terça-feira, 30 de junho de 2020

Não ser tudo

Meditación, Pensamientos, Cima, montaña, solo un hombre, solo ...

O querido Bernardo Soares – heterônimo mais genial e desassossegado de Fernando Pessoa, que eu acolheria no colo ou apertariiiiia no coração com a maior das ternuras – exprimiu em um de seus desabafos: "Deus é o existirmos e isto não ser tudo". Que justeza! Não sei (nunca soube) como é para os que não creem, já que nasci e me criei crendo; mas, se assim não fosse, eu era bem capaz de abrir a porta a crer após esse único ressoar de Soares, por mais desconsoladas e tristes que sejam suas centenas de divagações – ou talvez por isso mesmo. O próprio desassossego de Bernardo (de Fernando, por extensão) é tão incabível, tão avassalador para uma só natureza humana que se mostra exemplo do quanto o humano transborda, não se contém nas esperadas margens, não se basta nem se aquieta no visível. O humano é imenso, hábil e aflito a ponto de ser impossível que termine; o que há nele se derrama, se espraia; e não por gerações de outros homens apenas, que estas acabam num simples estalar de sol. Existe em nós, necessariamente, algo que nos supera.

Alguns citarão a arte como veículo de permanência, porém a arte é consequência, não causa; a arte é um dos jeitos mais extraordinários de darmos forma ao buliçoso que levamos no peito, mas não é em si mesma a razão do bichinho buliçoso. E também não é fator de perenidade que se manifeste em 100% dos sapiens, nem todos são adeptos dessa maneira de botar humanidade pelo ladrão – o que injustissimamente excluiria do "não ser tudo" boa parte do planeta. A ciência? A ciência vem de nossas constatações justamente a respeito do palpável, sensível, audível; é, portanto, a parte do "existirmos", não a de "não ser tudo". O amor? Parece; até porque, em seu favor, ele é de acesso e uso universal, ou ao menos suas manifestações e legislações o são; não depende de uma vocação específica como a arte (ou outro qualquer talento), não está preso ao físico como a ciência e tem transcendência suficiente para permanecer além de nós. Mas exatamente: por que o tem? a que se assemelha? de onde vem?

Se somos capazes de amar nos mais amplíssimos formatos – amar mesmo, e não jogarmos contra o amor manchando sua reputação –, é por existirmos e isto não ser tudo; afinal, não há bastante lógica de autopreservação embutida no amor (em grande parte dos casos, até pelo contrário, uma vez que vive mais interessado na preservação alheia até à custa da própria); ele paira sobre o duro e o quantificável da existência e, inclusive, opõe-se essencialmente aos interesses comerciais, por mais que estes procurem apreendê-lo e domesticá-lo. Todas as versões de amor que podemos conter sobrevivem teimosamente à matéria que nos reduz, ao cotidiano que nos previsibiliza, ao profissional que nos tornamos, ao animal que somos, ao ente de sociedade que aprendemos a ser. É chama que nos cutuca para provar diariamente que o mundo não responde nem basta; que, só por estarmos, não significa que pertencemos, porque nenhuma rotina sozinha nos move e nos justifica. Há mais, há mais. Há uma emanação que nos é exclusiva, ou que temos a exclusividade de refletir e verbalizar. Pensarmos que não somos só isto sugere que não somos só isto. Agirmos não sendo só isto prova-o cabalmente.

Somos imagem e semelhança do que não explicamos, mas que nos explica.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Bagunças ambulantes

Foto profissional gratuita de bagunça, balbúrdia, cheio de cor

Azul nunca foi de minhas cores favoritas, nunca entrou e provavelmente não entrará em quaisquer listas que me definam; mas fico extasiada quando, nos programas de reforma, o reformador bota armários azuis na cozinha, especialmente aquele azul fechado, apetrolado, cor de mar na chuva. Meu vestidinho de formatura ensino-média foi azul-clarinho. Este mesmo blog é encimado de azul-céu. As variações do azul em fim avançado de tarde, quando o tom se intensifica e se limpa e se apura como uma redução de molho na panela – o AZUL! em si mesmo, gritado, pré-noturno, perfeição sem nuvens –, eis o que fico contemplando feito louca, sob risco de dar com o nariz distraído no poste. Em suma: sou formada de muitos, de recorrentes azuis, que adoro variados e lindos, mas nem por isso passo a cor na frente dos vermelhos, rosas, verdes, laranjas, turquesas no pódio de minhas representações. É isto que somos; bichos que não se entregam na primeira análise, bagunças ambulantes. Uma paleta de interesses tão própria, tão matizada, que não acaba nunca de ser entendida em vida, o que aliás nos veste de um fascínio impossível de desenhar e desdenhar. 

Ainda eu: sou pacifista até a última queratina, porém sonho (platonicamente) com uma Revolução Francesa. Tenho a França, aliás (sem laços nenhuns de sangue ou língua), como pátria do coração – mas prefiro os jardins livremente à moda inglesa. Sempre odiei matemática com todas as fúrias do ser, e vivo compartilhando as curiosidades mais fofas do planeta numérico. Me sinto culpada de matar a menor formiguinha em casa e assisto a programas de psicopata para relaxar. Jamais abandonaria o país se não fosse obrigada – e, se fosse obrigada, sairia com alívio. Nasci para o cheiro de mato, o toque na terra, flores, floooooores, vida em sossego retirado, e no entanto não tenho uma única plantinha pela mais absoluta preguiça de cuidar, nem me vejo morando a mais de dezoito passos do mercado ou da farmácia. Tomo antidepressivo por causa do magistério e, provavelmente, nunca conseguiria trabalhar em outra coisa. Não sou nem um pouco fã de madeira no piso, nos móveis, e a-ma-ri-a uma parede inteirinha de madeira de demolição. Também ninguém me conhece como fã de queijo, que sempre tratei e continuo tratando quase sempre com nojo – o que não me impede de comer puro o parmesão ralado. Ler é o amor de toda uma vida e estudar me desespera (embora aprender seja eternamente bem-vindo). Sou uma apaixonada definitiva do Romantismo, e ainda assim muito prática e pouquíssimo dada a cafonagens quando os livros se fecham. 

Nesses tipos de entretom, e em outros tantos, somos calmamente livres e podemos seguir contentes, inexplicáveis, rindo dos pequenos disparates que nos formam. Tudo bom, divertido. Mas há limites sérios, seríssimos; há points of no return que não podemos cruzar sem que a complexidade festiva descambe em incoerência de caráter. Exemplos, exemplos. Se nos propagamos antifascistas, antirracistas, antimachistas e tudo que vem nesse abençoado pacote, o "mas" é automaticamente abolido de todas as frases ligadas ao tema; nem um milésimo de sinapse deve, por um nanossegundo, relar o dedinho num "Eu não sou racista não, MAS...". MAS danou-se; o antirracismo original de fábrica, único possível, não opera com adversativas. É a mesma impossibilidade semântica de declarar "Não estou grávida não, mas às terças-feiras estou" sem ser encaminhada para o psiquiatra mais próximo. Da mesma forma, se nos assumimos cristãos, necessariamente eliminamos do rol de nossos apoiados todos os torturadores, todos os preconceituosos, todos os esmagadores de pobres, todos enfim que jogam no time adversário ao do fundador de nossa religião – e que seriam os primeiros a martirizá-lo. Ou você abraça Jesus, ou o chicoteia; não há o mais tênue, o mais microscópico espaço para MAS. Um qualquer PORÉM já avança dois quilômetros na jurisdição da barbárie. 

Somos múltiplos, difíceis, emaranhados, com metade do cérebro costurado nas entrelinhas, metade da alma debruçada nos paradoxos, porém numa certa fronteira paramos; além de determinado ponto não seguimos. Partes de nós se anulam se suas forças se deletarem num grande saldo zero. Tendemos a nos anular de todo, se insistimos em equivaler a nossos próprios inimigos.

domingo, 28 de junho de 2020

Um mundo cheio de

HD wallpaper: brown and white hamster between white and red boxes ...

Desejo-lhe um mundo com excesso de: risadinhas de bebês, aquelas de que nascem fadas; tampas de garrafa que desenroscam macias, sem ralar os dedos, mas também fecham convictas; livros novos da Jane Austen encontrados manuscritamente em baús inéditos (pesquisadores, mexam-se! providenciem!); sandálias maciíssimas em todos os pontos de toque, porém firmes como tanques no chão, embora sem barulho; músicas fresquinhas do Roupa Nova tão marcantes quanto as antigas; séries sobre reformas, construções e vestidos de noiva aparelhadas para nos abduzir por horas; bolsas perfeitas; esmaltes perfeitos; mates sem limão.

Desejo-lhe um mundo balofo de: superluas; porquinhos; porquinhos-da-índia; aplicativos fáceis e dóceis; médias com pão na chapa; receitas com maçãs e canelas; bolos de aipim; canetas milmente coloridas que nunca secam; colares coloridos que arrebentam nunca; corujinhas intrigadas que viram o pescoço; séries de Netflix que surgem apetitosas; roteiros de detetive imprevisíveis, indescobríveis; pelúcias do Pusheen massacráveis; quadros, quadrinhos, livros e tudos da Mafalda; travesseiros perfeitos; gelatinas perfeitas; expedientes sem reunião.

