataram logo, cortaram rente o direito de seus pequenos humanos propriamente amanhecerem, inaugurarem-se no planeta com a sagrada fé na vida e na espécie. Órfãos que tiveram sua ideia de família assassinada pela "família" mesma.

Há órfãos também adultos, e não apenas os que viram morrer seus ascendentes imediatos num ciclo natural, mas notadamente os que se encontram à deriva de assistência e afeto. Pessoas em situação de rua não buscadas por parentes de coração ou sangue, velhinhos abandonados pela filharada em clínicas e asilos, doentes de vício cujas necessidades já superam largamente as possibilidades da família exausta, mulheres encarceradas e gaslighteadas em relacionamentos abusivos, orfanadas até de si próprias. Cidadãos traficados, escravizados, aprisionados em enredos que são o puro milk-shake do inferno (viram o caso estarrecedor da Madalena, divulgado esta semana?). Enfermos mentais de que a maior parte da parentada já desistiu. Familiares que não desistiram, porém estão absolutamente isolados e desamparados no ato de cuidar desses enfermos. Refugiados que tiveram despedaçados os meios de contato com os seus e se veem atônitos em cultura estrangeira. Tantos, tantos, tantos carentes duma cota essencial de chão, de raiz, de referência, de laço, de cura, de perspectiva, de espelhamento; humanos que orbitam sem eixo humano, astros em desastrosa colisão com o nada para o qual não fomos feitos.

Como revela o Menino que nasce quase hoje, fomos feitos para tudo – para o amor, que é muito exatamente tudo. De níver, o Menino nos quer presentes para os desfuturados, lembrança para os esquecidos, doação para os doídos, cartão para os descartados, regalo para os relegados. O Menino nos quer para quem não tem.

(Em toda esquina é Belém.)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Coisas tranquilas


Enquanto escrevo, ouço volta e meia o plim-plim da Sessão da Tarde nos arredores, abrindo e fechando blocos, abrindo e fechando blocos – seguido pelo turum que anuncia o closed caption disponível. Sim, é um reconforto; há tantas camadas morninhas nessas onomatopeias de vida, há uma consciência delicada de vizinhança sem haver qualquer invasão ou mesmo interação, há a nitidez de que o horário transcorre macio o bastante para que alguém sente diante de um filme, há a impressão de que em volta existe gente enrolada no cobertor e atracada num café com leite ou chocolate (a regra é clara: chuva contínua abre o protocolo de frrrio na Constituição carioca, diga o termômetro o que diga), há a sensação de que ainda é cedo, vê?, a história ainda não terminou, ainda não principiou o ciclo de novelas e jornais e novelas, temos plim-plim ainda, o lá-fora continua visível pela transparência da cortina, sossegue a urgência. O mundo assim está mergulhado naqueles abraços de inverno, embora estejamos recém-pós-primaveros (e muito francamente verânicos); está repousado e repousador, mansarrão como seu próprio silêncio só quebrado por faíscas de gente vivendo,  chuvica se precipitando, ave ao longe bem-te-vendo e te-vindo, algum carrinho de feira, algum estalo de geladeira ou móvel – o barulho estritamente preciso para que o silêncio, sem oprimir, se confirme.

Penso em coisas tranquilas, essas parentes da Sessão da Tarde plim-plindo, esses feelings de não-sei-quê de veludo que nos aconchega em tempos de nervoso, de estridência, de jingle-agitos. Chá com torradas; livro que com antecedência já sabemos gostado; meia (apesar de eu pouquissimamente usar meia, numa negação terminante de que aqui também faz frio); roupa já todinha pendurada no secador; roupa já todinha resgatada do secador e acomodada no armário; amaciante – no cheiro e no tato; perfume de entrar em livraria; perfume de entrar em padaria; perfume de entrar no Starbucks (beijo, Starbucks); telefilme no qual a mocinha ou mocinho enganado descobre em bom momento que é enganado e prepara sabiamente a captura do enganador; itens arrumados em ordem de arco-íris; cair de noite rosadito; deslizar dos comissários de bordo pelo avião com seu indefectível carrinho de refeições; explicações em inglês, quando não anasaladas nem ligeiras demais; recendência verde e terrosa de mato chovido.

E palavras cruzadas pós-banho, pós-dia, pós-tudo, enquanto corre programa no Investigação Discovery. E caixa de e-mail com nenhuma leitura pendurada. E hora do lanche obrigando a parada. E episódio novinho (para mim, naturalmente) de Cold case. Água na temperatura certa, para as atividades todas. Gente sardenta. Olhos cor de mel. Broazitas de fubá. Casas de chá. Compras já feitas. Obrigações já feitas. Sites de curiosidades malucas. Testes de sites de curiosidades malucas. Televisices SEM competição. Paisagens verdinhas de limo. Janelas carregando flor. Cabelos carregando flor. Nuvens botando o céu toooodo bordado de tufos. Candy colors. Bay windows com banquinho de leitura. Almofadas. Aquarelas. Acácias. Harpas. Glicínias. Caleidoscópios. Sonhos de creme. Silhuetas de árvore. Caixinhas de música. Vidraças com chuva. Rendas guipir. O que for possível e bordado de mais low-profilice, o que for mais impressionista e mais árcade, instruído para o não jogo, a ausência de petulância, cobrança e desafio.

O que nos salvar para a outra margem do rio.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

As cem existem


Um poema-flechada de Loris Malaguzzi declara lindamente que "a criança tem cem linguagens (e depois cem cem cem) mas roubaram-lhe/ noventa e nove./ [...]/ Dizem-lhe: de pensar sem as mãos/ de fazer sem a cabeça/ de escutar e de não falar/ de compreender sem alegrias/ de amar e de maravilhar-se só na Páscoa e no Natal./ Dizem-lhe: de descobrir um mundo que já existe/ e de cem roubaram-lhe noventa e nove./ Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho/ a realidade e a fantasia/ a ciência e a imaginação/ o céu e a terra/ a razão e o sonho/ são coisas que não estão juntas./ Dizem-lhe enfim: que as cem não existem./ A criança diz: ao contrário, as cem existem".

