terça-feira, 30 de novembro de 2021

Mais sinopses aleatórias que não sei se há, mas poderia haver


Uma família compra em leilão, baratinhamente, um imóvel que parece se encontrar em bom estado geral. Alguns dias abrigados no local para fazer as reformas e a sinistrice enfim dá as caras: acontece que a casa materializa bem que dói a máxima "as paredes têm ouvidos", e TUDO, absolutamente TUDO que ali dentro é dito ou sequer sussurrado começa a brotar escrito nas paredes. Como é esperável, a impossibilidade crônica de manter o mínimo segredo em família vai aloprando o relacionamento doméstico, que azeda de vez quando as falas passam a ser também estampadas do lado de fora.

Decidido a fazer um experimento social, um cientista inventa que deixou escapar do laboratório um vírus novo (na realidade inexistente); a onda de pânico, porém, avança muito maiormente do que o sujeito previa, o que logo o leva a ser indiciado por "negligência" na contenção do vírus, além de ameaçado e execrado por todos. Mesmo assim, o homem fica em dúvida entre assumir (inclusive fornecendo "evidências" d)o crime imaginário ou defender-se revelando sua experiência sociológica perversa – opção que talvez o levasse a uma condenação pública superior a seus próprios limites.

Uma mãe de família é sequestrada e substituída por um robô (obra de uma corporação que também só queria testar um negócio, ou assim dava a entender); na casa, entretanto, apenas o cachorro aparenta se indignar com a troca. Magoada com a realidade que os responsáveis pela empreitada fazem questão de mostrar-lhe, a mulher topa fazer parte do projeto, que se apresenta como uma espécie de "resgate dos invisíveis". O que os idealizadores não contam aos "resgatados" – todos remanejados por eles para novos países, endereços, vidas – é que, nessa espécie de reinício, acabarão compondo uma mão de obra inconscientemente escrava, empenhada justamente em defender pelo mundo a mecanização total da mão de obra.

Um grupo de fantasmas organiza sindicato e entra em greve após uma gerência otimizadora obrigá-los a assombrar não o local a que se sentem conectados, mas qualquer imóvel que estiver "na vez" dentro de um cadastro único.

Cinco crianças nascidas no mesmo dia e maternidade vêm ao mundo com as vozes trocadas. Como duas das mães são amigas, cerca de dois anos depois do nascimento de seus pequenos elas identificam a mesma bizarra dissociação entre quem eles são e o que dizem; decidem, então, procurar as outras três crianças para ver se estas têm as mesmas características. Uma vez constatado que sim (e esgotadas todas as tentativas de destrocar as vozes com algum tratamento), as cinco famílias não veem alternativa senão criar a pimpolhada num só rebanho – situação que aparentemente perdurará, para as criaturas assim atadas, até a morte.

Com sorte.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Noivinha do Aristides

O meme da vez é a noivinha do Aristides, epíteto com que o coiso-mor foi mimoseado por uma mulher a quem a empreitada rendeu PRISÃO. Pouco se me dá quem seja Aristides (parece que foi instrutor de judô do criaturo nos tempos de caserna), pouco se me dá que haja fotos no mínimo sugestivas do criaturo com o Aristides; as únicas coisas chocantes da história são: 1) a prisão completamente arbitrária de uma pessoa que, afinal, exerceu a liberdade de expressão tão ferrenhamente defendida pelos coisonaristas, e 2) a estrupicidade, o estrupicismo, a energumenez de alguém que, ao que parece, fica ofendido de ser chamado noivinha do Aristides e faz questão de dar o máximo de visibilidade ao caso, reagindo violentamente ao que considera xingamento em vez de apenas seguir o baile. Até para dar um chilique é necessário observar regrinhas básicas de lógica; quanto mais intempestiva a resposta a uma provocação, mais certo fica o desafeto de que pegou no nervo, e menos disposto se vê a soltá-lo. Houvesse um pouco de inteligência do "xingado", teria sido um incidente sem quaisquer registros, sem qualquer importância; a reação despótica e destemperada chamou toooodos os holofotes disponíveis no planeta, averiguaram-se passados, escarafuncharam-se arquivos e pronto, eis o chiliquento devidamente apelidado noivinha do Aristides pelo Brasil inteiro. Com direito a ibagens.

Mas é aquilo: coisonaristas são, além de profundamente preconceituosos, profundamente burros. Acham eles que alguém da oposição – quase toda composta pela esquerda em todas as suas vertentes – de fato considera vergonhoso ter qualquer tipo de relacionamento hipotético com o Aristides? De forma alguma; o preconceito não é tendência do lado de cá, jamais julgaríamos mal fosse qual fosse o ser humano que se apaixonasse pelo Aristides, sujeito muito bem-apessoado por sinal. O motor único e exclusivo do bullying que se espraiou do Oiapoque ao Chuí foi a ciência do preconceito DELES, a certeza de que é o recurso mais à mão para amofinar tanto quanto possível quem anda matando o país de fome e miséria; ou seja: tem-se aí um caso, e bastante leve até, de legítima defesa. Ou alguém se lembraria de recriminar, por exemplo, um escravo que chutasse seu algoz bem no centrão de sua maior ferida? ou alguém acusaria uma mulher vítima de espancamento pelo fato de ter cravado uma tesoura nos países baixos de seu agressor? Não mesmo; independentemente de boniteza (não existe violência bonita), devolutivas são naturais quando se está sob opressão, e eis que se encontra sob terrível opressão um país todinho; ora, o refém vai enfiar sim o dedo nos olhos do sequestrador, vai chamá-lo de tudo quando mais lhe for incômodo. É certo? Errada seria eu, migues, se me metesse a julgar a conduta de um torturado. Logo euzita é que não vou de superioridade moral pra cima de ninguém.

Pessoalmente acho uma pena enorme que qualquer imaginária relação com o Aristides não tenha dado em casamento, e juro não estar de zoeira: no caso de isso acontecer seria um sinal claríssimo de que uma avalanche de recalques doentios teria sido superada, uma psiquê 1.098% mais saudável se encontraria sentada na cadeira-mor da União e tudo faz pensar que não estaríamos vivendo esse inferno socioeconômico, cultural, antropológico. O que há a ser plenamente vivido, se não o for, necrosa e vai destruindo tudo de arrastão, carregando tudo consigo para o mesmo Hades, o mesmo buraco.

Já gente feliz não enche o saco.

domingo, 28 de novembro de 2021

No espelho somos nós


Completa-se, neste 28 de novembro, um ano todinho do falecimento de Gelson Radaelli, artista plástico gaúcho de projeção grandona. O tocante é que apenas duas semanas separaram o encerramento de uma sua exposição – No espelho não sou eu, inteira de pinturas realizadas na quarentena – e sua própria morte, sempre subitíssima quando de ataque cardíaco. Foi muito, muito intensa a última mostra, trabalhada em cores fortes, soluções dramáticas e múltiplas representações do descompasso entre o ser e o mundo, como no quadro que acima reproduzo e que me atingiu mais que todos os outramente vistos.

Não lhe sei o título, infelizmente; mas qualquer que seja o nome, se algum foi dado ou pensado, mora dentro desse espírito doloroso, geral – No espelho não sou eu. Ainda que não haja rosto na figura feminina, toda a linguagem corporal exala suficientemente o desconforto de não se ver ou de não se permitir acolhida, de não identificar irmandade onde quer que se encontre, embora (ou talvez porque) não se encontre cercada de humanidade, e sim duma natureza que percebe como ameaçadora e a quem rejeita. Quem o diz não sou eu, é o próprio conceito dum módulo da mostra de Radaelli, verbalizado na matéria de Eleone Prestes melhor do que eu poderia tentá-lo: "Nesses quadros [do ato O Ser e a Natureza] existe um não diálogo entre a figura humana e a mãe Gaia. O ser está sempre de costas para os elementos naturais, refletindo e pensando somente nas suas coisas, em suas conquistas, no dinheiro, no prazer e no poder, esquecendo – e agredindo – a força que é a essência da vida e responsável pelo equilíbrio do planeta".

O que mais achei eloquente na tela da mulher verde foi precisamente esse contraste; ela, que recusa a mãe Gaia ou se sente por esta recusada, assume justo a cor que geralmente se atribui ao natural, como se sua clara flexão sobre o lhe-pertencente umbigo a fizesse considerar que ela sim, embaixadora da humanidade, tem prioridade sobre a natureza, enquanto a natureza é o "perigo vermelho" que insiste em responder com seus degelos, aquecimentos, secas, enchentes, maremotos às malvadezas sofridas: AUDÁCIA. Para maior dramaticidade, o uso de cores complementares na paleta, já que verde é a soma das outras duas primárias que não vermelho; ou seja – gente e mundo são tão complementares quanto opostos, e, mesmo que grande parte do que somos negue o pertencimento, não deixamos por isso de ser inerentemente naturais (vide a ruivice que escorre pelo corpo da mulher e a assinala, a despeito de sua percepção e vontade, como um pedaço da Gaia rejeitada). É aparentemente noite na tela, e noite permanecerá durante nosso estado de negação: viramos as costas ao que está seco e não assumimos que é nosso, que vive e morre em nós o chão que sangra.