Desejo-lhe um mundo abundantíssimo de: Marisas Montes; Manuéis Bandeiras; Agathas Christies; Idris Elbas; Nandos Reis; pequenas Busby; imensos HDs; memórias e cômodos quentinhos; palavras cruzadas custosas e verossímeis; vias aéreas desalérgicas; bibliotecas autorrenováveis; temperaturas de locus amoenus; paisagens de cerejeira; cardápios de brunch; minicasas no jardim; maxiespaços no celular; doses de abobrinha cultural autorizadas pela OMS; tirinhas do Quino; petiscos de queijo; pãezitos de queijo; saques milionários; SACs eficientes; vacinas perfeitas; governos perfeitos; esperas e esperanças sem exasperação. 

Um exagero enorme de felizes aniversários, maninha, com parabéns puxados por Abba e Roupa Nova, dançados pelo elenco da Vila Sésamo, sambados por Clara Nunes, Zeca, Noel. Parabéns juninos, joaninos, são-pedrinos, parabéns azuis, parabéns-Mickey, parabéns-Amélie, parabéns com tudo que há a ser dito e escrito e bonito por todo mundo que teve a sorte de nascer com um mundo irmão. 

Parabéns de longezinho, diferentinho, com o mesmo coração.

sábado, 27 de junho de 2020

Hora da chamada

Gerbera Gotejamento Molhado Gota - Foto gratuita no Pixabay

Amo quando Manoel de Barros diz, num poema apropriadamente sem nome: "O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a/ imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás/ de casa./ Passou um homem depois e disse: Essa volta que o/ rio faz por trás de sua casa se chama enseada./ Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que/ fazia uma volta atrás de casa./ Era uma enseada./ Acho que o nome empobreceu a imagem". 

Não há que negar: há nomes que não eram para ser. Pororoca. Batizar um beijo líquido feito de dois sabores, um abraço de peitos d'água, um entrelaçar de forças úmidas com esse título que criança dá risada na escola – po-ro-ro-ca! Me dói o fato de ser tupi, língua tão melódica, mas tupi também erra, e esse é crime de lesa-poesia apenada em flagrante. Como era para ficar, não sei (entreaguadouro? fluvimaré? hidromeneu?), mas quase que cabia uma licitação de novos batismos, ou uma cúpula de poetas para discutir esse e outros rótulos que são matéria de poema, não de costume ou geografia. Também: atol. Nome pocket e prático, concordo, mas sem potencial de ser a lindeza que é; lembra bala pra hálito ou substância de nebulização (tem atol, mentol e eucalipto, freguesa). Que tal "anel de coral", "anel coralíneo"? Outra: conurbação, espécie de pororoca de cidades que merece mil parabéns em termos de feiume. Mas havemos de convir que urbanices muito crescentes vão perdendo mesmo o viço poético, então, sabe? sugiro nada. Já para a pobre gérbera e o infeliz ranúnculo, mimos de flor em que desalmados pregaram esses nomes de Comensais da Morte, eu aconselho "margarida matizada" e "quase-rosinha", respectivamente. Título de chamar flor é responsabilidade seríssima em termos literários, não sai assim pronto de laboratório, quero nem saber o que diz em latim ou quem homenageia. Flor a gente crisma pensando já em verso, em figura de linguagem, em texto do Alencar; a gente batiza devagar, com aguinha de orvalho. 

Já tem substantivos que nascem tão prontos, significante e significado tão colados em beleza, que parecem mentira do dicionário, milagres do idioma. Eu amo aljôfar, nenúfar, nácar, âmbar, áster, amarílis, íris, oásis, miosótis, girassol, lisianto, alamanda, capuchinha, madressilva, madrepérola, cânion, líquen. Têm esses vidros, essas transparências de rio que faz volta atrás da casa, umas sílabas repetíveis em cerimônias com fadas e demais florestices, uma reverência de imitar a cor e a forma do nomeado. É imensamente lindo aprender palavra que dá pinote no coração, revelando o quanto sempre ali esteve na coisa que a recebe, presente, vivente, só não colocada em fonema. Às vezes  eu bem queria essa função, a de achar e casar nomes bonitos com o que deveria tê-los ou ser tido por eles – incluindo gentes. Sim, mesmo as (internamente) não bonitas. Quem sabe se não é desacerto da vida de dentro com o "abre-te, sésamo" que corretamente a escancara?

Os poetas, creio, não saem deste serviço: vão testando toda a linguagem na fechadura das coisas até sua genuinidade, sua autossemelhança se desabotoar inteira.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Uma tiara antes do pôr do sol

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Muitos acharam alucicrazy a decisão do casal Harry e Meghan de abandonar a maquinaria da família real inglesa, mas ó: eu, pessoalmente, superentendo. No caso da atriz, imagino que devam ter pesado na escolha, sobretudo, os preconceitos escorregadios ou explícitos que sua origem angariou naquele universo – incluindo-se no universo o circo e o cerco da mídia, talvez de maneira central; se o pouquíssimo que sabemos sobre o caso nos revolta, pode-se conceber o quão duramente a duquesa foi ferida. Porém, ainda que não houvesse esse ponto de dor, eu já não compreenderia a possibilidade de se morar naquela lógica estapafúrdia, formada de regras sufocantes, doidas. As mulheres da ilustre família não podem usar chapéu após as 18h, não podem usar tiara antes do pôr do sol (a não ser em seu casamento), não podem cruzar as pernas, não podem se casar sem ter no buquê as flores de murta daquele pé plantado pela rainha Vitória em 1845; integrantes da família em geral não fecham as próprias portas, não manifestam opiniões políticas, não mostram carinho em público, não comem frutos do mar fora do palácio, só viajam se levarem uma roupa preta de luto na bagagem – e, se forem os cinco primeiros herdeiros na fila do trono, nada de viajarem todos no mesmo avião. OK, essas e outras semelhantes amofinações são very rich people problems, concordo; não comparo nem compararia nunca com sofrimentos do mundo real. Sem chance. Mas devo admitir que jamais encararia essa bagaça de etiqueta toda, pelo que tem não só de (insuportavelmente) tedioso como também de simbólico.

Não demonstrar carinho em público? Peraí. É bem verdade, claro, que nenhum membro da corte inglesa se arriscaria a ser morto se o fizesse, como milhares de casais homoafetivos pelo mundo se arriscam todos os dias; não discuto que uma bronca da rainha não tem nivelamento possível com agressões homofóbicas; ainda assim, não se anula o reconhecimento da alguma espécie de bestialidade sempre contida na contenção, na vigilância dos gestos mais humanos, mais d'alma. E já que falamos em casais homoafetivos: que acontece se um herdeiro da coroa se descobre gay? É abraçado ou é amassado pelos protocolos?

Não expressar opiniões políticas – outra paulada emocional. Expressar-se é da ordem do sagrado; não bastasse ter de engaiolar suas inclinações físicas, suas espontâneas ternuras, o povo da realeza enjaula os transbordamentos morais, precisa medir os verbos tanto quanto os suspiros, os atos falhinhos de aprovação ou nojo, os revirares d'olhos que tão facilmente liberamos. Definitivamente é regra que não me serve, e em meia semana eu estaria defenestrada de Buckingham por me recusar a olhar algumas caras e apertar algumas mãos. Além de não se pensar nem amar com muito som ou luz, tem as bobagens significativas, toleráveis num dia e asfixiantes numa vida completa: não cruzar as pernas?? Please. Desde os idos da infância, não sossego com elas um minuto – cruzo, descruzo, recruzo, ponho sobre o sofá ou a cadeira, na abençoada busca humana pelo conforto. Ter marcação no relógio para chapéu e tiara? Faça-me o favor, é justamente após as 18h que o frio aperta, e se eu quiser usar uma boina fofinha e fornida? Tolices mil, mas tolices em que a gente não pensa exatamente por nos serem lícitas, por não termos regulamentos no cangote filmando a maioria dos gestos. Como embaixadora universal das "me deixa" people, como representante sindical dos sem-WhatsApp por motivos de estou ocupada lendo, como advogada das que não têm nem maquiagem, nem salto alto, nem pequenos herdeiros nem saco de dar satisfações, sinto o horror desfilando em carro aberto pela espinha ao mero pensamento dessa big-brotherização de cada vontade, look, piscada, pisada, vacilo, espirro.