As cem existem, e não precisa nem um pouco ser criança etária para se enervar absurdamente com esse povo binário, de coração seiscentista e neurônios de gesso. O que me irritava em eu-menina permanece em estado de irritância; uma das coisas, aliás, que lembrei logo ao esbarrar com o poema – por ter muitíssimo a ver com a poda de noventa e nove linguagens –, era o hábito de a adultez que me cercava dizer: não mexe. Claro, em algumices muito quebráveis, muito desequilibráveis, muito desarmonizáveis a gente não mexe. Se machuca, arranha, corta, queima e iguais desastres, a gente não mexe. Mas às vezes é um item da loja que não nos ameaça as mãos e que nossas mãos não ameaçam; às vezes é um livro, uma criatura de pano, uma caixa de sucrilhos, uma embalagem modelada para a sedução em que precisamos, sim, mexer – porque "veja com os olhos" é o mote adulto mais disparatado de todos os tempos. Olhos?? olhos têm limite de mais para darem conta de sabença; vê-se com eles em primeiro flerte, em chamamento, porém olhos não manipulam até acessar todos os ângulos, olhos não atingem a percepção do veludo, olhos não aproximam o objeto de estudo do nariz (OK, péssima ideia numa pandemia, mas não tinha pandemia neu-menina). Olhos só conhecem numa língua, e descobrir é poliglota. Nascemos e crescemos poliglotas para mundo – até que os nãos dos que foram encaixotados começam a encaixotar-nos e a nos tornar futuros encaixotadores. 

As cem coisas existem juntas ainda assim. É possível ser profundamente religioso e acreditar profundamente no científico, inclusive como uma celebração fabulosa de tudo que se entende como criação. É possível amar o país onde se nasce e criticar com frieza clínica cada um de seus despautérios. É perfeitamente viável ter fascínio viajante pela Europa ou pela África e ser insanamente feliz na Disney. É totalmente cabível (recomendável, por sinal, já que filho é MUITO mais para sempre) ter atuação profissional excelente e sair mais cedo às quartas porque é dia do cinema com sorvete. Gente é para tudo que resulta bom; pode ser gênio na astrofísica e no violino, pode ser Nobel e ler HQ da Turma da Mônica, pode ser Dr. Jones na universidade e Indiana em todas as demais ocasiões, pode curtir funk e Beethoven, pode ser uma vovozinha boleira nerd, um surfista carateca metaleiro, uma costureira fotógrafa velejadora, um escultor de noivinhos para bolo viciado em problemas matemáticos. Tudo pode ser, se não tiver na base uma exclusão conceitual (nenhum fascista há de ser considerado uma pessoa iluminada, por exemplo, visto que uma das raízes devora e elimina a outra); inteligências se brincam, se enriquecem, se entrelaçam, mutuamente se fecundam e gestam mundos que andam à espera de existir: os melhores. Aqueles que (a)gentes da estagnação fingem aguardar, fingem cobiçar – porque pega bem oxalar mudanças –, mas que fora do Face são incapazes de estimular ou promover.

Mexam sim nas prateleiras do mundo, pessoas sobejantes, excessivas, criativas; mexam, mexam-se, transbordem-se em cem e depois cem cem cem. Que desvios nos desviem para tempos repletos de também.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Jogo de dama


Vi enfim O gambito da rainha, e fiquei arriada de quatro peões e de verde e amarelo – ou de preto e branco. Me atrevo a fazer aqui uma partidinha comentada; aviso, porém, que é só para quem já jogou o jogo, ou antes o torneio de sete episódios, dada a spoileragem furiosa das linhas seguintes. Avance casas por sua conta e risco.

Abertura. É absolutamente louvável que o primeiro movimento da narrativa não seja o clássico momento-de-glória-da-protagonista, para o qual os flashbacks seguintes caminharão. Sim, eles caminharão para esse momento – mas, à moda do cavalo, passarão por cima dessa área do tabuleiro sem se deter nela; não é sua posição final. Da mesma forma, a posição inicial de Elizabeth Harmon em sua história de formação (filha de pai mui pouco empenhado em não ser ausente, órfã de mãe mentalmente instável e suicida, interna de um abrigo para meninas quimicamente serenadas pela diretora, discípula querida dum discreto zelador), embora reúna TODAS as pecinhas para descambar num dramalhão, não dá sequer uma leve espiada nessa tentação de abismo. Ao contrário: o roteiro é preciso, é cerebral como o esporte que homenageia e emula, e se afasta (quase) completamente tanto de horrores quanto de derramamentos hollywoodianos; nem se trata de um orfanato de típicos sofrimentos, nem há companheiras ou administradoras sádicas, nem há choro de solidão na cama, nem se dão largas e explícitas manifestações de afeto, nem ocorre exploração da genialidade infantil. Não é Jane Eyre, não é Matilda, não é Meninas malvadas, não é Menina de ouro – é um início de partida econômico sem ser burocrático e o mais refratário possível a clichês. Por sinal, a lógica de jogo interessantemente se mantém após a adoção de Beth, já que (em oposição a seu novo quarto) a "realidade" familiar e escolar não se mostra mais afetiva nem mais cor-de-rosa, mas não se detém em crueldades tampouco; até o bullying direcionado à enxadrista escoa ligeiro e lacônico.

Peça maior. Anya Taylor-Joy, intérprete da jovem Harmon, é SEM DÚVIDA a rainha da p**** toda, impecavelmente fabulosa nas mínimas construções. É uma delícia completa constatar o quanto a protagonista vai se transformando a cada episódio, passando de uma introversão analítica a uma germinação de puro charme, de estranha e extrema beleza, de florescimento na sensualidade e na postura, sem no entanto perder nunca sua contenção e mesmo sua dureza sentimental. Se a guria não devorar todas as premiações televisivas, é lance ilegal ou não sei de mais nada.

Roque. Um dos aspectos mais extraordinários do roteiro é a tentativa aparentemente sincera de inverter as expectativas de gênero, conferindo a Beth um domínio entre os "reis" e, a vários homens de sua vida, uma posição de vassalos ante a torre inacessível. Não sexualmente inacessível, porém; são o talento e o engajamento mais profundo da poderosíssima Harmon que sua corte não atinge, nem força a partida para atingir. Harmon é metonimicamente, desde a infância, aquela que joga a boneca no lixo, que não tem a mínima identificação com trejeitos e objetivos tipicamente projetados sobre a imagem da mulher – e que ainda assim, para confundir mais a meiuca do tabuleiro, adora figurinos lindinhos e segue com interesse a moda.