No espelho não sou eu é o que dizemos para espichar a morte; a vida ruma todos no mesmo barco, à mesma praia. Nós e Gaia.

sábado, 27 de novembro de 2021

O trincar do ovo


De uma fofura extrema o poema da fabulosa Adriane Garcia, "Um ovo trinca": "Quando tudo está parado/ Quando o ar vira mormaço/ Quando a melancolia toma/ Nos braços todos os homens/ Um anjo piedoso faz/ Coceguinhas numa criança/ E ela ri/ E algo se rompe/ E eu sei que o mundo/ Não acabou".

Algo se rompe, sim, e continua frequentemente, diuturnamente, tinhosamente em nós – e no que perdura ao redor de nós – mesmo quando o hábito descarrila e as possibilidades se amarrotam; um grito de vida volta e meia contrai-se e se põe a coroar, e nos (re)nasce. Dá-se de que forma esse improviso de primavera? Todas; para um convalescente literal, por exemplo, o trincar do ovo está às vezes num gosto que voltou à língua, normalmente a madeleine mais simples das simples: o café com pão na chapa, o chá com bolo, o feijão reinaugurado. Para uma criança que anda cinza e coração-apertada porque mudou de escola, talvez o trincar do ovo esteja na voz da professora recente, rica e macia como a insistência do amor. Para um adolescente que se viu atropelado pela orfandade, pode acontecer que o ovo trinque num abraço descongelante de amigo, de amiga, que relaxe o peito para as lágrimas atrasadas. Para um pequeno empreendedor cuja loja foi derrubada pela pandemia, pode calhar que o ovo trinque numa palestra, num comercial, num programa dum qualquer Discovery que pulse ideias frescas e espalhe alternativas.

Ocasionalmente o vizinho está ouvindo (ou o supermercado está tocando) perfeitamente AQUELA música, e algo se rompe. Vem um doguinho buscar amizade em nós, nós que nos julgávamos desatraentes para bichos – e algo se rompe. Fazemos uma visita guiada apenas no impulso – e algo se rompe. Assistimos ao filme certo na hora exata, vemos uma foto lindíssima de árvore de Natal e nos mexemos para montar a nossa, recebemos a dose faltante de cafeína, ouvimos uma gravação de uirapuru, somos puxados por alguém para uma aula-amostra de dança de salão, temos a chance inusitada de cantar num palco, arriscamos uma receita que a parentada aaaamaaaaa, nos comovemos com a felicidade de quem ganhou um nosso presente, alguma citação nos espeta, alguma declaração nos espanta, algum pôr do sol nos embasbaca; e pronto, o ovo trinca no revés do revés de um parto, reentramos em nós com a força estranhamente permanecida.

O pulso da vida bate – a gente revida.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Estanho e zinco


Consigo entender por que, nas bodas de dez anos, fez-se homenagem ao estanho e ao zinco.

O estanho é dos metais mais antigos que se conhecem, sólido, porém maleável; especialmente não se oxida com facilidade, resiste bem à corrosão, entra inclusive em ligas metálicas que PROTEGEM da cuja outros materiais. Não se esperaria nada diferente duma união de década redonda: há muita solidez e, no entanto, muita flexibilidade envolvida – muita resistência potencial e muita doçura necessária –, ao mesmo tempo que enferrujar não apenas não está entre as opções individuais, como se torna mais improvável em conjunto. Um casamento de estanho, se de fato honra o metal que o apadrinha, empurra os conjes para o empurrão feliz e recíproco: um lufa ar fresco nos hábitos do outro, providenciando tanto quanto possível que nenhuns ares estagnados os corroam. Estar junto é um mútuo desancorar-se.

E o zinco? "A principal aplicação do zinco", diz tia Wiki para corroborar a parecença com o adorável estanho, "é na galvanização do aço ou ferro para protegê-los da corrosão, isto é, o zinco é utilizado como metal de sacrifício (tornando-se o ânodo de uma célula, ou seja, somente ele se oxidará)". Certo: não é bem romântica, mas é francamente linda essa ideia de metal de sacrifício, e cabe mui lindissimamente no casamento – de modo algum com aquela conotação de péssimo gosto dada pelas camisetas que tratam a união como um "game over", claro; não é na junção dos esposos que mora o sacrifício, e sim no sacrifício que cada um se torna naturalmente disposto a fazer pela preservação do outro, e de ambos como grupo. Sacrifícios que não anulam, não humilham, não renegam identidades, simplesmente se manifestam nas concessões da empatia, na criatividade das conciliações, na delicadeza instruída a ser mais esperta e mais aguda, na capacidade de observação enfim que indivíduos também devem alimentar em quaisquer outras convivências – apenas apurada de mais perto, desenvolvida com mais ternura e personalizada por mais amor.

Além disso o zinco é "um elemento químico essencial para a vida: intervém no metabolismo de proteínas e ácidos nucleicos, estimula a atividade de mais de 100 enzimas, colabora no bom funcionamento do sistema imunológico, é necessário para a cicatrização dos ferimentos, intervém nas percepções do sabor e olfato e na síntese do DNA [aqui tia Wiki meteu 'ADN', mas me recuso a fugir à sigla que popularizamos bem]". Em suminha, precisa-se de zinco para metabolizar, digerir, curar-se, saborear, existir – muito parecidito com o quanto se vive no conje, não em simbiose mas em aconchego emocional: cicatrizando dentro do mesmo grupo de vivências, curtindo as referências compartilhadas, apreendendo o que ocorre como uma equipe, um time já profundamente empático e telepático. Um dueto superfantástico.

Meu Fábio, muito zinco e estanho para nós, até as bodas de carvalho; que sigamos parceiros juntíssimos na tentativa de verter alguns cantinhos empedrados do mundo em terras aráveis.

Inoxidáveis.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Não se está muito velho


"Estou muito velho para." NUNCA se está muito velho para – a não ser para coisas ruins, ridiculices, cansaços que certamente devem ser endereçados à reciclagem. Está-se eternamente velho para picuinhas, fofocas, violências, toda sorte de agressões, pegadinhas, machismos e demais preconceitos; para o que diverte, acolhe, educa, o tempo é sem tempo, tem data de fabricação mas incarece de validade: inaugura-se com janelão envidraçado para o infinito, na beira do sempre. Ou ao menos às margens do até o fim.

Não se está muito velho para patinetes, árvores de Natal, bichos de pelúcia, camisetas temáticas. Não se está muito velho para tradições de família recém-estabelecidas. Não se está muito velho nem para novas lingeries nem para fantasias recentes (nem para as antigas), não se está muito velho para chorar bezerramente nos desenhos da Pixar, ou para acompanhar os Vingadores, ou para sentar em luaus, ou para aprender artesanatos. Não se está muito velho para a alfabetização, a faculdade, o casamento, o acampamento, o namoro, a festa, a viagem, a mudança – e para o quintal que se quis desde criança.

Não se está muito velho para adotar filhos, ainda que (ou especialmente) os seus próprios. Não se está muito velho para se jogar na marcenaria, se jogar no karaokê, pegar buquê, mandar buquê, apostar na Mega-Sena, se inscrever no MasterChef, fazer bolha de sabão, montar álbum de figurinhas, mochilar pelo continente, pescar bichinho em máquina de parque, pescar prenda em festa junina, repetir cinco vezes a montanha-russa, dezenove vezes o beijo, trinta e duas vezes a tirolesa de ponta a ponta do cânion. Não se está muito velho para a Bienal nem para o Rock in Rio, para a Europa nem para a Disney, para a estrada nem para o estádio. Não se está muito velho para Capitu, Raskólnikov, Blimunda, Quasímodo, Macabéa, Hamlet, Diadorim, bem como não se está velho jamás para Mônica, Mafalda, Calvin, Armandinho, Hagar.