Nenhuma vida longa a essa rotina sem boletos, mas cheia de códigos e barras.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Oceano primordial

Antártida Gelo Mar - Foto gratuita no Pixabay

Sei que ando muito espaço-siderálica, mas quem há de me culpar, se a Terra não tem lá incentivado muito nosso... patriotismo? planetotismo? Enfim. Pode ser também aquela coisa junina, "olha pro céu, meu amor, vê como ele está lindo" feelings. O caso é que não consegui olhar para as notícias do céu e não achar linda a informação de que Plutão, contrariando sua fama de frieza eterna, pode ter nascido ardente, incandescente, e estar escondendo sob a crosta gelada um oceano que se formou graças a essa forte temperatura derretedora – seu oceano primordial, algo que aumenta as chances de sustentar vida. Que ideia, que nome bonito demais: oceano primordial. Ainda que congelado, ainda que subterrâneo.

Bem assim costumamos ser, nós, miniplutõezinhos; em grande parte temos uma infância muito marcante, muito intensa, muito viva – psicologicamente, quero dizer. Não é necessário que tenhamos crescido com oito irmãos, trinta e quatro primos, seis doguinhos, dezoito gatos, uma onça e três capivaras; não é necessário que tenha rolado fazenda, carnaval, viagem, circo, acampamento, fantasma; não é necessário que tenha havido nada furiosamente maravilhoso ou estranho, mágico ou terrível do lado de fora, porque qualquer infância (se merece a designação) é de natureza vulcânica às vezes invisível aos olhos, mas sempre combustível por dentro. Uma criança é um ser em brasa, em labaredas de estímulos e aprendizagens e descobertas e choques e leituras e aromas e informações e pavores e sabores, trinta horas por dia – como o misterioso expediente dos caixas eletrônicos –, talvez porque sonhos e fantasias e devaneios fazem hora extra na construção cerebral. Constituir tooooodos os dados sobre um mundo louquíssimo no qual se recém-entrou é trabalho que põe cabeças infantis em queima ininterrupta, e é da combustão interna desses primeiros anos que nasce nosso oceano primordial, capaz de sustentar bases de nossa vida por todos os seguintes. Somos o que somos hoje porque ardemos, ontem, no processo de construir uma essência. 

Evidentemente continuamos, dia após dia (até o último dia), pintando e repintando nossas paredes, retocando a decoração, atualizando nossas hidráulicas e circuitos, mudando pisos, bibelôs e azulejos; porém as estruturas já estavam feitas, os alicerces já estavam colocados, e esse arcabouço inicial só muda INTEIRO se nos demolirem, se nos destruírem completamente. Alteram-se gostos, paladares, manias, crenças, preferências – mas, acredito, dentro de uma margem que já estava prevista e possível no oceano subterrâneo. A timidez continua morando, embora retrabalhada, no ator de sucesso; as histórias lidas e esquecidas continuam alive and well dentro das várias opiniões e empatias que desenvolvemos; a fé amorosamente incutida pelo exemplo sobrevive nos olhos científicos, respeitosos e reverentes; a incapacidade de machucar animaizinhos persiste mesmo naquele que hoje não consideraria ter um em casa, assim como uma velha tendência à crueldade com os bichitos virá à tona em alguma escrotidão do cidadão modelo; a coragem do desbravador que foi uma criança medrosa já residia, em verdade, na própria introversão dessa criança que observava sem ousar, mas que fantasiava com avidez o mundo – e um dia deslanchou. Passamos, sim, por metamorfoses, porém restritos a um só DNA, a uma só substância a ser constantemente ressignificada; não damos luz a nenhuma asa cuja célula não tínhamos, não mostramos nenhum absurdo de caráter cujo sinal já não dávamos, não nos tornamos nada cujo embrião não incubávamos de alguma forma. 

Vá que não é bonito, mas o fato é que somos chocadeiras ambulantes de ovos de beija-flores e serpentes; dureza é só darmos ou recebermos condição para a eclosão dos últimos. Quanta perda, quanto desperdício humano – nosso e alheio – porque não há olhos bastantemente treinados para descongelar o melhor dos oceanos primordiais! Que nisso está a vida maior dos corpos celestes e terrestres: alastrar na superfície a história subterrânea mais apta a povoar-nos com proveitos de evolução.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Terceiro grau

Ovni Extraterrestre Bienvenido - Imagen gratis en Pixabay

Vocês podem achar que estou de mangação, mas juro: hoje é o Dia Internacional do Disco Voador. Diz que a história começou nesta mesma data em 1947, quando um piloto americano garantiu ter visto nove OVNIs nas proximidades de Washington; para ficar mais palpitante, poucos dias depois teriam sido descobertos a nave e os etezinhos do caso Roswell. Lamentavelmente, meu bom senso acreditou nos 17 mil anos-luz que, há cerca de uma semana, os cientistas afirmaram ser necessários para um contatinho com a vida inteligente mais próxima (tenho essa coisa demodê de acreditar na ciência, apesar de nossas limitações); não posso dizer, portanto, que levo fé na visita dos coleguinhas de além-céu. Nem sei se queria levar. Em minhas memórias, nunca foi algo que me preocupou minimamente. A máxima questão que me ocorreria nesse assunto é: sendo convidada VIP, tipo Contatos imediatos do terceiro grau, eu toparia embarcar numa navezona rumo a sei lá o quê, desde que os tripulantes tivessem o nível de adorabilidade dos alienzitos do filme?

Olha. Toparia.

Creio coraçãomente na evolução humana (não estou sendo irônica, que feio vocês pensarem isso), no entanto é desesperador, é lento, é frustrante, demora. Lá na última gaveta d'alma eu sei que chegaremos lá; mas por que não tentar dar uma força no processo abraçando um curso de formação intensiva, um workshop zero-oitocentão oferecido por universidade BEM estrangeira? OK, os terráqueos terraplanistas provavelmente não reconheceriam o diploma nem aceitariam aulas sobre o conteúdo, depois que eu retornasse do intercâmbio toda trabalhada no compartilhamento. Euzinha já teria antecipado essas amofinações, porém, e não sairia da nave sem as mais avançadas técnicas de persuasão daqui até Andrômeda, ou sem algum aparelhinho delicioso que procedesse ao realinhamento dos neurônios (Darwin que me desculpe, mas: sem tempo, irmão). Não me falem em dilemas éticos, não quero lobotomizar ninguém – só dar uma desentortada num cérebro ou noutro e salvar o planeta da autodestruição, ambições simples e saudáveis. Por sinal que meus professores galácticos, consternadíssimos com os casos que eu relataria sobre um povo que se esfrega alegremente na extinção e no vírus, seriam os primeiros a embrulhar uns 432 aparelhos desemburrecedores para eu trazer de brinde. Just in case.

Mas quem garante que a abdução voluntária seria viagem com volta? – ora, direis. Ninguém garante, é fato. Ainda assim, vão dizer que não confiariam nos etezinhos fofíssimos do jovem Spielberg? Eu confiaria ao me autofazer um discurso: se as criaturas têm tecnologia suficiente para contrariar tudo que sabemos de física e mandar a regra dos anos-luz para o (hum) espaço, já são evoluídas a ponto de terem deixado para trás as pulsões de morte e destruição que caracterizam nossa barbárie. O sujeito que aprendeu a dar salto quântico não teve tempo de querer guerra com ninguém, ao contrário; provavelmente está cheio de amor e conhecimento pra dar e é habitado pela fúria de partilha dos precursores, que não veem a hora de: "sabem o que eu descobri? hein? hein?". Na dúvida, fico também habitada pela maior fúria de nossa espécie – pela curiosidade humaníssima da busca, da entrega, do pulo nos braços da aventura oferecida. Não seria eu quem enjeitaria a chance sagrada da Experiência em maiúscula, com medo mesmo; se anda sobrando medo aqui sob a nossa atmosfera, custava pouco transferi-lo para novos ares. Ou ausência deles. 

Só peço aos prôfis cósmicos algum sinalzinho antes de um próximo recrutamento (coisa de estrela cadente ou eclipse imprevisto já dá conta), bem como um boletim meteorológico básico lá dos infinitos aléns e as especificações da bagagem de mão. Sou terráquea mas não sou bagunça; não é porque a pessoa foi chamada entre bilhões para desvendar uns mistérios do universo que vai sair sem levar um casaquinho.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Clube de vapor humano

Futuroscope Fachada Espelhos - Foto gratuita no Pixabay

O filósofo espanhol José Ortega y Gasset falou lindo, lindo da poesia ao declarar que "o que distingue um grande poeta é o fato de ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós". É frase de captura fotográfica, que encaixa na arte poética (e em outras várias artes, por extensão – senão em todas) feito pecinha de tétris. Que é afinal a poesia, além de um formato específico de nuvem? Sentimentos que evaporam muito similares de todos os peitos reúnem-se, enfim, nesse clube de vapor humano que é o poema, nessa coisa real mas ainda intangível, porque muda diante dos olhos até em sua obviedade. 