Zugzwang. Acontece que, nesse esforço empregado em fazer o roque dos gêneros, a série comete também jogada braba contra si mesma: acaba gerando a idealização de todos – TO. DOS. – os amigos homens de Beth no universo do xadrez, o que inclui 99% dos espécimes masculinos de algum modo relevantes no trajeto da heroína (excetuando apenas seus dois "pais" e seu primeiro peguete). Mr. Shaibel, Harry, Benny, Matt, Mike, Townes, até os grandes antagonistas russos como Borgov e o ultrajovem Girev, nenhum lhe demonstra nada senão respeito, admiração, amizade, chegando por vezes à devoção e ao amor. Ninguém a intimida, ninguém a assedia, ninguém se aproveita, ninguém se mostra ressentido (demais) ao ser triturado dentro e fora das 64 casas: todos espetaculares, todos cavalheiros, empenhados em garantir o equilíbrio e a sobriedade da protagonista. Em contrapartida, são as mulheres que encontra no percurso as aparentes responsáveis por seus "descaminhos": a diretora Deardorff, que a inicia nos tranquilizantes; Jolene, que mesmo sem más intenções contribui para o vício em tempos de orfanato; Alma Wheatley, que acaba "acrescentando" o alcoolismo às dependências da filha adotiva; Cleo, que compromete decisivamente a estabilidade de Beth num momento crucial da carreira – fora, claro, a atormentada Alice, mãe biológica que por pouco não se torna sua assassina. Jogadas feias, feias, feias dentro de uma narrativa supostamente voltada para o empoderamento feminino. 

Coroação. Felizmente, sobra também coisa bonita. A relação fascinante de Beth com Alma, cheia dum carinho oblíquo, dum companheirismo inusitado, dum amor indiscutível acompanhado de chocantes irresponsabilidades, é sem dúvida um dos arcos dramáticos mais instigantes que já vi na ficção – EVER. Os figurinos que acompanham a evolução de Beth são, em si, quase um outro personagem, com destaque absoluto para o derradeiro: vamos combinar, ela encerra a saga como a própria encarnação da rainha branca que acaba de abater o rei adversário. Por sinal, a inevitável metáfora (escancarada desde o título) que mescla Harmon com as peças de seu jogo leva a um igualmente inevitável comentário social; não é gratuito, certamente, o fato de sua melhor amiga Jolene ser negra – e o fato de a enxadrista ter sido adotada e Jolene, não. Afinal (os ultimate leigos como eu aprendem essa minúcia de regulamento na série), ATÉ NO XADREZ as peças brancas são movidas primeiro; estar na posse dessa informação e vê-la tristemente mimetizada na trajetória das personagens, sem que o texto tenha o mau gosto de se tornar óbvio e nos berrar o detalhe ao pé da orelha, comove até a medula. Comove ainda mais, dilacerantemente, ver a gratidão discreta de Beth com relação a Mr. Schaibel romper-se enfim em torneirinha, numa sequência de desenvolvimento previsível mas nem por isso menos enternecedor; e era indiscutivelmente justo que o amor mais incondicional, entre todos os retratados, fosse o homenageado do último lance: o "retorno" da enxadrista coroada a uma partida com seu primeiro mestre (representado por dezenas de senhorezinhos russos – fofos – amantes do xadrez pelo xadrez).

En passant, como não acrescentar? Não há Defesa Siciliana possível contra os olhos de Elizabeth Harmon, que se convertem na obsessão obrigatória de qualquer de nós que se atreva a topar o embate.

Xeque-mate.

domingo, 20 de dezembro de 2020

A bondade endurecida


Cá em nosso Brasilzito, 20 de dezembro foi eleito Dia da Bondade. Confesso ter tido sempre uma implicância chatinha com a palavra, por achá-la cafona – a PA-LA-VRA, bem entendido, obviamente não a bondade em si; ao contrário: considero todos os sentires e fazeres sórdidos de uma cafonice imensurável, porque fáceis, previsíveis e rasteiros como ornamentação de péssimo gosto. E justamente essa turma imersa na bregalhada emocional costuma cobrir seus maus ímpetos com paninhos (quentes) verbais, entre os quais a clássica bondade que habitualmente se usa em tom condescendente, como sinônimo de Papai Noel way of life – a coisa de presentear ou mandar cesta básica em datas festivas, de dar a ajuda superficial e episódica que figura bem nos murais do country clube. Toda ajuda é claramente bem-vinda, ainda que apimentada de promoção pessoal; resumir a isso a bondade, entretanto, é indecente e parvo. Bondade legítima não fica apegadinha a selfie nem escolhe o que não vai causar polêmica à mesa do chá. Bondade raiz não diz "no meu tempo" nem separa os carecidos entre auxiliáveis e se-danáveis. Bondade não julga, bondade incomoda, bondade protesta, bondade peita governo, bondade não é suspirante nem batedora profissional de continência nem palerma. Bondade nem sempre é boazinha.

Neruda resumiu magnificamente ao afirmar que "os bons serão os que mais depressa [...] souberem dizer a sua bondade endurecida contra todo aquele que a merecer. Bondade que se move, não com alguém, mas contra alguém. Bondade que não agride nem lambe, mas que desentranha e luta porque é a própria arma da vida. E, assim, só se chamarão bons os de coração reto, os não flexíveis, os insubmissos, os melhores. Reivindicarão a bondade apodrecida por tanta baixeza, serão o braço da vida e os ricos de espírito". Touché: bondade endurecida contra todo aquele que a merecer, bondade que desentranha e luta. Não a menina comportadinha que acata porque é regra acatar, e não sabe o que está acatando, mas a que às vezes ataca – mete o dedo na cara dos injustos, faz um escarcéu contra preconceituosos, vira onça para dar guarida a indefesos. Não a mocinha de família que obedece sem reflexão, mesmo à custa da consciência e da lógica, mas a que dá sacralidade ao que é íntegro muito acimamente do que é lícito. Ora, leis de Estado e governo já abraçaram a escravidão, o nazismo, o trabalho infantil, o apartheid; situar-se rigorosamente dentro de leis escritas por e para poderosos não atesta nenhuma bondade, nenhuma correção portanto. Jesus, Tiradentes, Joana d'Arc, Gandhi, Luther King, Mandela não foram exatamente gente que priorizasse o encaixismo sobre deveres e convicções – e se hoje são todos símbolos de amor, retidão e coragem, o mesmo não pensaram decerto os seus contemporâneos, que os presentearam com prisão e/ou morte não apesar de, e sim por causa de suas reputações. 