Quanto mais se conta com os anos, mais eles deixam de contar.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Infinitos enquanto duram


Outro dia um tweet do perfil Horizonte Ampliado (@HorizonteAmp): "Nada dura mais do que um vídeo que alguém está te mostrando e que você não tem o mínimo interesse em assistir". Não discordo – ter de acompanhar esses micromartírios pra não fazer desfeita é realmente um entojo –, mas sustento que, em medidas de tempo psicológicas, não faltam zilhões doutros entojos decididos a durar tanto quanto. A saber:

o século transcorrido entre tirar uma senha nos Correios e os números da SUA categoria de senhas irem sendo convocados (os astros providenciarão para seja o único grupo numérico que estacionou).

a espera pelo – pelO – caixa eletrônico que funciona com plenitude na agência, muitíssimo embora haja outros oito. Entre os oito, três estão em atualização, dois não fazem saque, um não lê a digital nem por um cacete dourado, um planeja mastigar o cartão, um tem a tela tremelicante para proporcionar labirintites; o bendito fruto que resta jaz ocupado há 23 minutos por uma criatura que vem digitando a numeração de 16 boletos, a despeito de tê-los impressos e poder fazer adoravelmente a leitura dos códigos de barras.

o percurso entre a bolinha do "chegada ao centro de distribuição" e a bolinha do "saiu para entrega", em sites de encomendas queridas.

os milênios entre o comprimido tomado e a dor (enfim) desistente.

quaisquer dois segundos e meio de fala/aparição do coiso assombrado.

fila de exposição bombante.

sala de espera de médico que SEMPRE chega uma hora e trinta e sete minutos depois da primeira consulta agendada.

o filme Lincoln (anos meus de vida se escoaram naquele poço artesiano de tédio).

comerciais, quando a reportagem aguardada mora sóóó no próximo bloco.

tagarelagens, quando se está desejosamente abraçado num livro.

mandatos de facínoras, perversos, genocidas, psicopatas.

tudo que há de certo e de incerto, nas medidas inexatas.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Descatimbando


Recém-soube chocadíssima, pelo post de uma amiga no Face, que alguns cursos grandões deram camisetas para seus alunos usarem no dia do Enem – o que, claro, não teria nenhum problema se as tais camisetas não viessem com frases alfinetantes, do tipo "Ei, sua vaga vai ser minha". Evidentemente, como a amiga observa, as frases são estampadas na medidinha para desestabilizar os candidatos que já chegam mais desestabilizados, coisa aliás nem um pouco rara num ano de aulas ainda atingidas no coração pela pandemia. "Que tristeza, que falta de ética, de respeito", ela comenta com uma dor que compartilho inteira. "É essa a diferença de uma escola para um cursinho preparatório e afins. Quem serão os futuros profissionais que já usam desse expediente?"

Faço minha: quem serão? Que espécie de médico ou psicólogo – teoricamente alçados à carreira pelo requisito número um da empatia, do impulso de providenciar curas, sanar dores – pode resultar dum jovem que topa botar fogo no parquinho mental de seus "concorrentes", sabendo embora que está pré-indo contra tudo que deseja jurar fazer? Que naipe de historiador, advogado, assistente social se pode extrair de alguém que mete mais sal na ferida-base, tripudiando sobre injustiças estruturais em vez de ser o mais convicto de seus inimigos? Que engenheiro há de se originar de quem se empenha em fazer pessoas desabarem? Que professor pode vir dum sujeito que não dissolve, e sim promove o bullying?

Já considero absurda e lastimável a catimba feita por jogadores para desequilibrar o time adversário – as implicâncias, as provocações, as corpo-molices –, tanto quanto as chateações que voam de torcida para torcida, incluindo vaias, que abomino e abominarei sempre; e ainda se pode argumentar (sem que eu levemente me convença) de que se trata de jogo, a lógica é outra, tal e coisa. Para minzinha duarte já o fato de ser jogo não importa nadíssima, o ideal era não haver necas de competição em que para um ganhar o outro devesse necessariamente perder; e, ainda havendo essa maldita competição, é ridículo e desonroso cavar uma vitória enfraquecendo o oponente, em lugar de fortalecer-se de modo limpo. Considere-se então a ridicularia e a desonra de transformar em jogo o que NÃO é nem NUNCA foi: tratar como Round 6, como eliminação sumária de competidores, pessoas para as quais se trabalhará em última instância. Porque não me consta que se deseje uma profissão apenas para realizar um autotrabalho perpétuo; quem escolhe uma carreira não pretende, imagino, curar as próprias doenças exclusivamente, dar-se aula, guiar-se em viagens, construir-se prédios, decorar-se ambientes, tocar-se músicas – pretende realizar sua vocação em outrem, para outrem, tal qual outrem se realiza no um. Que pitomba de raciocínio é esse que, desde a largada, atira contra futuros pacientes, clientes, alunos, fãs, colegas, assessorados, assistidos? Se (além da óbvia motivação financeira) uma carreira é abraçada por pessoas que por meio dela estarão a serviço de outras pessoas, existe ZERO congruência em demolir pessoas. Nem era necessário que pessoas fossem outra coisa além de si mesmas, mas são: são recursos, força, apoio, conselho, plateia, parcerias, consultorias; são fornecedoras e consumidoras, sustento e informação, equipe e fechamento. Não são obstáculo; são trampolim.

E ("pragazinha" leve aqui da tia, que é mais constatação nos afinais de contas) hão de levantar apenas quem as vê assim.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

O amor é uma beterraba no prato


Gosto muito, pela intensa verdade que exprime, duma frase de Anne Sophie Soymonof – ou Madame Swetchine, escritora russa nascida como Sofia Petrovna Soymonova há exatinhos 239 anos: "Amar profundamente em uma direção nos torna mais amáveis em todas as outras". Têm vocês também essa impressão? Quando estamos de alguma forma enamorados, agudamente enamorados com muito mais generosidade que dor (digo "generosidade", e não "felicidade", porque um amor pode ser plenamente incorrespondido e ainda assim edificante), a tendência é que se borrem as fronteiras entre o que é amado e o que não é, ou mais especificamente: entre o eu que ama e o eu que não. O amor é uma beterraba no prato que tudo contamina, que avermelha todo o resto, que tinge o que mais carregamos por sangrar e derramar-se de suculência; nada que combine ou que não combine escapa-lhe do sumo corante e adoçador.

A criatura que ama com verdade alegre ou melancólica deixa fatalmente que o amor suba à cabine de controle, que sua essência ganhe o duto de ventilação e em toda parte se espalhe, e a todo canto perfume. O amor é indiscreto não só porque vazante nos olhos vagos, nos ares distraídos, nas gagueiras, nos sorrisos basbaques, mas também porque multipliqueiro; de repente se recebe o impulso de ser terno com o ascensorista, descaloteiro com os amigos, paciente com os desafetos, entusiasmado nas caridades – e não exclusivamente em nome do contentamento que se sente, que como dissemos nem contentamento é muitas vezes; deseja-se, não raro, simplesmente ser bom, ser melhor ao menos. Deseja-se ora com, ora sem consciência elevar a própria dignidade ao nível do sentimento dominante, elevar-se ao nível da pessoa adorada, frequentemente merecê-la. É muito e constantemente isto: quer-se MERECER aquele ou aquela a quem se ama, não ter de corar ante o espelho com o peito doendo de impossível.

O amor, se amor de fato, nos civiliza. Nos força a alguns necessários passos para não envergonhar o filho, não chocá-lo ou perdê-lo; nos veda atitudes que desonrem a lealdade aprendida dos pais; traz à tona a compreensão humana que nos habilita para os amigos; especialmente nos apura para o recebimento do outro, seja no conquistá-lo ou no mantê-lo, no agradar-lhe ou no ajudá-lo, no recompensá-lo ou no entrar em quitação com a sorte pela felicidade recebida. Por amar profundamente é que somos abençoados com o passo delicado da urgência, o tato sempre suspirante diante do que parece eternamente frágil; movemo-nos pela delícia de ter e a ânsia impotente de continuar tendo – ânsia tão impotente que sermos bons, irrepreensíveis, nos dá a necessária impressão de potência. É a parte que nos cabe no latifúndio impalpável do amor: atônitos de não podermos criá-lo, pomo-nos a cultivá-lo, como quem paga com trabalho voluntário uma dívida eterna que algo em nós pressente.