A boa poesia sempre nos assusta docemente: é, ao mesmo tempo, o espanto da linguagem inaugural e o susto do reconhecimento ancestral. Como ousa o autor reestruturar tão individualmente o que é de todos, e como ousa escancarar para todos o que é tão nosso? Ler versos (para nós) inéditos é o primeiro contato com um idioma em que nascemos esquisitamente fluentes; em poesia somos constantes bebês aptos para qualquer língua, que nenhuma sabem e sabem todas, porque nenhuma estranham. Cada texto poético é um ovo que Colombo sustenta em pé de mil formas, e engaja o leitor a olhar, a olhar com a sutil irritação de que poderia ter pensado naquilo e de que nunca teria arrancado a ideia de seu limbo com a mesma força. Ali estamos como num espelho doido (e doído) de parque: somos nós na essência, mas é um reflexo de nós só especificamente possível naquela superfície polida por mão de poeta.

Todos temos infâncias, e no entanto nossas infâncias relembradas mudam quando mudamos de Manuel Bandeira para Manoel de Barros, de Cecília para Casimiro, de Vinícius para Drummond. Todos temos amores, e ainda assim nossos mesmos amores vividos são revividos diferentemente em Hilda Hilst ou em Castro Alves, em Adélia Prado ou em Ferreira Gullar, em Florbela Espanca ou em Luís de Camões. Todos temos filosofias, e as que de manhã nos parecem absolutamente reconhecíveis em Ricardo Reis parecerão, à tarde, mais similares a nós em Conceição Evaristo, podendo à noite tender decisivamente para Mario Quintana. Quais deles somos nós? todos: se é experiente o poeta na confecção de eus líricos, hão de borbotar daquela fábrica tipos humanos que já vestimos, e a eles iremos por serem sempre do nosso número – mesmo que, pela novidade do talhe, uma ou outra manga não encaixe perfeitamente. O autor não nos adivinha; o autor se expande. Ao se ler, lê o código genético da mesma fonte que nos origina, e lê cada qual a seu modo: com sua voz, com sua cadência, com seu sotaque, com sua fonética, aprofundando os trechos que mais o encantam ou mais lhe doem. Ouvimos e entendemos, rememoramos a seiva da mesma árvore, reagimos à madeleine coletiva da experiência humana. "Humano sou", resumiria o poeta Terêncio, "nada do que é humano me é estranho". 

Estranho será – estranhos seremos – se não reencontrarmos alguma parte em parte alguma. Compreender, curtir, frequentar, ler, repetir poesia é opcional; mas não ser atingido por ela em nenhuma brecha de reconhecimento já é problema de DNAlma.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Horas mortas

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Vejam, não me entendam mal, eu gosto de vida, mas prefiro as horas mortas. Até porque é injustíssimo o nome que lhes dão: não são nada mortas, estão apenas desabitadas de gente, porém plenas de morcegos, grilos, passarinhos. Nas horas mortas há o silêncio das vozes e das inquietudes, das discussões, das televisões, dos churrascos, dos telefones, dos interfones, dos abre-fechas de elevador, das campainhas, dos porteiros, dos carrinhos de compras, dos ajeitamentos de móvel, das percussões do vizinho, das trilhas sonoras impostas pelo vizinho. Existe-se mais devagar nas horas mortas, pisa-se mais leve, não se vão despertar as angústias gerais que dormem; os homens, as mulheres já cessaram ou ainda não reengataram de viver em voz alta, não recomeçaram o celular aos brados na janela ou a videochamada aos brados no apartamento de baixo (por que o foro íntimo precisa ser tão coletivo, Senhor?), não reiniciaram as broncas e os jogos com as crianças, que também não retomaram as birras, os gritos, os choros, as correrias. As notícias bombásticas apenas engatinham no dia, ou já cansaram; quase que não aconteceram, de tão sonolentas a este ponto ou por enquanto. Ah, o silêncio, o silêncio. O silêncio do oxigênio fresquinho, o silêncio que é oxigênio refrescante, raro, bom. A possibilidade brevíssima do silêncio.

Vejam, não se assombrem, eu amo as cores vivas, mas não resisto à penumbra das horas mortas. Os instantes em que o sol é macio, quase destropical, e veste de carícia amarelada os detalhes dos prédios sem doer no olho. Os tons carinhosos à vista com que o céu se crepuscula. O azul de muito cedo ou muito tarde, limpo de tudo, recém-espremido ou recém-evaporado. A delicadeza sem estridência, a beleza sem agressividade, nada das tintas irritantes e suadas do meio-dia, nada do reflexo excessivo na calçada branca; veludo, somente veludo, somente primavera e outono. Matizes também têm seus silêncios, seus sopros, também caem de temperatura fora de horários comerciais – como os ventos. Todos os sentidos são abordados com menos audácia nessas dobras do dia; e ao mesmo tempo, poupados da violência dos estímulos (poupados da fumaça, da buzina, do microfone das lojas, da fúria de vendedores e termômetros), conseguem perceber mais, estão aptos para as essências úmidas da terra, para os mais minuciosos vertebrados e invertebrados que ciciam barulhinhos. Momentos de baixo apelo externo são a inteligência do corpo.

Vejam, não me mal interpretem, eu quero que as pessoas vivam – mas não consigo reclamar de que as ruas se tenham enchido de horas mortas. É com culpa que me animo a rejeitar a normalidade, e no entanto, sem o desejar, rejeito-a; confesso gostar da introversão do mundo, da espécie de mudez pujante que se espraiou por avenidas obrigadas a parar, do vibrar de unidade da multidão oculta, embalada individualmente. Gosto do planeta hibernado, desperto mas recolhido, mais pensante, mais filosófico – como eu secretamente gostava, em criança, dos apagões que nos uniam, nos reestruturavam a realidade e nos forçavam a descontinuar o que estivéssemos fazendo de rotineiro. Gosto do planeta à luz de velas, confrontado consigo mesmo, trabalhando a criatividade e retrabalhando suas lógicas; não sinto orgulho de preferi-lo assim, porém sei que não há nisso pulsão de morte e sim, ao contrário, de sossego rebrotante. (Não, eu não passei os últimos meses em Netuno e sei bem que muitas atividades dependem do não isolamento, do não silêncio; daí mesmo me vem a culpa – embora eu não possa ter a pretensão de que meu gosto pela quarentena afete ou deixe de afetar os protocolos de segurança. Como lidar com os remorsos de minha preferência e adaptação involuntárias? Tentando ser útil a alguéns.)

Vejam, não me mal entendam, eu gosto de gente; somente sou incapaz de evitar me sentir confortável em sua ausência.

domingo, 21 de junho de 2020

Pequena odisseia ano adentro

Ficheiro:VathiGrece.JPG – Wikipédia, a enciclopédia livre

Volta e meia passa um meme de Facebook declarando que "não vou incluir o ano de 2020 na minha idade. Eu nem usei!". A gente lê, sorri e aperta a reaçãozinha do haha, mas a coisa é tristíssima. E nem falo das tristezas evidentes que vieram na caixa do corona, postada na agência do inferno pelos Quatro Cavaleiros do Apocalipse: falo da pressuposição dolorosa de que um ano tão extremo possa ter sido não usado, não vivido. Como assim, nem usei?? Seria limitar pobrissimamente a experiência humana às saídas para o trabalho, shopping, balada; seria considerar que somos utilizáveis e produtivos apenas na rotina – fingindo ignorar, aliás, que to-do-san-to-a-no chegamos a dezembro com o ar espantado de quem estava no desfile da Mangueira ainda ontem e não teve tempo de fazer bulhufas. Se só a exterioridade e o hábito carimbassem os anos como mission accomplished, estaríamos constantemente plenos e saltitantes ao fim de cada ciclo, e não (admitamos) chocados com o escoar das horas em fluxo de cachoeira, frustrados com os projetos irrealizados ou feitos aos trambolhões, agoniados pelo virar da folhinha e o zerar das promessas incumpridas. Porque atingir nova idade não vem de viver para fora, vem de ser redesenhado do mundo para dentro.

Em 2020 já: fomos apresentados à realidade da pandemia, imergimos num primeiro marco histórico, readaptamos os expedientes, baixamos aplicativos de videoconferência, aprendemos a usar aplicativos de videoconferência, corremos loucamente para implementar tentativas de educação à distância, sofremos desventuras e chiliques com as tentativas de educação à distância, fizemos reuniões online com crianças promovendo UFC em segundo plano, ganhamos máscaras diversas como acessórios de vida ou morte, viramos craques em modelos de máscaras, conhecemos o face shield, assumimos que o álcool gel is the new água, demos banho em saco de batata frita, demos chance ao livro encostado, demos valor a empregos e relações estáveis, adotamos hobbies, adotamos catioríneos, desenvolvemos novos conceitos de festas aniversárias, pascais, formandas, casamenteiras e juninas (Deus permita que as natalinas escapem do bonde), frequentamos cultos religiosos pela TV e internet, mudamos a forma de dar presentes, mudamos a forma de estar presentes, reconceituamos as saudades, descobrimos vizinhos, batemos palma na janela, batemos panela com a alma, assistimos a lives, organizamos lives, suamos a camisa to stay alive.