Ser considerado inconveniente pelos maus é absoluta obrigação dos bons. Ser registrado como pária, agitador e rebelde em dossiês confeccionadinhos por criaturas que moem cérebros com fake news, que celebram armas e queimadas, torturas e censuras, chacinas e desvacinas e cloroquinas, homofobia, racismo, achismo, machismo, assédio, assassinato, agressão à cultura e à ciência, leitura criminosa da religião como um fanatismo de insanos – ser incômodo para (e até odiado por) esses seres das trevas é o que se espera de qualquer funcionário da luz. Embora não violenta, não agressiva, a bondade é necessariamente insubmissa e inflexível, conforme bem o assinalou Neruda; mas insubmissa e inflexível ANTE OS QUE ABUSAM DO PODER. Com os mansos a bondade é mansíssima, com os humildes é ajoelhante, com os pequenitos é sim flexível e macia e moldável infindavelmente, coberta de chocolate granulado e açúcar. Unicórnio na lida com os esmagados, velociraptor na jugular de esmagantes; Sininho com oprimidos, Jason com opressores; Baby Yoda para explorados, Kraken para vampiros. Bondade original de fábrica destina, ao topo da pirâmide, no máximo civilidade e cortesia – jamais leniência. Bondade não sabe falar baixo quando é por ela que as evidências gritam. 

Quem tem ouvidos para ouvir, que a ouça. Quem não tem que se prepare para as resultâncias: vai ter.

sábado, 19 de dezembro de 2020

Poesia é quando


"Poesia é quando a tarde está competente para dálias", escreveu Manoel Amadíssimo de Barros, e duvido alguém ter moral para discordar. Só entidades da envergadura da poesia podem estar, ever, competentes para dálias. É um superpoder evidente e reconhecido em cartório (Manoel de Barros, para poesia, é cartório – ou mais precisamente embaixada), tão rutilante que me deu ganas de aprofundar a pesquisa de tudo quanto a poesia é, sendo poesia quando. Pois então. Segundo precisamente esses apurados estudos, a poesia é quando:

véspera de Natal coincide com olho de criança.

margarida e estrela, copuladas, dão em áster-arbustiva.

confete faz memória de outono.

a noite faz compêndio de frases.

o tropeço fica obliquamente pronto antes do chão. 

um azul muito consecutivo de céu se interrompe com dente-de-leão. 

um pêssego é deglutido só em palavra.

até na sombra a hora tem perfume. 

o amanhecer é exclusivo no intervalo das árvores.

vão três copos d'alma em receita de livro.

metal só não desiste de compor reflexo. 

lua tende para sal.

vento parece diagonal nos cabelos de uma muito amada.

não se copia melhor com lápis de cor nem com banjo. 

não há condição de indesvios.

um círculo de toque casa a pedra com a água.

uma cadeira acontece devagar, sob a ausência do que sempre. 

a data acorda intrínseca.

tem haikai no submundo do pântano.

é um absurdo o sol não ser relicário.

quase todo relâmpago se especializa em janela.

mora purpurina em qualquer coisa que por enquanto. 

todo acontecer é de vidro.

nenhum crepúsculo acabou ontem.

três metros de absurdo nos naufraga.

o caminho se mente inédito.

e todas as possíveis conclusões que confirmam o disparate de nascer enviesado para o que há e bem exatamente líquido para o que falta.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Valsa das flores

Estreou num 18 de dezembro de 1892, no Teatro Mariinski de São Petersburgo, a obra que me fez estrear também como pequena frequentadora do Theatro Municipal do Rio: O Quebra-Nozes, essa doçura bailante e natalina composta por Tchaikovski sobre um conto infantil de E. T. A. Hoffmann relido por Alexandre Dumaszão. Dificilmente vai haver, na história da humanidade, outro balé com tantos hits por compasso quadrado – entre os quais se destaca (na minha favoritice, ao menos) a irretocável, a fabulosa "Valsa das flores". Eu já a tinha no ouvido desde Fantasia, porém vê-la se encarnando no palco é coisa que nem uma Disney de cinema consegue superar; minha já então romântica e oitocentista almita de onze anos deveu muito de seu amor por valsas à idealização do velho Tchai e de seus parças artísticos, ainda que indiretos. Quem ama valsas já teve o coração inevitavelmente dançado por Tchaikovski e por Strauss: fatão. Um desnaturado capaz de ignorar as flores de um e o rio do outro não é digno nem do um-dois-três que a pontinha dos dedos batuca.

Espero que the good old Tchai me perdoe a ousadia, mas agora de pronto só me ocorre homenagear a "Valsa das flores" ensaiando miudinhamente outra valsa das flores: assim compassada, botando na cesta braçadas, braçadas de rosa e quetais; rodante, rodante, maluca e liberta, coberta de gérberas, íris, gardênias, orquídeas, jacintos, moreias, ciclames, centáureas, ipês, manacás. Ali pingo cravos, ali astromélias, no canto agapantos, na esquina boninas, cravinas, camélias, bromélias, lobélias, gloxínias e zínias, lavanda, alamanda – e aos pés da varanda begônias, peônias (talvez helicônias); torênias tocando seus altos trompetes, os ruivos tagetes chorando defuntos; e juntos, bem juntos, amores-perfeitos, coroas-de-cristo, jasmins-dos-açores. De todas as cores, de todos os jeitos, salão e sujeitos que estreitam cinturas, que arriscam tonturas, se vestem de flores.

Alguns oleandros de olhares malandros, algumas acácias de largas audácias, hibiscos ariscos, verônicas tontas, gailárdias gaiatas e nêvedas ledas: volteiam, volteiam em pares, sem pausa, deslizam no piso. Se adora o narciso, se apruma a pervinca, a prímula brinca nos braços do noivo – e o goivo, enlutado de amor d'açucena, sem pena se aturde no agito noturno. O amigo viburno se achega à nemésia (e à frésia, e à lilás, e à lantana, e à mimosa); anis, tuberosa, campânula, lótus se exibem às fotos, as sálvias às selfies, e só madressilvas espiam remotos indícios d'além do jardim: a noite tem fim. 