O amor nos diz o que a preguiça nos mente.

domingo, 21 de novembro de 2021

Valsinha das coisas enjoadas


(Sobre a mesma canção ainda mais noviçamente rebelde, e com mais mau humor, por favor)

Bots que postam pra que antas tuítem
Luzes azuis que aparelhos emitem
Traça, mosquito, formiga, cupim
São tudo coisa entojada pra mim

Dor, telefone, mortais abelhudos
Panos de prato que não são felpudos
Parte do mês em que acaba o dindim
São tudo coisa entojada pra mim

Livros com carros, em vez de caleches
Muito vinagre gorando escabeches
Susto, batom, homenagens, spleen
São tudo coisa entojada pra mim

Não se tem paz
Tudo é só bis
Ou de "like", ou "share"
Só quero dormir e acordar em Paris,
Bem primaveril,
Mon cher!

sábado, 20 de novembro de 2021

Valsinha das coisas queridas


(Sobre a doce e noviçamente rebelde "My favorite things")

Textos de lista ordenados por item
Passos que vão sem que os ares se agitem
Gente que nunca usaria "outrossim"
Essas são coisas perfeitas pra mim

Rendas, miçangas, bordados, veludos
Corações sérios sem serem sisudos
Bocas de jaspe, buquês de jasmim
Essas são coisas perfeitas pra mim

Sonhos lembrados, ainda que em flashes
Horas do sono pousando nas creches
Mel, dicionário, almofada, pudim
Essas são coisas perfeitas pra mim

Se não há paz
Se por um triz
Nada aqui nos quer
Lembrar um contento é guardar-se feliz
Pra quando o Brasil
Vier

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Tudo azuis


Há o azul das borboletas de Casimiro, perseguidas "à roda das cachoeiras" por passinhos que corriam pela campina.

Há o azul impositivo dos pavões, rico, cheio; azul a que se diz "Majestade", a que quase não se olha nos olhos de tão completo.

Há o azul – os azuis – quase acinzentado dos jeans, com sua vocação magistral para combinar com o que quer que seja, mesmo a estampa mais medonha.

E o azul semidesistente das hortênsias.

E o azul líquido, fresco, por um triz não engolível das águas-marinhas.

E o azul metálico e pontudo dos cristais de clinoclase.

E o azul avioletado, esplendorosamente raro e absurdo das tanzanitas.

Existe um azul da Noite estrelada de Van Gogh, costurado de branco; um azul juvenil de Picasso; um azul aturquesado e florido abraçando a ponte de Monet; um azul pontilhadinho de roxo em Paul Signac; um azul de Vênus surgida no mar em Ticiano; um azul acompanhado de bodes voadores em Chagall; um azul vestido por menina lourinha em Renoir.

Existe um azul vivo porém suspiroso nos jacintos, que se evola em perfume. Existe um azul aguçado e oferecido nas campânulas. Existe um azul pendente em cachos nas muscaris. E um temperamental, amigo só de neve, nas papoulas do Himalaia. E um inocente, nos miosótis. E um pujante, nos delfínios.

Há um azul específico para cada um dos mares: o grego, o tailandês, o noronho. Há também azuis diferentíssimos espalhados pelo dia – um tão leve que amanhece, um azul a pino das nove horas, outro envidraçado de sol a meio caminho, outro (de todos o mais bonito) denso e poderoso da pré-noite, outro da noite mesma, veludamente apropriado para exibição de estrelas e luas.

Há o azul dos lírios (raros) e o das araras; o do reflexo de céu na neve e o do reflexo de céu nos olhos; o dos M&Ms e o dos delicados; o dos quartzos e o das safiras; o das turmalinas e o dos euclásios; o dos azulejos e o das bolas de gude. Há o azul Facebook e o azul Tiffany. Há o azul dos blueberries e o dos saís-andorinhas. Há o dos tangarás e o dos sanhaçus.

O mundo são mundos azuis.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Intervalos de lucidez


Ambrose Bierce, escritor norte-americano de pena reconhecidamente ferina, definiu o lazer como "intervalos de lucidez numa vida desregrada", o que prova que um satírico pode falar absurdamente sério quando lhe dá na veneta. Porque Bierce teve mira robin-hoodica, convenhamos, e cada vez mais sua definição marota se aplica (por extensão) ao universo corporativo: as ideias infames de "trabalhar enquanto eles dormem", a escravidão do celular ligado ao lado do travesseiro, o medo furioso de tirar férias e soar substituível, o horário descompensado que não cruza com o dos filhos, o do marido, o da esposa – isso sim é vida desregrada, insana, inviável, doida de marré de si, que só pode acabar em enfarte ou gastrite (o que vier primeiro). Ou tem lá algum cabimento entregar-se a uma espécie de martírio sem religião, não por arraigados princípios ou pela salvação da própria alma, e sim pela salvação de cifrões e cifrões para a conta de chefes que dormem per-fei-ta-men-te em lençóis egípcios enquanto outros trabalham?

"Credo, também não é assim, não faça as coisas parecerem tão simplórias." É assim sim. A meiuca das coisas pode não ser nada simplória, concordo, porém o que mais há são trâmites complexos para se atingir o simples: o máximo para mim, o mínimo para você. Então não existe desregramento nessa máquina tão bem azeitada de produzir condescendência em escravizar-se, já que não se permite mais à máquina a produção de escravos? Na falta de legislação que abone a compra de pessoas, romantiza-se a tal ponto sua autodoação que os antigos forçados por um sistema perverso se remasterizam em cúmplices de outro sistema perverso – não cúmplices ativos e conscientes, mas instrumentos enfeitiçados, persuadidos, de uma lógica doentia de acumulação por muito poucos viabilizada pelo sacrifício de muitos. Se não se consegue ver aí um completo desconcerto dum mundo que "funciona" para, talvez, uns 2 ou 3% da população humana, realmente não concebo o que mereceria ser chamado de desajuste.

Somente as horas de lazer verdadeiro – por verdadeiro entenda-se: distensionado, com celular apagadíssimo, nenhuma possibilidade de urgência no emprego a não ser que se tenha cursado Medicina – providenciam que a identidade esgarçada durante os expedientes comece a juntar os cacos, reunir provas de que um bolo de dimensões do eu precisa conviver civilizadamente para montar um eu com saúde. Um eu com saúde, se pai ou mãe, carece do tempo de brincar na grama com os filhos, inventar história doida, fazer carrinho de caixa vazia, comentar o último da Pixar, discutir o futuro da Marvel; um eu com saúde necessita de manhãs de sábado para assistir a reformas no Discovery Home & Health ou correr no futebol, folhear bobagem ou Foucault, testar receita da Ana Maria ou o drink que apareceu na série, ouvir Beethoven ou Titãs ou Emicida. Um eu com saúde vai à praia, ao teatro, ao cinema, ao barzinho, ao baile, à Bienal, ao Méqui, ao bistrô, ao pagode, ao museu, e vai com vontade – por vontade; não é dirigido por conveniências profissionais nos instantes teoricamente indedicados à profissão; não é teleguiado por quereres alheios que determinam com quem, onde, quando convém estar, quais relações cultivar num eterno LinkedIn. Eus saudáveis atingem, na desobrigação, a lucidez do autocontato, demoram-se nos braços de si mesmos para conhecer-se, não se perdem de si no dédalo que a peleja lhes constrói.

Aprendem a ser seu próprio herói.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Em torno dela

17 de novembro de 2021 marcaria o centenário do pintor dinamarquês Albert Bertelsen, que infelizmente voou-se com uma precocidade de dois anos, em 2019. Era particularíssimo nas tintas, pode-se dizer que algo naïf, apaixonado por paisagens nórdicas, tons verdes e azulados, construções enormes em contraposição a humaninhos miúdos, pessoas de olhinhos minúsculos e caídos (e narizes grandes, bolotos). Muitas de suas obras me comovem pelas características singulares e às vezes quase fofas, apesar da melancolia chuvosa; mas, se destaquei acima a View Stampesvej/Vejle (de 1952), não foi tanto pelo Bertelsen específico, e sim pela semifuga ao que é típico do autor: a mulher de vermelho que se sobressai completamente entre tonalidades frias e seres de roupas escuras – essa me ganhou de todo assim que meus olhos, com ela e o bebê, desceram a ladeira da cidadezinha.

Veem que beleza o artista plantou debaixo de nossas vistas? Na rua de céu cinzento e sol esbranquiçado, aparentemente frio (todos os transeuntes parecem bastante cobertos), a mãe que empurra o carrinho é o ponto nevrálgico de luz e calor. Apenas o telhado da casa – fora um esgar amarronzado da vegetação – se mostra capaz de fazer dobradinha visual com a personagem, como se a tela sussurrasse: percebam que aparentados são os aconchegos do lar e da mulher; ainda assim, tentem cobrir com a mão a passeadora de vermelho e verão como a quentura da obra se esvai, e praticamente só resta o ar que sentimos nordicamente gelado apesar do solzito. A alma é ela, a mulher, e tudo se constrói em torno dela – única dos humanos visíveis, por sinal, que se posiciona de frente para nós, enquanto os demais ou se afastam cabisbaixos, ou ficam num meio-termo penumbroso e indefinido, frustrando o que quer que tentemos de interação.