Também: constatamos que permanecer vivo ainda é privilégio de cor, explodimos em manifestações contra o racismo estrutural, fomos varridos por ondas várias de racismo estrutural, ardemos em debate e indignação, vimos os Estados Unidos marcharem, vimos o mundo marchar, vimos profissionais negros assumindo mais espaços nos jornais, imergimos num segundo marco histórico, ficamos transtornados e perplexos com o navio fantasma que erra à deriva na capital brasileira, odiamos o ódio, odiamos mais, odiamos mais um pouco, presenciamos o acender de tochas fascistas, presenciamos o apagar de ministros-cometa, acompanhamos a queda de meteoros sobre a família-em-chefe, observamos com pipoca o desenrolar de baixarias, maratonamos discussões épicas em canais de notícias, aguardamos cenas dos próximos capítulos. Contemplamos, aprendemos, ressignificamos, reprogramamos e alteramos uma tonelada, e isso apenas até junho; como então não vivemos? Mesmo para a turma da quarentena mais aguerrida (na qual me incluo), como supor que não sair impede o ano e as experiências de entrarem, invadirem, não raramente nos atropelarem, transformando-nos em filhos legítimos deste tempo, em Ulisses de alguma odisseia particular – provavelmente a de Joyce, já que o mundo não nos tem deixado viver Homero?

Sim, usamos 2020 largamente, ainda que em espaços mais estreitos e com elásticos mais apertados. Em diferentes escalas, diferentes obstáculos e dramas, tecemos versões alternativas de nós que espero nunca venhamos a destecer penelopemente; nada teremos vivido, de fato, se retornarmos incólumes ao "normal" e esquecermos que o velho "normal" (como relembra outro meme de pontaria mais feliz) era exatamente o problema. Que as rotações de nosso eixo tenham valido; que a jornada íntima e a pública nos tenham ensinado; que aportemos melhores em nós – nós individuais e coletivos – como resumem fabulosamente os versos de Konstantínos Kaváfis, na tradução de Ísis Borges da Fonseca: "Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou./ Sábio assim como te tornaste, com tanta experiência,/ já deves ter compreendido o que significam as Ítacas".

sábado, 20 de junho de 2020

Vidas possíveis

Paisagem Janela Pedras - Foto gratuita no Pixabay

Não acredito em vidas passadas; não mesmo. Entendo aquelas lembranças randômicas, de um tempo que não poderíamos ter frequentado, em parte como memórias geneticamente recebidas e em parte como reelaborações de nosso próprio cérebro – que, convenhamos, é um aparelhinho de mistérios e peraltices. Uma jornada só, por cima da crosta terrestre, já dá trabalheira que chegue e nos assinala como únicos, intransferíveis. Mas isso tange a crença de cada um e não vem bem ao caso. O ponto é que acreditar numa única existência não me impede de imaginar o que poderia ter sido se essa existência tivesse calhado em outros séculos e realidades; o que, com base naquilo que me sei, sou levada a pensar que eu seria.

Se eu tivesse nascido em (sei lá) 1841. Supondo que surgisse no mundo como sinhazinha de fazenda, suspeito, com 99,7% de provas e convicções, que viraria a rebelde da família – mas na miúda, na encolha, pra render mais. Não era eu besta de bater muito de frente para me deitarem logo os cabrestos, o que não teria nenhuma serventia; ia fazer a sorridente na sala, toda acima das desconfianças de que ali houvesse uma alma de potro brabo, e surdinamente alfabetizaria os escravos e lhes daria fuga, sempre de maneiras várias e criativas. Seria sonsinha o bastante para ninguém descobrir nunca que aquele anjo do patriarcado era uma abolicionista ardilosa, uma feminista de nascença, divertindo-se horrores em agir e escrever bem debaixo dos bigodes senhoriais – em fazer panfletos e desfazer articulações; vazar gente, joias e informações para o quilombo. Caso finalmente viessem a olhar cabreiros para a donzela tão bem-comportada (porque quase toda burrice tem limite), lá fugiria eu, lindona, para me casar com meu poeta romântico não previsto pela família – de preferência o Casimiro, se topasse o abolicionismo e a noiva, nessa ordem. Se não topasse, meninos literários ardentes, frágeis, carentes e republicanos não haveriam de faltar naqueles outroras. 

Também me ocorre que eu poderia ter caído como alemã já moça nos anos 40, mas do século seguinte, e a narrativa para mim é sempre a mesma: me vejo tendo um prazer inenarrável conspirando com o máximo de arte, escondendo centenas de judeus nas próprias fuças dos nazistas, providenciando identidades e passaportes, "contrabandeando" órfãos para lares confiáveis, fazendo os vermes arianos de (mais) idiotas com o maior cinismo e desfaçatez que o Criador pôs no mundo. Ou então eu seria uma infiltrada assim semelhante na ditadura militar brasileira, uma insuspeita que amaria ser um porto seguro, mocozando perseguidos no meu próprio quarto, necessário fosse. Sairia vestidinha de normalista para transportar mensagens guerrilheiras e, entre conversas inocentes e familiares com os tios milicos, descobriria um tantão de dados a serem devidamente encaminhados para minha querida resistência. Em suma, vê-se que pilhei um coração de Cavalo de Troia, um furor de explodir o sistema odioso bem pertinhamente do núcleo, um gozo de ir minando o terror como o cupim agindo nas bases – no silêncio, na malandragem, na come-quietice, escoando feito água que não se segura nos dedos, deslizando pelas sombras, pelas frestas. Uma coisa meio Andy Dufresne em Um sonho de liberdade, filme obrigatório de 1994 que é meu espírito animal.

Quem sempre supôs em mim um sorriso amigo das regras (acontece muito quando não somos os rebeldes levados, e sim os intangíveis), look again. Não vou ser a mosca que pousou escandalosa na sua sopa, mas posso perfeitamente ser a que escuta horrores na parede sem dar nenhuma pinta.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

O mundo não se satisfaz

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O mundo não se satisfaz – nunca. 

Individualmente haverá sempre as subjetividades que nos compreendem, ainda que não nos apreendam, e é para os braços dessas que corremos em fuga da loucura e do colapso total. Mas o mundo, em sua generalidade caprichosa, não se satisfaz. O mundo nos deseja mães, se não o somos; deseja-nos mães outra vez, se o somos já; deseja-nos menos mães, se já o fomos repetidamente. O mundo exige que usemos maquiagem e sejamos naturais, que riamos e não riamos demais, que revivamos medos e os deixemos para trás. O mundo espera que trabalhemos muito, muito, muito, porém não excessivamente, uma vez que é preciso maratonar todas as séries in e alimentar todas as redes sociais e responder em dois minutos a todas as mensagens e buscar novos conceitos para a decoração da casa e brincar com os filhos montessorianamente toda noite e acompanhar participativos suas videoaulas sobre os pronomes pessoais oblíquos e organizar a festinha de níver dos pets. E o mundo cobra as leituras: como assim, você não frequenta Saramago? Kafka? Tolstói? Galeano? Hemingway? Neruda? Poe? Capote? Nietzsche? Só lê Paulo Coelho? Lastimável. Nunca leu Paulo Coelho?? Imperdoável. Por onde você andava desde 1537?

O mundo chateia com aparelhagens e aplicativos, smartphones e atualizações: é crucial necessitar, embora não possamos nos viciar em apelos consumistas, embora os comerciais nos cantem sereiamente duas toneladas de promoções imperdíveis, embora saibamos que a luz azul dos celulares e notes não nos deixam dormir, embora dormir para quê? se tem gente que está trabalhando muito, muito, muito? (trabalhando inclusive para adquirir aparelhagens, aplicativos, smartphones etc.). O mundo aguarda vigilantemente que nos tornemos maaaaagros enquanto comemos pelo menos duas castanhas, uma maçã, banana, abacate, ovo, atum, espinafre, chocolate, chia, lichia, quinoa, pitaia, atemoia, tudo regado a café e vinho tinto para acompanhar as receitas da Ana Maria Braga, todos os dias. O mundo recomenda que sejamos bastante incisivos, porém não, nunca se sabe quem está espiando as redes, e que participemos de todas as manifestações, porém de jeito nenhum, não é o momento. O mundo nos olha horrorizados se não temos mestrado ao menos (não tenho), se ao menos não o queremos (não quero), se não sonhamos uma vida acadêmica (não sonho), para em seguida emendar o olhar horrorizado com "é isso, minha filha, aquilo lá não é mole não". O mundo nos prefere tão casados, noivos e pegadores quanto solteiríssimos, alheios e independentes, e nos estimula a assumir a homossexualidade para sermos felizes, desde que não sejamos felizes em público e continuemos hétero. 