Mas não, não assim.

As clívias, as clúsias (também clematites) não topam limites e giram, às dúzias. Junquilho e giesta se agarram à festa – rodantes, rodantes, no longo estribilho: é cedo, é tão cedo, inda a noite é criança; há tempo pra dança, tão mais! há tão mais! Alpínia, edelvais, rododendro, petúnia, nigela, agerato mantêm a esperança na dança perene; porém já é fato: é dia, amanhece, senhores, senhoras. Acorda, onze-horas; faz sol, dormideira; bem-vinda, amarílis, tulipa, azulzinha, batom, capuchinha, heléboro, anêmona, acônito, hortênsia. Jasmim, paciência. Perdão, margarida. É tempo de farra também colorida, naquela outra valsa que nunca se encerra – que gira co'a Terra, que roda co' mundo, intensa, perpétua, sem falta, sem fuga, sem alternativa.

Sempre-viva.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Para veres com beleza


Espiem só que boniteza aguda o dito de Henri Frédéric Amiel, escritor e filósofo suíço: "Vê duas vezes para veres com exatidão; vê apenas uma vez para veres com beleza".

Os lugares de infância, por exemplo. Se não crescemos androides, e sim pessoinhas de pulmões e veias, nossa memória de formato, detalhe, cor e (principalmente) tamanho dos lugares de infância não tem a mais remota precisão; é tudo grande demais, misterioso demais e lindo. No quintal de tantos brinquedumes não se encaixavam de verdade essas correrias todas, o lá-fora não era assim tão exatamente poético, tão fresco, tão arborizado; por dentro, no entanto – mesmo na visão que pode não ter ocorrido uma só vez no calendário, mas que se deu numa só época, num cantinho único da biografia –, está tudo embrulhado nas percepções sagradas do eu-pequeno, que cabia muito fartamente naquele espaço prodigioso e sobrava um quilômetro. Nosso filtro dos Natais, aniversários e Dias das Crianças passados transforma toda a lembrança daquelas áreas num monumento íntimo de absurdos? Mexe não, deixa assim. Por muita felicidade minha, me é impossível revisitar a casa que me cresceu até os oito anos: melhor que já não exista fisicamente do que ser mentalmente demolida a um relance de olhos adultos. Melhor que se mantenha de pé em flashes, bela e incerta, do que ser abalada pela presença de um corpo agora incabível em seus limites. Dorme aí sossegada, casinha antiga só acessível nas fotos – que não te violentam com um esquadrinhamento físico, que te levam somente nossos pensamentos sem matéria, que te preservam para sempre de qualquer tentativa de exatidão. 

Acontece também com filmes, livros, novelas: nenhuma revisita pisa o mesmo piso. Somos sempre outros, até bem outros, quando voltamos às velhas cenas – mas com a diferença fundamental de o caso aqui ser de arte, entendimento, cognição, não meramente de recordação e saudade. Ao contrário dos troncos e membros que, crescidos, espremem em excesso a memória feliz dos espaços, espera-se que a cabeça (ou seu conteúdo) mergulhe muito mais nas obras quanto mais esteja ampliada: há mais bagagem para a recepção, mais caminho por trás dos olhos, mais malícia para os diálogos, mais sensibilidade para as estéticas, mais gabarito para ligar os pontos. E mesmo assim – mesmo concordando que a leitura das segundas vezes costuma ter uma integridade que escapa ao ímpeto das primeiras –, devo admitir o gosto um pouco amarguinho que fica quando a maior experiência diminui o alumbramento, diminui o susto ingênuo inicial, aquele que eventualmente guardamos como se guarda o quintal onde se cresce. Posso testemunhá-lo com relação a um meu livro muito amado, As pupilas do senhor reitor, que conheci com a inocência literária dos quatorze anos e para o qual voltei com a estrada dos quase quarenta. Ainda maravilhoso? certamente; porém já sem o encanto da inauguração no português lusitano, num mundo de aldeiazinha até então ignorado, numa construção de personagens bem diversa àquela altura. Os primórdios de nossas paixões artísticas, nossos choques originais, nossa limpeza de crítica e de olhar, nossas virgindades de vida e conhecimento, nossos acatamentos de consumidor obediente não serão reproduzidos – e NÃO DEVEM sê-lo. Não devem sê-lo porque nós não seremos reproduzidos em qualquer outra idade tampouco. E ainda assim frustra. Ainda assim dói.

Dói o peso da exatidão porque minimiza o da beleza fresca. Doem os encontros seguintes porque roubam potência ao encontro inaugural. Mas voilà, eis a etiquetinha de preço grudada no privilégio de adultecer: deixar de enfeitiçar-se para mansamente amar, curar-se do que é maníaco com a medicina do raciocínio, que por trás da frieza falsa sorri cheio de compaixão, ternura e covinhas. Bendita seja, anyway, cada uma das inevitáveis primeiras vezes de nossos olhos já maturados; felizmente existirão sempre, para (ao menos por momentos) nos capturar numa tela de luz e susto.

Toda porçãozinha de coração que não queimou permanece ainda fértil – e tão mais florível quanto maior for o terreno adubado pela riqueza orgânica da velha impressão.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Tem gente pedindo pouso


16 de dezembro marca o início de um festejo novenário e lindinho, típico do México e outras áreas das Américas que tiveram colonização/influência hispânica: Las Posadas. Desta data até a véspera do Natal, desenrolam-se as encenações e orações – nove dias que relembram os nove meses da gravidez de Maria, assim como os perrengues que ela e José passaram durante a viagem de recenseamento, em busca de lugarzinho seguro onde Jesus pudesse nascer. Mais ou menos assim o costume, com variantes regionais: a cada noite, um determinado endereço é escalado para receber a Posada; crianças e adultos da vizinhança são os peregrinos que vão de casa em casa, entoando uma cantiga tradicional a respeito da saga da Sagrada Família procurante dum pouso, e de casa em casa sua entrada é recusada como na história bíblica. Até que os caminheiros chegam ao local combinado da Posada, Maria e José são enfim "reconhecidos" e todos ganham acolhimento para as devidas celebrações. Uma forma ritual e fofa de recordar: tem sempre gente em volta pedindo abrigo, pedindo ensejo, pedindo chance, e mesmo que invisivelmente pode estar trazendo, dentro, um tamanhão de luz que nem se atina.