Só a Mulher, a Mãe, nos encara sem olhos; sua pele se realça pelo viço rosado, vivo, que nos outros não há nem se adivinha. É a figura humana por excelência, a figura exclusiva que se aproxima em oposição aos outros (homens, todos?), os que dão as costas ou nos brindam com sua perfeita indiferença. E não é sozinha que ela se aproxima; traz o filho para nós, para o mundo, em lugar de levá-lo do mundo e escondê-lo solenemente em suas alturas particulares, em seu refúgio provavelmente aninhado no topo da ladeira (para onde o sujeito que caminha do mesmo lado está retornando com as necessárias compritchas). Pois não é – ou não deveria ser – propríssimo de mãe desacomodar do alto o seu fruto, para que venha por sua vez frutificar em terra real e firme? Venha, venha, Mulher de Vermelho, trazendo com quase palpável alegria o filho que é um ponto de luz, a despeito de estar onde só deveria haver sombra; embora seja imensamente cedo para o frutinho brotar, não é cedo para banhar-se de realidade e se afazer aos ares que o aguardam.

Enquanto os da Mulher o guardam.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

As armas e os não assinalados


Assistindo a um filmalhaço como Marighella (VEJAM, por motivos de OBRIGATÓRIO), que marcou nosso retorno cuidadoso ao cinema cerca de 20 meses após a última visita à sala escura, não tenho como não me perguntar: se houvesse vivido na década de 60, por acaso eu teria desenvolvido a coragem necessária para participar de um grupo como o do protagonista? Estaria disposta a arriscar vida, família, segurança, estabilidade, paz, silêncio em nome de mais do que uma ideologia – em nome duma necessidade prementíssima, duma urgência de nível (inter)nacional? Infelizmente não posso crê-lo; e não só pela obviedade explicativa de gostar de sossego ou de temer prisão e tortura, embora sejam verdades para mim e todos, mas também (e fortemente) por ser inimiga das armas até a última célula da última víscera, o que costuma ser péssimo currículo para um postulante à luta armada. Não se trata de desprezo pelo quê, o dilacerante é o como; todo o respeito e gratidão deste mundo que eu possa ter – e tenho – pelos guerreiros que peitaram a ditadura, toda a veneração pela força e lealdade de suas relações, tudo é ou seria imbastante para me mover às armas, para me fazer sequer tocar numa delas. Eu destruiria mil vezes esses objetos de morte do planeta inteiro antes de remotamente empunhar um só.

Sendo o ser humano complexo até a medula, no entanto, meu asco pelas armas não significa que eu não compreenda de coração as decisões de Marigha e seus companheiros; eu as compreendo, ainda quando não as apoio, e mui provavelmente (vivesse eu na época) acabaria assessorando o grupo à moda do soldado de Até o último homem, que por convicções religiosas jamais utilizava armamentos, mas não deixava por isso de ser fundamental no cuidado com os parças em plena loucura de guerra. Claro, não pretendo longinquamente supor que eu viria a ser fundamental, com certeza nem leeeevemente importante; acredito, porém, que talvez pudesse prestar servicitos periféricos como esconder algo ou alguéns, enfermeirar feridos, distribuir panfletos na maciota. Não sou uma peitadora, sou um bichinho da sombra – só conseguiria ser útil trabalhando na encolha e com um sorriso inocentíssimo à flor do sol; na qualidade de bichinho enviesado, oblíquo, é que serviria como leva-e-traz insuspeito, metida num vestido rodado da década anterior enquanto saltitasse recados para lá e para cá, com ar de normalista ou dona de casa que nem aí pra Hora do Brasil.

Não, não sou talhada para o embate – mas o sou 874% a menos para o fascismo, o que me impediria a inação completa tanto quanto as tendências naturais me impedem o arremesso de uma bomba numa embaixada. Felizmente há o backstage, a sempre possível resistência de suporte aos que só se reconhecem no front; é um modo mui menos heroico, certamente, e ainda assim palpável (e eventualmente ajudoso) de marcar presença, posição. Essencial é disponibilizar para a lavoura da verdade ao menos o pouco que se tem.

E não soltar a mão de ninguém.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

O vazio abissal


Por que em todos os casos, em todas as situações, essa criatura cujo nome não pronuncio se apega à metáfora do namoro, do casamento? Agora tem sido com o partido a que talvez se filie: é um tal de anunciar para lá e para cá um "noivado" a ser (ou não) reafirmado em casório. Sim, eu odeio a palavra casório, mas para essa pantomima de Teatrinho Trol – com todo o respeito a um programa honestíssimo – está bom demais da conta, e sobram baldes. Não é perfeitamente RIDÍCULO e psicanaliticamente disturbador pensar numa pessoa desse naipe com ideia fixa numa relação de entendimento, amor, aceitação, renúncia, ternura, enquanto tem encarnado o ódio itself, representado perenemente o dissenso e a guerra, o egoísmo e a incapacidade de escuta, a cegueira completa para o outro e a surdez mais absoluta para toda voz que não a própria?

Quisera ter aqui o tio Freud para uma demorada, abalizada investigação: saber que mecanismos psicológicos louquíssimos se conjuram na construção de alguém que se mostra o exato contrário de sua obsessão particular, como se, sei lá, Hannibal Lecter só fizesse comparações vegetarianas. Ou talvez os mecanismos psicológicos não sejam exatamente louquíssimos; há uma provável lógica em o cérebro aferrar-se àquilo que lhe falta, desde que a falta seja efetivamente sentida em forma de fantasia ou coisa que o valha. Falta amor, falta casamento ao criaturo-em-chefe? Devo crer que sim; o fato de ser casado, e de tê-lo sido outras vezes, não impede a profunda insegurança e consequente necessidade de exibição. Como explicar diferentemente o constrangimento de um chefe de Estado, no mais absurdo DO NADA, se vangloriar num evento público de ter feito sexo com a esposa? Há sempre um vazio abissal naqueles cantos da gente em que mais empilhamos excessos; quanto menos suportamos um vácuo, mais o tornamos exagero.

É triste, é mesmo bastante triste, mas não me vejo capaz de sentir pena (ou tampouco satisfação) diante dessa miséria humana específica, dado que somos nós os alvos indiretos de toda a coleção de recalques. Somos nós que sofremos as perversidades de alguém que, fraco demais para se afirmar por vias amorosas – as que mais, no mundo, exigem poços de bravura –, assenta-se nas cruéis, sempre facílimas e abundantes de vagas e recursos; afinal, nada mais acessível a qualquer nível de cognição do que simplesmente dar vazão ao id, bravatear, destruir, atropelar de vontades egoístas quem quer e o que quer que seja, sem a suprema força da reflexão, do autocontrole. Tristes de nós enfim; tristes dos que, ao fim e ao cabo, têm de carregar consigo a herança da tristeza alheia, involuntariamente atados a questões que não lhes pertencem, asfixiados pela avalanche dum relacionamento abusivo.

Mil vezes mais infeliz quem promove a morte para se sentir vivo.

domingo, 14 de novembro de 2021

Coach gravatinha


Wagner Moura foi amassado de críticas após comer camarão com o pessoal do MTST, e acredito que ninguém tenha comentado o caso mais brilhantemente que o ator e apresentador Paulo Vieira, no Twitter:

"Sobre comer camarão (seco) em movimentos populares: com o meu primeiro cachê em mãos, entrei no restaurante mais caro da minha cidade pra comer o prato de camarão que todos os ricos comentavam. Levei meu irmão e minha mãe, como em tudo. Entramos e gastei todo meu dinheiro lá.

Lembro que meus amigos mais ricos (pq eu sempre circulei nesses mundos) me julgaram com coachismos do tipo "por que não juntou pra mudar de vida?"; quase falavam isso com um camarão na boca. Quase dava pra sentir o bafo de camarão vindo de quem me dizia que aquilo não era pra mim.

Ricos gostam de controlar tudo, mas eles se empenham especialmente em controlar/delimitar/diminuir o tamanho do mundo a ser conquistado por cada indivíduo: A VONTADE DE CADA UM, O DESEJO, A AMBIÇÃO.

Dividir a comida eles não querem, mas querem mandar até nas nossas fomes."

Não resta muito a discorrer após esse socociológico tão lindamente dado por Vieira – aparente herdeiro da retórica de seu semixará, padre Antônio – na cara de cada um de nós. Mesmo nós, sim, que não somos ricos e estamos ABSURDAMENTE longe disso (estando em consequência absurdamente mais próximos da pobreza), pegamos e reproduzimos essa mania insuportável dos bambambãs da grana, esse falso paternalismo/moralismo que se sente no direito de tutelar a vida alheia com uma expressão mista de sabedoria de mundo e desprezo, de soberba e condescendência; um jeitinho todo historicamente edificado, todo mentirosamente edificante de dizer "ponha-se no seu lugar". São resquícios de tantos, tantos séculos duma pirâmide social esmagante, desde os primórdios acachapante em sua violência colonizadora e, ao mesmo tempo, costurada com uma linha de cordialidade cínica, que tudo transforma (ou finge transformar) em afetos, para o bem e para o mal – reiteradamente para o mal vestido de "é para o seu bem".