O mundo é um doido, um monstro de mil vozes, um Cérbero de milhões de cabeças, um Inspetor Bugiganga de opiniões, uma entidade que nos agride no atacado e afaga no varejo, uma força que nos pariu emocionalmente e não admite a paternidade, um Esquadrão Suicida que invade a gente para resolver os problemas criados por ele mesmo. Seja quem for ou no que se manifeste, entretanto, o mundo não se satisfaz – nunca. Vai daí que, se pretendemos alguma sanidade, é totalmente insalubre abstratizar como Grande Oráculo um planeta que não consegue concordar sequer em ser redondo. Significa que não há caminho? Ao contrário, ou quase: significa que há caminhos, que cada um de nós é um pocket mundo com suas próprias necessidades e atmosferas (em torno de mim, por exemplo, não orbitam filhos nem WhatsApps), mas que integramos redondinhamente o mesmo sistema e giramos ao redor de determinadas estrelas comunitárias – os fatos, as ciências, os direitos, as justiças, os antipreconceitos. Afora essas estrelas comunitárias que não deixarão de nos sustentar e unir (embora alguns planetas desarvorados as neguem), não tenhamos a ilusão de uma órbita comum; a estrada que me serve lindamente faria um astro a meu lado explodir de desespero, e a dele talvez me fizesse desejar meteoros. Fundamental é não colidirmos, é dançarmos em harmonia coletiva nossas concretudes individuais, combinando que as únicas rotas proibidas são as ameaças a todos ou a alguém. 

O mundo não se satisfaz? que pena, se for um coleguinha de galáxia incomodado com o formato de nosso percurso; força aí, guerreiro. Já nos cabem suficientemente as pressões, tempestades, mudanças, eras, evoluções, gelos, degelos e gravidades de nossa própria translação.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

36 formas de vida inteligente

Árvore cérebro Foto stock gratuita - Public Domain Pictures

Pesquisadores da universidade inglesa de Nottingham descobriram que pode haver 36 formas de vida inteligente fora da Terra (o que já deixa a ETzada em larga vantagem com relação à própria Terra, aliás), e ainda na Via Láctea. Infelizmente, na melhor das hipóteses, os vizinhos extraplanetários mais próximos com que se poderia trocar uma ideia cósmica estariam a pelo menos 17 mil anos-luz do nosso quintal – tipo da coisa que enfraquece a amizade. É chato, seria interessantíssimo fazer uns desabafos e pedir um conselhozinho ou outro em termos de evolução, mas paciência; continua sobrando a aventura de prospectar espécimes aproveitáveis por aqui mesmo, e já é um suadouro. De minha parte, sairia dando piruetas de euforia se, depois de alguma labuta, conseguisse reunir num grande bate-papo da ONU – num Hall da Justiça universal – 36 formas de vida inteligente e terráquea, prata da casa:

Uma vida que legitimamente torcesse pelos seus pares. Uma vida que tivesse, sobre povos aos quais não pertence, conhecimentos ímpares. Uma vida que se sentisse impelida a buscar conhecimento sobre povos aos quais não pertence. Uma vida que se sentisse impelida a buscar conhecimento sobre o povo ao qual pertence. Uma vida que soubesse não ter a menor obrigação de escolher entre ser bruxo, mutante, vingador, fada, Cavaleiro do Zodíaco ou jedi. Uma vida que compreendesse ser absolutamente impossível cultivar preconceitos gostando de X-Men ou Star Wars. Uma vida proletária que se reconhecesse proletária na plena consequência do termo. Uma vida proletária que defendesse com fúria a taxação das grandes fortunas. Uma vida proletária que defendesse sem medo a inexistência das grandes fortunas. Uma vida que deixasse o computador chocado com sua criatividade humana no xadrez. Uma vida que lesse poemas para o filho desde os primeiros dias de gravidez. Uma vida que, por meríssima cisma e paixão, aprendesse sozinha catalão, mandarim, búlgaro, bengali ou polonês. Uma vida que, perita em amor profundo, adotasse sete vidas de uma vez. Uma vida calcada inteira em verdades. Uma vida incapaz de incensar mentiras. Uma vida enraivecida com o império das bolsas de valores. Uma vida sem necessidade de celulares. Uma vida com mão infalível para temperos.

Uma vida que holofoteasse o próprio medo para não ser assombrada (ou sombreada) por ele. Uma vida que soubesse viajar sozinha em todos os seus desdobramentos. Uma vida que descobrisse curas indiscutíveis para horrores biológicos. Uma vida que tocasse (afinadamente) violino na janela. Uma vida que ensinasse vidas a tocar violino na janela – ou contar, ou escrever, ou pintar, ou andar de bicicleta, ou fazer biscoitos. Uma vida que passeasse com crianças em museus. Uma vida que levasse crianças a bibliotecas, cinemas, teatros, especialmente crianças que nunca viram ou veriam bibliotecas, cinemas, teatros. Uma vida que soubesse os nomes das constelações. Uma vida que fosse hipnótica em contar histórias. Uma vida que espalhasse abraços e árvores. Uma vida que usasse perfeitamente os equipamentos de segurança. Uma vida que se entregasse à literatura. Uma vida que desse esperança mundial em medicina. Uma vida que abominasse terrorismos, inclusive de "depois te falo" ou "precisamos conversar". Uma vida antirracista. Uma vida antifascista. Uma vida feminista. Uma vida pronta a doar voz, tempo, glicose, sal, sangue, alma, braços, neurônios para que todas as vidas importem.

Por sorte, várias destas existências evoluídas eu já conheço sem telescópio nem tanta pesquisa, e estão condensadas nos mesmos corpos feitos de amor e força. Que contagiem o resto do planeta com esses tão melhores vírus; que se empoderem e se alastrem. É com o amor e a força do lado de cá da atmosfera que precisamos de contatos imediatíssimos em todos os graus.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Brincadeiras de papel

Foto profissional gratuita de brinquedo, brinquedo de crianças ...

Sempre adorei os livrinhos fabulosos em que Pedro Bloch relatava ditos e causos de seus pequenos pacientes, enxergados por ele com uma ternura e reverência que, mesmo hoje, poucos adultos sabem ter. Entre os dizeres fantásticos, irresistíveis da meninada de Bloch, destaco aqui uma definição com que me identifiquei particularmente e em que vi estampadas milhões de horas de minha infância: "Brinquedo que não deixa a gente pensar que ele pode ser outra coisa não é brinquedo. Por isso é que eu gosto mais de vassoura, que pode ser cavalo, pode ser espada de mocinho e ser, até, cabo de vassoura mesmo".

Não sei quem foi o guri ou guria que meteu essa pílula de sabedoria, mas espero que atualmente – já na idade adulta, e quem sabe se já pai ou mãe de sua própria gurizada – mantenha esse pensamento refrescante das almas inquietas. Eu não poderia concordar mais vivamente: em criança, apesar de nunca terem me faltado brinquedos tradicionais, era perita em escorregar por dentro das horas criando mil enredos protagonizados pelas folhas do jardim, por fiapos de linha que escapuliam da costura da vó, por pregadores de roupa, por gotas d'água (sim, eu brincava com gotas d'água; vê-se que nunca se tratou de uma criatura muito no eixo). Os elementos da vez se conheciam, apaixonavam, casavam, tinham filhos, toda uma saga familiar, toda uma novela do Manoel Carlos sem gente e sem Leblon. E os brinquedos nascidos brinquedos? eu também não enjeitava; mas a dinâmica era parecida, rarissimamente eu era "mãe" de alguém, apenas interventora e demiurga. O essencial: não importava se havia bonequinhos fabricados como bebês ou cachorrinhos articulados, tudo era o que eu via e não o que me disseram. De que me serviam bebês e cachorros? Nah, eu queria gente adulta para as narrativas e gente adulta era o que eles se tornavam. Pronto. Inútil mesmo acabava sendo a brinquedalhada que alguns davam por estar na moda – boneca que patinava, nadava, soprava bolha de sabão, o cacete a quatro –, mas que era imbrincável na prática: a coisa já vinha pronta, independente, livre da nossa vontade, grande demais para interagir em igualdade com os personagenzinhos miúdos, perigosa demais por causa das pilhas e baterias que davam treta, sensível demais à quebra, HORROR. Na minha meia dúzia de cinco ou oito anos, fazia tsc-tsc pensando que adulto não entendia porcaria nenhuma de criar brinquedo, já que uns saíam da máquina tão totalmente criados que, para a gente, nada sobrava. Eu que me perdia no tempo desenhando e recortando bonecos de papel, maleáveis e obedientes, podia lá querer coisa com um ser que ficava eternamente em posição de natação e nem se prestava a portar um vestidinho de noiva feito em papel higiênico? Amadores.