Tem gente pedindo pouso, ô! como. Gente coberta dum talento que não sabe pra onde abrir asa, gente insuspeitamente fundamental para o mundo (a rigor todos são, que a natureza é precisa e ingastadeira), porém desperdiçada, desbussolada, desobservada, não raramente desavisada até do mais básico de suas potências, até da obviedade de guardar-se em benefício de futuros possíveis. Gente desabituada a considerar-se por não ter sido considerada nunca, e portanto desabrigada e desobrigada inclusive de si, compreensivelmente incompetente para se fornecer o amor que motiva e autopreserva.

Tem gente pedindo pouso: gentezinha que habita ainda uma infância cheia de alvíssaras, confiada (com justiça) em que lhe ponham a inocência num cofre; ou gentezinha já traspassada dalguma dor crua, esperançosa num abrir de porta que lhe desestreite as margens. Tem gente miúda e graúda pedindo berço, pedindo braço, pedindo colo, pedindo tempo – o tempo só bastante para a ajuda no atravessamento duma estrada ou duma época, para o amparo na injeção ou na dívida, para o apoio na água, no gás ou na matemática. Gente por aí espalhada, à penca, à beça, que não tem e queria bocadinhamente ter um minuto de lar, uma brecha de pertencimento. Um lance. Uma alternativa.

Tem gente demais da conta pedindo o mínimo – de sorte, de norte, de suporte, de saída, de guarida, de ação, de proteção, de crença, de presença; gente desvista pedindo olho, gente refugiada pedindo refúgio, gente carecendo de menos estresse e mais GPS, de mais dança e menos cobrança; gente buscando asilo de amigo, peito de irmão, mão de parceiro, ternura de amado; gente precisando não ter o aniversário esquecido, não ter as lembranças escoadas, não perder a constância do salário, não trocar por silêncio a gargalhada dos netos, não deixar para trás quem é, não abandonar o gosto de ser. Muita gente pedindo pausa. Muita gente pedindo pouso.

Tanta gente pedindo pouco.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Troféu Baby Yoda


Nunca vi nada do Mandalorian, nem preciso: já sei que a criaturinha toda trabalhada na perfeição a que chamamos "Baby Yoda" é uma das manifestações mais cabais da Fofura de todos os tempos – encarnação verdinha e olhuda de inocência, doçurice e pseudofragilidade, com toques de micronarizito, boquinha pronta a devorar um snack coaxante e mãozinhas se-preparantes para o uso da Força. Eu (em minhas propensões incontroláveis de Felícia), se encontro o bichinho, não seria impedida de estraçalhá-lo de amor furibundo nem por um exército de clones jedi. Amasso, achato, massacro, trucido e não tem sabre de luz que evite a carnifoficina. 

É sempre espiritualmente refrescante lembrar que há vários outros personagens numa galáxia não muito, muito distante do Yodinha em escala tchucsss, com semelhante potencial de (me) acordarem os instintos mais hannibalescos e iluminarem a vida – ainda mais nestes tempos avessos, estranhos, em que convém boiar terapeuticamente sobre tipos bem diferentes de insanidade. Minha provável favorita, ao lado do jedizinho miniatura, é a Tristeza de Divertida mente, desenhada por gênios que lhe amenizaram o sentido dando-lhe a representação mais adorável: cabelinho chanel, oclões, fartas bochechas, gorduchice, pezinhos microscópicos metidos em chinelos minúsculos (pelos quais, para cúmulo de adorabilidade, era arrastada para lá e para cá numa prostração quase cômica). Ponto para a delicadíssima sensibilidade da Pixar, que, aliás, costuma ser a Mãe de Todas as Fofuras, Primeira do Seu Nome, com talvez o maior portfólio de seres irresistíveis da história da humanidade; só por alto já me ocorrem a pequenina Boo de Monstros S.A., os pássaros hilários e balofos do curta For the birds, a também balofíssima lagarta Chucrute de Vida de inseto, os etezinhos verdes triolhudos da saga Toy story, o escoteiro japinha Russell de Up – altas aventuras, o bebê Zezé de Os Incríveis, a baby protagonista de Procurando Dory, os irmãos trigêmeos de Merida em Valente, o robozinho-título e os gordinhos "preguiçosos" de WALL-E, a Mamá Ines (ou Coco) de Viva – a vida é uma festa, o minichef Remy de Ratatouille. Ou seja, praticamente não tenho condições de assistir a quaisquer pixarices sem inutilizar o braço do espectador vizinho.

A mana Disney, embora não com tão tremenda eficiência, é outra clássica produtora de entidades geradoras de fofúria: o ratinho Tatá, em Cinderela; Bisonho (SEMPRE chamarei de Bisonho), o burrico depressivo que é amigo do Ursinho Pooh; Morph, espécie de slime espacial cor-de-rosa que rouba cena e corações em Planeta do tesouro; o hiperativo hamster Rhino, de Bolt; os trolls redonduchos que adotam Kristoff em Frozen; a versão nenê da personagem-título e seu porquinho Pua, em Moana. Fora, claro, as queridices que estão além dos domínios de Mr. Mouse, como os mínions burrildos e a encantadora Agnes – ela própria suscetível a fofúrias constantes, sobretudo por motivos de unicórnio – em Meu malvado favorito, o mogwai Gizmo em Gremlins, o gatinho (ou gatinha?) Pusheen, a apaixonadíssima Pucca, o pokémon de carreira musical frustrada Jigglypuff – sempre embochechado de revolta ao constatar que sua plateia dormiu mais uma vez. Tem mais, tem às toneladas, mas para economia de insulina vou me detendo por aqui no inventário de ternurices, com a precaução de declarar que o Baby Yoda Prize goes to todas e cada uma dessas coisinhas macias: não queremos nenhuns olhões de Gato de Botas derramados e pidões sobre nossa estabilidade emocional.