É para o seu bem, repetem com constância alarmante os que aculturam na marra, os que passam que nem trator sobre quereres e fazeres e saberes 100% desprecisados de tutoria ou tutela. 521 anos determinando o que é para o seu bem e o que não é para o seu bico; limitando, acorrentando, o mais possivelmente domesticando autonomias antes que elas (sei lá) cismem de cursar universidades em vez de faxinar a casa de seus generosíssimos tutores, tenham a estranha ideia de dedicar mais tempo aos próprios filhos e nenhum aos dos patrões, sonhem gastar seu dinheiro em outros países e não fomentar a economia no pequeno Cachoeiro do rei Roberto. 521 anos dessa palhaçada, desse whitemansplaining metendo ingerência em outras vidas e parasitando desejos para que desde o berço não cresçam, não queiram, só caibam na forma do cercadinho – ou seja, mais de meio milênio fazendo profecias autorrealizadoras e "preparando" magnanimamente as almas apadrinhadas para uma "realidade" que ele mesmo criou. Em nome do bem do pobre, educa-se o pobre para não aspirar ao que se lhe rouba. Sob a odienta esparrela de dar conselhos úteis, quem tem recomenda a quem não tem que não queira ter, enquanto é o primeiro a providenciar que ninguém mais tenha.

Peço apenas ao querido Paulo Vieira a licença de um acréscimo: justamente por não quererem dividir a comida, eu diria, é que querem mandar até nas fomes que não lhes dizem respeito. O paternalismo desvelado dos grandes não é senão um autotratamento de papaizinho, um autocuidado, um cão-de-guardismo na porta da despensa para assegurar o próprio caviar e deixar do lado de fora a farinata destinada aos subalternos; assegurar a própria portaria revestida a carrara e deixar a entrada de serviço como único acesso dos servidores. Preocupações compungidíssimas com o dinheiro que o pobre "alá, deveria estar gastando em comida e está gastando em cerveja" (como se pessoas lúcidas e maiores de idade não fossem capazes de equilibrar seu orçamento sem um coach gravatinha), condenações de fundo me-di-e-val ao riso que puxa alegria que puxa autoestima e confiança (corpos tristes são tradicionalmente mais controláveis), participações teatrais em campanhas de doação SEM QUE, com isso, se apoiem também políticas públicas que um dia talvez viessem a tornar desnecessárias as doações: tudo é parte do show dos que nunca doam para distribuir – doam para se apropriar.

Doam para que o pobre assim adquirido não exija a devolução de seu lugar.

sábado, 13 de novembro de 2021

Objetos que gritam


E Clarice Lispector?, que meteu um: "Se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita". Menino, mas é mesmo isso, querendo ou não somos feitos objetos diretos e indiretos por meia dúzia de sujeitos; embora muitos, podemos pouco – temos pouco –, não somos donos dos mui concentrados recursos que dão acesso à ciência controladora de opiniões, não possuímos meios de produção, podemos no máximo possuir alguns produtos e (com sorte) ter carteira assinada para produzir outros tantos. Que nos resta, se certamente um meteoro comunista não despencará da abóbada para realinhar a órbita econômica do planeta? Resta gritar.

Resta berrar com todas as fúrias: não somos resto, não aceitamos sê-lo, estamos conscientes de que desejam – e de quem deseja – que o sejamos. Resta botar a boca em tubas, trombones e todos os sopráveis barulhentos toda vez que tentarem amassar-nos, como quem solta "fogo!" ou "pega ladrão!" nas bordas duma ameaça. Resta nos debatermos, infernizarmos, não vendermos barato e fácil nosso encarceramento na vida que menos incomoda quem nos incomoda; não deixarmos que assassinos de sonhos tenham sonhos azuis em travesseiros de pena de ganso; não permitirmos que os promotores do inferno coletivo nanem em berço esplêndido, sem escutarem e pesadelarem os gritos daqueles que eles mandam para o abate, sem se sentirem entranhados todos os dias e noites daqueles que eles enviam para o matadouro. É nosso dever de oprimidos tornar o mais possivelmente insuportável a vida de gerar opressão, enchê-la de desconfortos, dar-lhe a cada brecha algum ensejo para remorsos, turvá-la com a verdade que desce límpida, embora amarga, diante dos olhos inocentes. Aos inocentes – pelo menos aos inocentes cientes do mundo – não cabe o silêncio; inocência não é ingenuidade, e as vítimas que mantêm a força da voz ficam obrigadas a bradar representativamente pelas que não.

Somos objetos e por muito tempo o seremos, já que assim caminha a humanidade? então muito bem (muito bem retórico): tenhamos a decência de, podendo, ser objetos que gritam. Objetos que fazem tuitaço, fazem passeata, exibem cartazes durante entradas jornalísticas ao vivo, tafulham de e-mails as caixas dos deputados e senadores, organizam abaixo-assinados, agitam vaquinha para alugar outdoors e espaço nos jornais e carros de som. Objetos que debocham por memes, charges, tirinhas, caricaturas; que soltam vídeos indignados nas redes sociais; que escrevem e compartilham textões; que ensinam inconformismo aos filhos e alunos; que xerocam e espalham panfletos; que explicam mais-valia aos colegas, aos funcionários; que dão de presente edições do Manifesto comunista em quadrinhos. Objetos que reclamam, denunciam, amofinam, alertam, insistem, insistem, insistem; objetos que são pedra no sapato, carne de pescoço, osso duro de roer, inacostumáveis com injustiças, explorações, preconceitos, insultos.

Objetos por circunstância; jamais sujeitos ocultos.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Palavras que vivem na sombra


Amo e me desespero ao descobrir o Atlântico de nossa ignorância no próprio idioma. Não que não sejamos fluentes, nele, para tudo que interessa, e que não nos viremos perfeitamente inclusive inventando alternativas para o que escapa. Mas não dá uma certa vertigem deparar com palavras que sempre estiveram ali observando, observando sem termos sequer ideia, feito fantasmas do vocabulário ou documentos que dormem nas gavetas, sendo que acordados poderiam simplesmente alterar a História? Sei lá, acho um bocadinho perturbador trabalhar com sinônimos diuturnamente e nem assim ter a mais vaguíssima NOÇÃO de todos quantos vivem na sombra.

Concionar, por exemplo, significa "anunciar" – já tinham esbarrado com essa pérola? Ensanchar, sabe-se lá por quê (imagino que não por consideração ao grande Sancho Pança, mas jurar, não juro), quer dizer "aumentar o preço ou a importância de algo"; gostaria bem de averiguar se os mercados têm consciência de estarem nos ensanchando o custo de vida que nem bestas insanas: ficariam, imagino, obstupefatos. Também fico obstupefata, obstúpida, contérrita, zaranza com a quantidade de opções no português para embasbacar-nos; certamente uma premonição – e um mau sinal.

Mas não se sarapantem por tão pouco, tem mais, tem de mais: um ser bonito como NÃO é o Brasil de agora pode bem ser venusto; um vil e sórdido como o atual chefe do Executivo (dicas, meus amores; anotem) é sem dúvida terrulento, moncoso, refece, túrpido, já que deixa nossa situação cada dia mais pesada, exaustiva, ímproba. Sim, andamos cercados de ladrões – agadanhadores, malandréus, pandilheiros, ventanistas, pechelingues –, e há que ser muito serenos, muito quiescentes, para sairmos vitoriosos no prélio. Claro, é dureza para todo mundo; desnecessário envergonhar-se, ou ficar encalistrado, se de repente se incorre em vacilo, em cincada; brasileiro que é brasileiro nasce trabalhado na esperteza, no paleio, na solércia, e cedo ou tarde arruma jeito de destruir totalmente – profligar mesmo – as trapaças, aldrabices, baldrocas e tranquibérnias que andam nos armando.

No enquanto-isso vamos descobrindo, nos instruindo e aletradando.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

É sobre isso


De tempos em tempos estoura alguma expressão, alguma gíria que toma a boca do povo ad nauseam e ferra paciências aguerridas. Agora, sei lá eu como e por quê, anda sobretudo entre os alunos adolescentes um tal de: "É sobre isso. E tá tudo bem". Não é que as frases em si tenham nadinha de mais – mas me chateia o fato de seus usuários as empregarem, ao que tudo indica, de modo perfeitamente aleatório; tenho uma aluna que enfia um "então, professora, é sobre isso" em quase qualquer circunstância, ainda que o isso em questão não tenha sido mencionado e eu continue sem saber O QUE raios é sobre o misterioso isso. Donde pitombas desabou essa muleta linguística? Por que (especialmente) os xovens repetem sem aparente reflexão a tal fórmula randômica?