Cresci bem coerente, bem a mesma: amando letras e odiando números, esses duros e tesos duma figa dos quais não se consegue mudar a forma e a roupa. Matemáticas, para mim, foram sempre fábricas de brinquedos imbrincáveis, eternamente em posição presa e inaceitável em seu sim-sim-não-não. Deviam ter seus encantos para os que curtiam bonecas autobrincantes, mas eu, a mais insuspeita das rebeldes sob uma capa quietinha, nasci com zero interesse nos resultados fixos, não queria saber de ir catar beleza em número que se diverte sem nossa ajuda, feito brinquedo que não precisa de criança. Gostava de linguagem, que tanto pode ser como não ser, que só tem umas formulinhas básicas aprendidas quase no útero e o resto a gente inventa. Texto é massinha d'alma, conta é jogo eletrônico (odeio jogo eletrônico). Texto eu logo vi que podia trocar de feição, vestir e desvestir de rima, trazer enredo de lugar nenhum, mudar classe de palavra, pirar na interpretação – com limites, eu sei, eu sei –, manipular com malandragem e doçura num game sem paredes, sem cenários termináveis, sem últimas fases. Uma vez absorvida a meia dúzia de cinco ou oito regras, vambora: todo mundo livre para se esbaldar no parque, longe de margens, vigias e cicerones depois que é dada a largada. Livre, inclusive, para só se esconde-esconder se for o caso, só deitar na grama lendo a brincadeira alheia se der na telha, sem nem a obrigação de entender aquela por já estar imaginando outra – e, ainda assim, pleníssimo. Literatura é tão genial que, ao contrário do raio da boneca aquática, funciona até só no modo voyeur e consegue nos puxar de coração para todos os oceanos de outrem, sem que nessa alegre safadeza percamos ou diminuamos os nossos. Crescemo-nos, aliás, e quase todos transbordam.

Quem quiser que me acuse doida ou preguiçosa pelo que sempre terei de arredio às objetividades do planeta. Não ligo; já sou prática o suficiente por fora para ainda ter overdose interna de realidades. Sinceramente, não sei como seria cabível e respirável viver no mundo sem deixarem a gente pensar que ele pode ser outra coisa.

terça-feira, 16 de junho de 2020

O necessário incômodo

Ser Único Mudança Diferentes - Imagens grátis no Pixabay

Não aguento aquele papo coach-empresarial de "sair da zona de conforto". Ora, a tal zona não tem esse nome à toa, e em geral tudo que se busca na vida é estar de alguma forma confortável, a não ser que se alimentem tendências BDSM confessas ou inconfessas. Normalmente se quer trabalhar (já que trabalhar é financeiramente necessário) no campo em que se fica mais à vontade, com o máximo de desenvoltura e segurança; quer-se um relacionamento amoroso equilibrado, decente, sem enfartes cotidianos, sem brigas e esfalfamentos; quer-se uma moradia sólida, tão longe quanto possível de áreas de risco, limpa, quitada, mobiliada, almofadada, que nos abrace antes e depois do expediente. É perfeitamente humano – aliás: animal – desejar o conforto, aconchegar-se nele na primeira oportunidade e produzir todos os recursos cabíveis para que a ele cheguemos, como um auge de evolução. Papinho de "sair da zona de conforto" is the new Revolução Industrial: na impossibilidade de enfiar os funcionários no trabalho 14 ou 16 horas por dia, hipnotizam-se os cidadãos com a lobotomia coach até que se sintam culpados o suficiente para trabalhar 16 ou 18 horas por dia – no escritório, no uber, na rua, na chuva, na fazenda e, durante as férias, numa casinha de sapê. Labute enquanto "eles" dormem, corra atrás enquanto "eles" descansam, assuma funções que "eles" não vão querer assumir, ladainham esses profetas da escravidão voluntária. Funcionários confortáveis, afinal (sem medo de desligar o celular no finde, sem pavor de perder o salário, sem desespero bastante para cumprir sua missão e a de outros dois ou três colegas demitidos), não são lááá muito lucrativos para chefes indispostos a sair de sua zoninha de conforto na Côte d'Azur. 

Mas.

Em compensação, refestelar-se em berço esplêndido até começar a dar ramos e folhas não é a melhor política em todas as situações, concordo. Precisamos do desconforto; porém não daquele que mora em conversinha de empresário, não daquele que fisicamente nos esgota e mentalmente nos adoece até o burnout (esse, por sinal, nos torna inúteis em pouquíssimos anos, e aptos a ser trocados por peças novinhas que vistam a camisa – de força – da empresa). Para nos arejar e renovar de fato, precisamos do desconforto vindo de propostas que nós mesmos fazemos e aceitamos, surpresinhas cerebrais que apimentem nossa autorrelação. Tipo? Tipo arte. Assistir a filmes que nunca pensaríamos, bem fora do circuitão: outras linguagens, outros enquadramentos, outras narrativas, outras línguas, outros cenários, outras (des)construções, outros personagens, outras trilhas. Ler livros absolutamente impensáveis há dois dias ou dez minutos; literatura árabe, sérvia, egípcia, ucraniana; poesia, se somos prosaicos eternos; romances, se só frequentamos autoajuda; filosofia, se não saímos da ficção científica. Adentrar museus ou galerias de pintura cujas fachadas nem olhamos jamais: muita, muita coisa a não ser sequer entendida, mas sentida apenas, ao menos como um desvio fascinante, uma nova possibilidade humana. Dar chance a outras bandas no YouTube. Parar por uma hora num canal de documentários. Topar uma ópera ou um balé depois de uma vida inteira dedicada aos stand-ups.

Nem precisa ser arte; taaaantas alternativas, por nos incomodarem, nos oxigenam! E juro não falar por falar, hipocritamente – já que sou uma odiante de carnaval que se meteu em pipoca de trio elétrico, uma inimiga de futebol que foi várias vezes ao estádio, uma sedentária que enfrentou arborismo, uma calada que cantou em karaokê, uma fã de permanecer limpinha que se enfiou até a cintura em lama de manguezal. Não é que goste de sofrer (eu gosto ZERO, inclusive), apenas não considero experiências saudáveis e não forçadas como sofrimento; acredito até cientificamente que nosso cérebro ama engatar sinapses onde antes era mato, cresce com o inusitado que não o agride, floresce potências fresquinhas após desafios recebidos de presente. Quanto mais esticamos os neurônios, mais eles se moldam elásticos, leves e malhadores, subitamente abertos e ventilados mesmo para o que é visto todos os dias – e que passa a ser visto todos os dias pelo ângulo de novas câmeras. Pressões externas são destrutivas, mas o cultivo escolhido de impressões internas é hobby dos mais premiantes em nosso cercadinho de ações. 

Sair da zona de conforto, sendo bom, é assim: há de ser tão mais justo quanto mais nos alertar para a zona de desconforto alheia, quanto mais nos acender o lume para o entorno social, quanto mais nos instruir sobre as forças que nos querem obedientes, quanto mais nos fizer instruir os demais a respeito do quão superiores somos à gaiolinha. Se nos aprimorar como pensantes e criativos, como amigos e empáticos, como férteis e resilientes, como solidários e humildes bem-vindos sejam o incômodo e sua pena. Tudo vale a pena se diminui o que nos apequena.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

O time dos nublados

Página 2 | libre de regalías melancólico fotos descarga gratuita ...

Falei de Fernando e evoquei outro F português, minha querida, muito muito querida Florbela Espanca – aquela que desde o nome até a pontinha dos dedos era a poesia encarnada, intensa, ardente, uma labareda viva com o coração em ferida perpétua. Como eu gostaria de ter apertado esse coração contra o peito!, dizer-lhe que entendo: mesmo o que nunca me ocorreu, mesmo o que nunca vivi ou supus, juro que entendo. Ainda que virtual e distantemente no tempo e no espaço, gosto com toda a ternura dessas almas rasgadas, íntegras em seus quereres mas exiladas por algum motivo; os inteiramente consolados (a não ser que sejam anjos consoladores, o que os torna vulneráveis anyway) me interessam pouco ou nada. Confesso ter um fraco pelos quebradiços, os que sentem mais do que são sentidos e amam mais do que são amados. Simpatizo zero com os moles de preguiça, recalcados e reclamões, porém adoro os que não cabem, os que não são acolhidos, os rejeitados, os tristes; provavelmente em consonância com o fenômeno que a própria Florbela aponta em suas cartas: "A única coisa que consola os tristes é a tristeza – a alegria irrita-os". 

Não sei se "minh'alma é triste" como a de Florbela e a do meu Casimiro, mas melancólica sempre foi; um bichinho do mato que ama abraçar, apertar, acarinhar, que acaricia e se derrama, e no entanto não foge por longos intervalos à sua solidão necessária, à sua natureza esquiva, ao seu silêncio fundamental. Sou prática demais para ser nostálgica (não, não, nada de saudades da "aurora da vida"; estás pensando que esqueci os traumas de Matemática? nem a pau, Juvenal!), não tenho a espécie de introspecção que romantiza o passado; tenho, sim, aquela que gosta de vagar independente por estar constantemente distraída e mergulhar em suas próprias threads de pensamento, que qualquer assédio externo interrompe. Não é de estranhar, pois, que na maior parte do tempo me seja IN-SU-POR-TÁ-VEL tudo quanto é barulhento, estridente, over – tudo quanto vive em neon, brilhante demais, afetado demais, excessivo, saltitante e, em consequência, mais identificado com as convenções da alegria. A alegria estereotipada não deixa ninguém em paz. É ela, é esse estereótipo exasperante aquilo que apenas irrita e em nada consola; ao menos não consola os que perdem a própria meada nessa confusão de estímulos.