Que o equilíbrio e a sabedoria estejam conosco em todo novo esbarrão com tais ícones da amassabilidade, embaixadores da fofitude. Porque, se a Força estiver, eu mato.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Nada a fazer


Se é verdade que, como disse Victor Hugo, "não ter nada para fazer é a felicidade das crianças e a infelicidade dos anciãos", declaro-me contentemente promovida pelo mestre barbudão à categoria de criança. Não que em algum momento do dia, óbvio (para alguém não é óbvio?), eu deixe de estar fazendo alguma coisa; muito ao contraríssimo, tenho razões de ocupação em moto-perpétuo – escrever, lavar, pesquisar, guardar, pagar, caçar presente, caçar material, fazer exercício, resumir matéria, monitorar cada cantinho da casa em busca do que falta e deve ser incluído na próxima compra, logisticar os pagamentos e entregas, you name it. E isso SEM herdeiros trombando, entediando-se, pirando o home office, abrindo o supercílio e fabricando o caos pelos cômodos (mamães e papais, não sei como conseguis; em minha singela opinião o Nobel da Paz, da Matemática, da Economia e da cacetalhada completa já seria inteirinhamente vosso). De que maneira um ser humano nas CNTP visualiza um planeta em que não tem nada para fazer durante 24 horas é enigma que não me adentra a cabeça: impossível, filho, você que é negacionista ou avoado por demais, limpa os óculos e espia direitinho aí que tem. Mas o fato de eu SABER que tem e de FAZER (mui medianamente) o que tem significa olha-eu-feliz-de-que-tenha? Hell no.

Já falei milhões de vezes e recitaria outras tantas que sou de alma nascençamente passarinha, e nada, me parece, chegaria ever a convertê-la em praticante de workaholiquismo por propensão – no máximo por propulsão de algum desespero específico, e mesmo assim ao longo de raros minutos. Em reação de defesa natural, cresci com nenhum ar rebelde; malandragem, claro: a tentação de domar é, de costume, dirigida aos abertamente xucros, não aos arredios imanifestos, que não batem de frente a fim de acumular mais paz para operar nas sombras. Enfim, a hipocrisia? de jeito nenhum, economia apenas – de tempo e esforço. Hipócrita não fui nunca (desprezo o mais profundamente possível, aliás, embora talvez me divertisse praticando "hipocrisia do bem" entre canalhas, à moda de Schindler); tendente à estratégia de afastar os amofinadores para resolver as coisas mais a meu gosto, entretanto, desconfio que hei de ser sempre. Isso me põe na curiosa prateleira dos que não deixam de fazer absolutamente nada em troca da licença de não ter de fazer mais ainda – dos que cumprem o obrigatório para fugir ao obrigatório. E o fato de eu liquidar assim o obrigatório significa que zás, arranjei lá o troço de qualquer jeito e me livrei? Hell no way.

Por mais que tenha vontade selvagem e corcoveante, também não consigo ticar os itens taréficos sem um considerável desgaste qualitativo. Não sempre da mesma forma, e não com suficiente garantia de que a empreitada vai sair com uma cara que preste; mas é batata: se há que ser feito, em alguma medida vou sofrer, maior ou menormente; labutar tralalá da vida é que não vou. Uma arapuca. Me arrisco a afirmar que não se trata de perfeccionismo – quem dera! a amolação resultasse em algo próximo do perfeito –, não se trata de sentimento sério e polissílabo como res-pon-sa-bi-li-da-de, não se trata de senso do dever (essa secura que parece de general inventando pretexto pra guerra); haverá, quem sabe, algum componente de culpa, ainda que não uma culpa de tipo conceitual, místico ou quetais. Ou vá que seja isso tudo; porém, se for, digo que soube se fazer tão misturadinho a mim que não mais identifico nem destrincho. O que me vem no entendimento é se tratar de uma "culpa pessoal" – espécie de dor que dói fininha pela oportunidade negligenciada, desamada, nem que seja de tirar direito a mancha do texto ou da camisa, escolher o melhor verbo ou produto. E como meu sistema de gerenciamento de agonia elabora as cobranças? Deixando tudo maduramente para a última hora, quando já é restritiva em excesso a gaiola do tempo para que também se excedam os microcensores internos, os microanalistas de conteúdo. Yep, sou um pássaro que se esmaga para se libertar e não é por isso que fico mais livre.

Entendem? Eu muito menos; mas entendem, provavelmente, minha orgástica felicidade do não ter nada para fazer, premissa impraticável na realidade e compreensível em tese: inexiste o nada-para-fazer, e em compensação existe bem alto e claro o ninguém-mandando-fazer-nada. Morar numas férias sem prazo, sem prova, sem boleto, sem banca, eis a Mega-Sena acumulada da coisa. Era muito disso que eu queria ser rica – a chance douradinha de frequentar gaiolas só por catapulta de decisão.

domingo, 13 de dezembro de 2020

As boas maneiras


Engoli o engulho e li a reportagem do UOL (que não vou linkar aqui, desculpem) sobre o "curso de boas maneiras" promovido por Carol Celico, ex de Kaká, e Fátima Scarpa, irmã do respectivo Chiquinho. Deixo com vocês o iniciozito da matéria apenas para sentirem o naipe da grade curricular:

"A mulher está no restaurante, com o marido e um grupo de amigos, e sente sede. O que fazer?

'Nunca peça água diretamente ao garçom. Quem tem de fazer isso é o marido. E outra: a conta é do homem. Vou continuar insistindo nisso. Se tem homem na mesa, pelo amor de Deus, gente, a obrigação de pagar é dele!'"

Conselhos de dona Fafá Scarpa, que li mareada a ponto de quase pedir abano à cartela de Dramin. Dois parágrafos de aberração e o fantasma das vesículas passadas (a minha já se foi em saudosa memória) deu triplo twist carpado no túmulo: MEQUIÉ ISSO DAÍ, MEU CONSAGRADO?? A mulher não – engasgo – pode – engasgo – pedir água – cooooooof! – ao garçom?! É então etiquetoso nas rodas que os mesmos seres capazes de sangrar por uma semana sob uma passeata de hipopótamos no útero, os mesmos seres capazes de sustentar peso e náusea e diurese maluca e náusea e calor e apetite e falta de apetite e falta de posição e náusea e náusea durante quase um ano (em nome da multiplicação da espécie, que estaria encerrada há séculos se ovulação desse em homem), os mesmos seres capazes de vencer os afogueamentos e securas da meia-idade, os mesmos seres capazes de ter o peito esmagado e a vagina adentrada nos necessários exames – NÃO POSSAM levantar o dedinho e cuidar da própria sede, NÃO POSSAM sacar o cartão e bancar a própria fome sem a escolta dum macho paladino? Estou até agora e até aqui de gasp-gasp com o despautério atravessado na garganta.