Afinal o "problema" não se encontra nas gírias, e aliás, carioca de nascença e morança que sou, eu teria uma vida BASTANTE amargosa se fosse de implicar com gíria. Pelo contrário, uso-as como todo cidadão são-sebastianense as usa, pegando ainda diversas outras de empréstimo a estados e até países diferentes. O "tipo", por exemplo: é consideravelmente improvável manter um diálogo fluido sem mandar um único "tipo", que como conjunção & bengala & expressão fática é uma verdadeira maravilha; semanticamente é bastante compreensível, na fluência da frase se adapta que é uma beleza e só deixa de ser um recurso prático para virar um crematório de paciências quando a quantidade de "tipos" supera a das outras palavras somadas. "Tipo" é, tipo, algo bem razoável. Já se torna muuuuuito mais maçante encarar um "tá ligado?" pontuando TODAS as frases ditas por uma criatura – e mesmo assim não hesito um segundo em reconhecer a importância do "tá ligado?" para ir checando o canal e abrindo os caminhos do discurso. São termos que parecem se acomodar organicíssimos nas e entre as frases da conversa, brigando talvez com o nível de tolerância do interlocutor, porém sem brigar de maneira alguma com a lógica. Não é o caso desse desconcertante "é sobre isso", que lembra um eterno míssil lançado pelo Coringa de Heath Ledger sem justificativa, motivação ou cabimento: apenas porque sim.

Não cheguei a comentar com os adolescentes sobre o enigma, em especial porque não costumo coibir a naturalidade do que falam (a não ser que soltem termos que enrubesceriam Gregório de Matos, evidentemente); acho-me em simples posição de espectadora que constata e se irrita. O que é sobre isso? É sobre isso o quê? O que quer, o que pode essa nova mania que me lembra o "that's what I'm talking about" dos norte-americanos? Onde nasceu? como procria? do que se alimenta? E por que carambolas anda acompanhado de "e tá tudo bem", por mais que o tal isso tenha a tendência de ser algo cristalinamente nada bom? Cartas para a redação, por gentileza, com etimologia completa, explicações plausíveis e derramados estudos sobre isso.

Mas se estiverem em cócegas para dizer (como pressinto) que é coisa que todo mundo já sabe e já viu no YouTube, no Instagram, no TikTok, porque todo mundo tem internet no celular e só o meu que não tem: tá tudo bem.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Significâncias


"Nada no universo é insignificante", resumiu perfeitissimamente Friedrich Schiller, com seu senso de poesia agudo. Nada, nadinha mesmo é um mero nada, desde que exista: nem o buraquito minúsculo dos cadeados, que permite escoamentos d'água e evita a ferrugem em caso de encharcamento; nem os botões despareados, que muito bem encontram sobrevida atados a colares; nem as tampinhas extraviadas de suas canetas, que (por que não?) podem calhar de unir-se a canetas extraviadas de suas tampinhas; nem frestas tropecentas de calçada, donde brotam as folhas e florices miudiiiinhas que são meus encantos, e os prováveis encantos duma ruma de insetos. Também não são insignificantes os papéis escritos do que já não importa, inda mesmo que seus escritos não importem; no avesso, afinal, permanece o espaço da still criação, do rascunho, do começo, da paquera, do bilhete. Papéis inválidos viram barquinho, viram chapéu, viram tsuru – viram mil tsurus: desejos origâmicos dum mundo em que tudo se transforma.

Jornais inúteis não são tão inúteis que não forrem gaiolas, limpem janelas, embrulhem mudanças, protejam do corte os garis quando redomam vidros quebrados; vidros quebrados não são tão quebrados que em múltiplos casos não acabem em bijuterias; bijuterias horrendas não são tão horrendas que não possam, dissecadas, distribuir entre bijus maravilhosas suas peças de má combinação. Sem cada miniminho grão de areia não se junta areia para preencher a caixa do gato, o parque do filho; não se faz praia; não se faz pérola, que nada há de irritar a ostra; não se faz vidro (mesmo o que acabará quebrado). Sem cada microgota não se monta uma chuva, e ainda que não se monte uma chuva a microgota dará de beber a abelhas exaustas, e as abelhas exaustas se revigorarão para mais um dia de salvar o planeta. Força, irmãzitas.

Pétalas secas revivem em quadros, cartões; miçangas tresmalhadas começam a enxergar(-se) na condição de olhos de boneca; raspas de apontamento de lápis fazem-se desenhos de flores ou de saias bailarinas; cascas de frutas, de legumes, seguem na missão nutritiva tornadas farinhas ou chips; roupas já inviáveis mudam-se para o armário da limpeza, ressignificadas em trapos multiúso e panos de chão; notinhas de comércio eventualmente marcam livros, velhos marcadores de livro ocasionalmente desintegram-se em mosaicos artesanais, caixinhas de remédio dão em prédios de maquete, retalhos dão à luz nécessaires e niqueirinhas. Tudo se usa, reúsa, renasce; tudo pode ser – num momento que sabe-se lá – tudo de que você, seu vizinho, sua tia, uma joaninha, um gato, uma roseira precisa.

Sem um quê de tudo, nada se realiza.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Uma espécie de paladar


Tão linda a metáfora de Susan Sontag: "A inteligência é uma espécie de paladar que nos dá a capacidade de saborear ideias". Ligação apropriadíssima; assim como aqueles que têm o dom do sabor e da cozinha sabem em parte intuitiva, em parte estudadamente as texturas e substâncias que se combinam, que se completam, que se repelem – assim também a inteligência global elabora e tempera ideias num caldeirão. Umas tantas misturas se mostram desaconselháveis por instinto e olfato, outras demandam duas ou três receitas desandadas antes de se comprovarem incompatíveis; e há ainda a coluna do meio, habitada por matérias que em CERTAS condições trabalham deliciosamente juntas, mas que com um grau a mais ou um mililitro a menos destroem qualquer chance de empratamento pacífico.

Acho espetaculares as ousadias paladáricas de gente que – nos MasterChefs da vida – simplesmente é tomada pela certeza de que o toque pedido por aquela sobremesa é um pouco de bacon, o sabor ideal para o sorvete da vez é tomate com azeite, a carne vai ficar de comer rezando (no melhor sentido) sob uma grossa calda de chocolate. Por inegociável preguiça, não cozinho, porém me disponho de coração quase inteiramente aberto a provar inobviedades; excluo coisas nojentamente moles, estragadas ou vivas, e fora isso podemos conversar, ainda que a conversa envolva algumas despreferências (odeio palmito, por exemplo, e no entanto não me recusaria a provar um espaguete de pupunha ou algo semelhante, já que o aspecto em si não me repugnaria). Com a mesma mobilidade de experimentar paladares, tamos aí para aceitar novas argamassas de pensamento – sendo essencial, naturalmente, que nada na mistura se esmolengue por falta de lógica, nada indique podridões na estrutura, nada se mova estranhamente onde não deve. Se tem chance de se chegar a uma experiência acrescentante, tem jogo.

A comparação paladar/pensamento me é mais particularmente cara porque desde sempre me pareceu que palavras são mastigáveis, que algumas leituras são salivantes, outras engolíveis num gole. Por mero recreio nunca li os textos mais secos, digamos; quero-os abundantes, generosos, caldosos, claro que não salgados de enfartar nem açucarados de doer no dente, muito menos ácidos de esfaquear, mas temperados que ressoem, que acarinhem. Ler e pensar Machado não tem o gosto de Guimarães Rosa, que não tem o de Cecília, que não tem o de George Sand, que não tem o de Alencar; não importa, é o que se espera – também não quereríamos nem um pouco que uma boa feijoada se parecesse com um bom sonho de padaria; o fundamental é que, feijoada ou sonho, o texto mentalmente lido se estenda cheio e suculento, lembrável, rico e suficiente ao menos para a jornada a que se propõe. Não precisa ser a digestão duma vida inteira; basta, frequentemente, ser feito inteiro para a maré em que a inteligência o consome.