Na boa, meus fofos, assim não tem como tirar a razão dos francesinhos que sentaram o cacete em Versalhes. A que raio de ser humano, aquele do tipo carne-osso-vísceras, servem essas ridiculices, essas convenções idiotas, esses combinados aleatórios de ninguém? Para quem e para que esses briochismos, com que objetivo legislar estupidamente sobre o mínimo dos gestos, sobre os dedos, sobre os pés, sobre os sossegos, sobre os guardanapos? Entendo que se recomende o óbvio da cortesia: não apontar, não cutucar, não falar alto, não promover enfim nenhumas formas de desconforto ou incômodo, nada que perturbe ou constranja o alheio. Cercear as gentes – especialmente as mulheres – de nove-horices tolas, de regrinhas porcelânicas, no entanto, é o auge do constrangedorismo, é o espartilhamento da naturalidade just because. Aliás, just because não, sabemos bem: sempre interessou e continua interessando que as fêmeas sejam restritas e bibelozadas, exatamente como sempre interessou e continua interessando que os bem de vida se encastelem em seus códigos absurdos. Exclusões de classe que fornecem alfafa para preconceito são coisa mais velha que dormir deitado.

Quando na verdade o manual é direto, é translúcido: gente é para ser cuidada, acabou-se. Mas não cuidada de cuidado artificial e cretino, que inventa fragilidades onde não há a fim de cortina-fumaçar a manutenção das que não deveria haver; cuidada, sim, com força de rede, com atenção de abraço, com alma de equipe, pronta a ser resgate na queda. Mandar bem nas boas maneiras é se assumir elo – entre o exausto e o repouso, a fome e o prato, a febre e o trato, o desabafo e o ombro, o exílio e o afeto, o tombo e o colo, a fala e a escuta, a falta e o peito. Acolher como manda o figurino amarrota o figurino; amar amassa, dispor-se descabela, manter os filhos devidamente queridos e brincados mancha o modelito, plantar oxigênios põe terra sob as unhas, desatolar veículos que vão socorrer o ermo cobre de lama os sapatos. E nada mais polido, nada mais phyno; gente chique no último enche mesmo a boca, a bola, a vida do outro – e não enche o saco.

Humanidade é troço que só veste como uma luva depois de cortar a etiqueta.

sábado, 12 de dezembro de 2020

MacGyver people


Adoro montanhamente as pessoas criativas, inclusive por paranauês de humor: assim como dizem a respeito dos felizes, gente criativa não enche o saco. Gente criativa é desdobrável como o eu lírico fluido e feminino de Adélia; é alegremente adaptável aos quês sem muitos sês, é em geral inimiga de tempo evaporado com resmungo, se bobear é até secreta amiga de umas perrenguices apenas pelo gosto dulcíssimo de ter de inventar solução. (Sempre um parêntese para o que eu nem precisava dizer, mas digo: não estou falando, não falaria NUNCA em tom de louvores à necessidade desesperada dos que "se viram" milmaneiramente por não receberem o mínimo, o básico. Não, não, não. Esses guerreiros hão que ser – claro – exaltados, sem no entanto ser jamais justificável a romantização da guerra em si. Todas as espécies de fomes reais devem ser saciadas com urgência pelas autoridades respectivas; todos os protestos contra a incompetência das autoridades respectivas devem ser acolhidos como uma manifestação do sagrado. Isto posto – e estabelecido em juízo que me refiro aqui às criatividades aplicadas não ao indispensável, e sim ao trivial –, retomemos a programação.)

Sobram matérias na curiososfera que flagram as maiores pérolas do macgyverismo; eu babo: tem lanterninha fita-crepezada nos óculos para virar luz de cabeça, halteres feitos com pneus, pote de sorvete promovido a copa de abajur, compartimento secretíssimo no topo da porta (sim, dentro da porta), gaveta escondida em degrau, corrente de clipes escalada como puxador de gaveta, garrafa pet usada como claraboia (ou como vaso, ou como revisteiro, ou como porta-sapato, ou como estojo), quadro de Onde está Wally? no teto do dentista, monitor velho de computador recauchutado como aquário, carrinho de controle remoto atrelado a esfregão de limpar a casa, esmalte para proteger costura de botão, meia-calça no tubo do aspirador para resgatar pequeninices extraviadas, cabide com pregadores para segurar aberto o livro de receitas. Um mundo de maravilhamento. Gera uma onda de crença na redenção humana ver que tanto sujeito, tanta indivídua, tanta mente desconfiada dos limites riu na cara do previsível e lançou um hold my beer; é dessas minipaixões pelo ataque aos miniproblemas que se encorpam as maxigenialidades científicas, comprometidas a enxergar o mundo feito criança enxerga massinha, com aquele rio e aquele riso de tudo-pode-ser correndo no olho.

Cérebros assim inundados de gambiarrina, prontos a tudo abraçar como opção ao redor, se mostram mais classicamente nus de preconceito, mais arborizados de sinapses, mais macios a informações, mais tocáveis pelo novo na vida e na arte e na linguagem, mais respeitosos de alternativas, mais amorosos de diferenças, mais aprendizes, mais interessados, mais interessantes. São gente de inteligência feliz, vergável, apetente de descobrir e saber, líquida e escorrente pelos nichos onde as rigidezes não penetram; gente de inteligência perenemente em mode on, acendível e não ranzinzenta no desafio – safa, contorneira, joão-grila. Gente, enfim, que os brasileiros deveríamos ser por vocação de malemolência, mas que a praga bolsonara vem parasitamente drenando de vida, saúde, afeto, alegria; e vem cobrindo, em contrapartida, de fel, zanga, burrice, cafonice, malquerença, desvario, desvontade fastienta de aprender e acolher o inédito, repulsa pelo franco e apego ao falso. Somos um gigante por potencial que dementadores de Q.I. lilliputiano fizeram refém. Somos um MacGyver recebendo ordens de Biff Tannen, um James Bond escravo dum Homer Simpson. Somos, na ferrugem ferro-velha, o extravio duma joia.

Esperando a mensagem da garrafa que vai servir de claraboia.