Bem-vindo seja o prato que atiça a fome.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Quantos nunca


Ainda me rasga o coração quando lembro a cena do filme Coringa na qual Arthur Fleck fala com sua mãe no hospital – e não pelo motivo que talvez imaginem, ou OS motivos, já que as pessoas que assistiram e as que não assistiram ao longa podem ter acabado de deduzir razões perfeitamente distintas, até opostas. O que me desassossega o peito quando penso na cena é a reação de Arthur ao fato de sua mãe chamá-lo constantemente de Happy, costume vindo da infância do garoto, que em vez de chorar (e SOBRAVAM justificativas para chorar Atlânticos) estava sempre rindo: "Feliz... Eu nunca fui feliz nem por um minuto, na m**** da minha vida inteira". Ouch. Há dois anos vi Coringa pela primeira vez e há dois anos tenho a incicatriz dessa frase dolorosa – não apenas pelo personagem, que logo acolhi em minha galeria amada de desamados, mas pelo calafrio de imaginar quantos não-personagens ele representa, quantos corações factuais podem repetir um script que não deveria ter sido nunca factual.

Dá quase vertigem (em verdade, deixemos de lado o "quase") suspeitar a existência de milhões de flecks, variantes infinitas que evocam a célebre abertura de Anna Karenina: "Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes são infelizes cada qual à sua maneira". Que triste coleção de maneiras haverá para ser infeliz, e não simplesmente ser infeliz – ter sido infeliz 100% do tempo? São biografias em que, ao menos no período de consciência, não houve sequer um instante de carícia, afeto, colo; não houve um intervalo de brisa, abraço, alívio; não houve uma cantiga, uma boneca, um passeio, um cachorro, um futebol, um Natal. Para JAMAIS terem sido felizes (ou assim o julgarem, o que considero de razoável equivalência), pessoas não podem ter tido o olhar e o toque de familiares amorosos nem por um dia, não podem ter brincado esquecidamente de tudo nem por uma hora, não podem ter se aferrado a um sonho nem por dez minutos, não podem ter beijado alguém profundamente adorado nem por poucos segundos. Nada que tenha embalsamado de azul o peito, nada, nadíssima; um deserto somente, por todos os lados – de rejeição, de pobreza, de fome, de frio, de doença, de cansaço, de guerra, de cimento. Uma solitária perpétua. Um inferno.

Sim, os tentáculos da frase me assombram; quero e não quero me insinuar em todas as zonas subterrâneas, minas de carvão, áreas de escravidão e tortura e bombardeio, saaras e presídios, becos e brejos, hospitais e manicômios – quero e não quero fazer esse recenseamento absurdamente sofrido: quantas e quais pessoas do planeta nunca, nunca, nunca foram felizes? Especialmente (não porque sejam criaturas "mais importantes" que as outras, é óbvio, mas apenas porque ajustam nosso foco para muito mais perto): quantas e quais haverá que, mesmo aparentemente fora duma situação extrema no físico e no geográfico, vivem em aridez interna de potência similar? quantos Arthurs Flecks a quem damos bom-dia no elevador nos sorriem vazios da chance de que o dia seja bom? quantos sofrem ou sofreram violências que sequer concebemos? quantos mantêm relações – ou são nelas mantidos – que configuram essencialmente o horror, o horror? quantos carregam uma depressão, inclusive em modalidade crônica, que os impede de vislumbrar quaisquer alternativas? quaaaantos se veem atrelados a empregos desesperadores? quantos, sobretudo, nunca foram amados?

Fico nas perguntas; não sei se eu suportaria as respostas. Há muito mais dores entre o céu e a terra do que pode supor nossa vã covardia.

domingo, 7 de novembro de 2021

Onde nos perdemos


"Onde está a sabedoria que nós perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que nós perdemos na informação?" Isso disse T. S. Eliot (ou ao menos lhe é atribuído), e olhem que o autor falecido em 1965 chegou nem perto de nossa era digital. Posso imaginar a consternação de Eliot se houvesse presenciado este interessantíssimo momento de histeria de dados, muitos dados, imensidões imediatas de dados que nos afogam a sanidade imergindo-nos no excesso.

Foi, acredito, o maior golpe de mestre da história humana, depois da roda literal: a rodagem ensandecida de detalhes ridículos, milmiudezas discrepantes, bafafás, irrelevâncias, tão a torto e tão pouco a direito que o que era audição vira zumbido, o que era visão dispara em vertigem. Combinemos que não se controla a curiosidade de nossa espécie – se estamos aqui vacinados e sobreviventes, por sinal, devemos incalculavelmente a ela –, e convenhamos: todas as tentativas de amordaçar a fera pela seca e pela restrição falham miseravelmente. Se não se fala, e não se comenta, e se cochicha, e se oculta, e os livros são vedados, e os arquivos são enterrados, e a instrução é proibida, pode crer que a sede e a fome dos nossos se concentra apaixonada em degustar longamente tudo que lhe caia sob os olhos, e a busca se torna questão de prioridade e honra; pessoas invadem localizações virtuais e físicas, passam bilhetes, escamoteiam cartas, criam códigos, espreitam conversas, leem escondidas em plena madruga, transmitem na encolha o que aprenderam e provam que NÃO HÁ o que não se descubra debaixo do sol. Inquisição, perseguição política, carimbo de censura, lista de obras condenadas, fogueira de livro e de gente – nadinha, nadica forma um dique inexpugnável à propensão humana de saber; o ser humano quer saber, o ser humano cedo ou tarde saberá. Os maiores detentores da grana, dos meios de produção e do interesse em dominar foram percebendo o óbvio, e ademais não tinham como não ver que, com a escalada da tecnologia, pensar em simplesmente esconder se ia tornando mais risível e obsoleto. Que fazer então? continuar escondendo – mas não numa casinha iluminada em meio a um deserto de dados, e sim numa casinha iluminada em meio a milhões, bilhões de casinhas iluminadas por dados que não têm a mais liliputiana importância.

Que os historiadores não me esganem pela ligeireza do "resumo", nem os filósofos e sociólogos queiram meu fígado por achar que eu poderia defender o conta-gotismo de informações. Pelamor, nunca: sou pela nudez forte da verdade e tenho ódio profundo de escamoteamentos, a não ser que seja para fazer os próprios dominadores de trouxas (ou de MAIS trouxas, porque bruxos é que eles não são). Mas é fato, não, queridos? cientes de que os serumaninhos a serem controlados vão mesmo querer saber, e de que só a educação bem administrada pode ajudar no processo de digerir informação em conhecimento e conhecimento em sabedoria, os exploradores de gente fazem o diabo para boicotar a educação em todos os âmbitos – no escolar, exaurindo e difamando professores; no doméstico, reduzindo ao máximo o tempo de que os pais dispõem para os filhos –, ao mesmo tempo que despejam ENXURRADAS de bobagem sobre cabeças que não conseguirão metabolizá-las. E, claro, não bastam as sub-informações de vexaminosa irrelevância (quem ficou com quem, quem usou bolsa assinada por quem de qual valor, quem estava sem calcinha onde, quem estacionou o carro na esquina de qual shopping), é necessário inocular também o ácido das contrainformações delirantes, absurdas, conspiratórias, desestabilizadoras. Que melhor método para, simultaneamente, ludibriar a fome dos cérebros e asfixiá-los de indigestão? O holograma da verdade custa comparativamente pouquíssimo, e distrai muito mais da verdade mesma do que o mero desejo de sua imagem real.

Nada demora mais a cegueira nas gentes do que a arraigada convicção de já estar vendo.

sábado, 6 de novembro de 2021

Bonitices de escutar


O brrloop-brrloop-brrloop da colônia de bolhas de sabão que fenece no ralinho da pia, quando a água já seguiu seu rumo.

O apito dos chamadores de senha nos bancos e restaurantes (nas primeiras 7 vezes, bem entendido).

Dedilhado de violão.

Letícia Sabatella falando e cantando com sotaque italiano na novela das seis.

Aliás, o flarunflarunflap dos vestidos de época – MUITA época; notadamente os do século XIX.

A digitação a 830km por hora da nerd/hacker Penelope Garcia, em Criminal minds.

O tema de encerramento do Papo de segunda.

O tema de encerramento do Fantástico (apesar de, com ele, se escoar o domingo).

A música tristonha que acompanha, no Fantástico, os cavalinhos dos times que estão na zona de rebaixamento.

Xilofone.

Francês.

Chiadinhos crepitantes de LPs.

Aquela vinheta antiquíssima do Windows que comentava burradas com sarcasmo inocente: "Ô-ôu!".

Falantes não nativos de inglês speakando um inglês lento, doce e desanasalado.

Serginho, do Roupa Nova.

Miss Minutes, da série Loki.

Tilintares sossegados de louça se entre(levemente)chocando, durante o chá. Se houver meio de ser na confeitaria é um plus douradito.

Passos de chegantes bem-vindos.

(Esses, os mais lindos.)