Se lhes convém e agrada, então, podem me chamar triste e chata: odeio comédia, com pouquíssimas exceções; detesto atuações histriônicas, inclusive de palhaços (embora ame perdidamente o último Coringa, o que não deve surpreender ninguém que tenha lido o primeiro parágrafo: almas exiladas, desacolhidas, lembra?); não paro para ouvir música; não consigo reunir um mínimo de paciência que seja para assistir a programas felizes de competições em família, homenagens chorosas a parentes e artistas, arquivos confidenciais; aborrece-me a vibração escandalosa dos esportes; ABOMINO as euforias compulsórias do carnaval com todas as vísceras. Sou triste? Talvez para os amadores em gente. Adoro festas de dançar, adoro dançar em festas, gargalho de dez em dez minutos com memes de Facebook, compartilho memes de Facebook de dez em dez minutos, rio de perder o ar com muitas produções, uso roupas de tooooodas as cores, sou assumidamente doida por cores, sou lendariamente maluca por coisas e criaturas fofas, choro com os shows de fogos na Disney (aliás, chego com os parques abrindo e só saio – ou sou saída – com eles fechando). Não é, portanto, que um coração melancólico seja emo, gótico ou azedo só porque não é fluorescente ou tropical. O coraçãozinho em questão pode ser somente mais lento quanto maior for o número de decibéis; pode ser muito primavera e pouco verão; pode curtir visões ensolaradas sem desejar mergulhar nelas; pode se comover até as lágrimas com a notícia de uma declaração de amor, mesmo sem suportar presenciá-la por mais de 30 segundos; pode apenas ter um sistema operacional com autonomia de duas horas em grandes grupos e necessitar da solidão para recarga. Pode simplesmente haver nascido com outro manual de ficar em paz.

Que os alegres convictos perdoem aqui o nosso time de pessoas nubladas mas fofinhas; somos ótimos, prometo. Nossa única reivindicação é que nos garantam o direito de não amanhecer tão de repente nem de viver tão em voz alta.

domingo, 14 de junho de 2020

Fado

Imagem gratuita: pessoas, retrato, menina, rosa, fumaça, rosto ...

Ontem foram os 132 anos de uma fabulosidade, de um milagre chamado Fernando Pessoa. Nunca se saberá como num corpo tão aparentemente franzino couberam tantas alternativas, biografias e vozes; por que haverá almas que se desconectam e se alheiam, enquanto outras são essas piscinas olímpicas metidas num dedal? Não se compreende como pôde haver Fernando, o que o tornou esse funil de personalidades, esse radar de subjetividades, esse captador de indivíduos, esse alguém impossivelmente feito de alguéns e que – não bastasse ser a máquina de downloadear pessoas – ainda mais impossivelmente era gênio por todas as faces. Fernando era um Roletrando ambulante em que qualquer giro apontava para uma joia da coroa. 

É ingratíssimo colher três ou quatro versos no meio de suas imensidões, mas seja; hoje me agarro a uma estrofe do poema (convenientemente apelidado) "O amor": "Mas quem sente muito, cala;/ Quem quer dizer quanto sente/ Fica sem alma nem fala,/ Fica só, inteiramente!". Chega a ser uma delícia absurda que um ente composto de quarenta e oito mil almas tenha falado em ficar sem nenhuma, e mencionado solidão; porém, no universo do fingidor pessoano, faz TOTAL sentido. Tanto "O amor" quanto a famosa "Autopsicografia" são filhos de qual lógica? A de que o sentir raiz, autêntico, absoluto, colhido com balde na fonte, é na verdade incompatível com as palavras e nelas incolocável – a não ser que passe por um qualquer processo de reconstrução. Para o bem e para o mal, verbalizar necessariamente nos reelabora, necessariamente nos obriga ao polimento da pedra bruta, a qual não conseguiremos jamais, jamais! apresentar em sua forma original. É de fato, portanto, uma solidão eterna, já que se torna impossível nos desnudarmos fielmente com a palavra ou sem ela. Sem ela, o sentir não é visível, não está materializado; com ela, muito do sentir se esvazia no esforço da razão para compor o texto. Daí que não hão de sentir nunca as dores que temos, mas só as que a gente não tem. 

Qual a solução? A beleza é que não há. Se nossa condição solitária é fado (para combinar com o clima lusitano), cabe a nós nos divertir com a missão maluca de equilibrar o que somos e o que dizemos, seguir com a tarefa insana de nos fazermos entender sem fugir muito à origem, sem nos exagerar ou nos baratear. Falharemos miseravelmente centenas de vezes, permaneceremos insatisfeitos com a capacidade do outro de apreender bem um determinado ponto nosso e ser cego e surdo para tantos outros fundamentais, daremos mil suspiros de "mundo cruel" – porém também continuaremos desenvolvendo meios e modos de trabalhar a palavra, manufaturá-la, artesaná-la, vigiá-la contra os mais recorrentes mal-entendidos, ensiná-la a ser molinha e maleável, flexível e múltipla. No afã de nos tornarmos compreensíveis e amados, melhoramos; retocamos o vocabulário em atenção ao mundo, descobrimos brechas de sutileza nas entonações, aprendemos a conter em sílabas um transbordamento que, se fosse liberto em sua potência, sairia varrendo vidas como um Vesúvio. Que felicidade termos de usar a palavra como intermediária! É filtro que realmente nos represa, mas na mesma medida nos apura; embora eternamente sozinhos com nossos oceanos emocionais que não passam no filtro verbal, ganhamos a chance de conviver mais tempo com o que guardamos de único, e de ir treinando o emprego da voz e da escrita como conta-gotas – o que nos salva de devastar, com nossos rompantes de verdade e desejo, tudo que pretendemos conquistar.

Sendo pessoais e intransferíveis, estamos condenados a fingir, na condição ou não de poetas. Resta a nosso pequeno coração primata virar o vizinho mais próximo do que deveras sente.

sábado, 13 de junho de 2020

Inimigos cordiais

Banco de imagens : árvore, floresta, ramo, folha, verde, selva ...

Não é difícil imaginar por que os shoppings se abarrotaram: brasileiros, clássica e historicamente, não são bons em ver pessoas. No olhar de cada indivíduo flagrado nas fotos de ontem ou anteontem (podem reparar), flutua o pensamento mágico de que "é rapidinho", "não tem problema, vou ficar bem afastado de todo mundo". Tem problema, já que todo mundo pensa que não tem problema e é inviável, portanto, que todo mundo fique bem afastado de todo mundo. Por alguns ou vários motivos muito misteriosos, muito arraigados, fazemos parte de uma cultura que traz para a idade adulta o "peekaboo!" brincado com os bebês; no delírio coletivo, se não olhamos para os demais, não os vemos – e, se não os vemos, não existem. Com a máscara no rosto, também nem existimos ali, pronto. Joga-se o jogo do contente bizarro de decidir que, se estamos numa pandemia, automaticamente não vai haver NINGUÉM no shopping além de nós, logo pode aparecer a torcida do Corinthians em peso dentro da mesma sapataria que tudo bem, tudo certo, nada se passa, lalalalalá. A fadinha alucinógena que mora em nosso coração brasileiro jura que nossa urgência era muito maior do que todas as outras urgências, e aquela chegadinha à 25 de Março praticamente nem foi saída.

É lastimável, é caótico, é preocupante, mas não posso realmente considerar que seja espantoso; fomos educados décadas e décadas, séculos e séculos para ignorar o entorno e seguir em frente, em frente. Desde o início nos desuniram, estimularam inimizades entre tribos, separaram povos de mesma língua sequestrados da África, colonizaram a terra com europeus que vinham para a rapina e o vale-tudo – não para um lar a ser amado e definitivo –, incentivaram delações premiadas, promoveram inquisições, varreram revoluções para os P.S.s dos livros de História, institucionalizaram jeitinhos e negociatas, abafaram vozes dissonantes, esconderam corpos de vozes dissonantes, plantaram na marra a ideia porcamente compreendida da "cordialidade brasileira", cultivaram ditaduras e milícias e coronéis e grileiros entre os quais é preciso não-ver-não-ouvir-não-falar, habituaram os centros urbanos à existência de pedintes que também nos habituamos a não perceber para podermos seguir em frente, em frente. De todas as formas, com todas as estratégias mais sórdidas, com todos os desdobramentos mais funestos, fomos recorrentemente antolhados: nada de se organizar com seus iguais, nada de entender seus diferentes, nada de brigar, nada de questionar, nada de lutar por todos, nada de discutir política, nada de ser agitador, cuide de si, de si somente. Se vire. Sobreviva. Pois eis-nos aqui: aprendemos direitinho. Assombroso seria que, depois de tanta martelada, nos iluminássemos não mais que de repente e percebêssemos que só podemos sobreviver em conjunto.

Ninguém precisa vir de "aaah, mas nem todo brasileiro...". ÓBVIO. Nem todo brasileiro. De maneira geral, porém, somos frutos involuntários dessa história de violência, submissão ao poder e estímulo à indiferença, e até a malandragem que desenvolvemos por defesa nos tornou escorregadios para o bem e para o mal. "Puxa, mas o brasileiro é tão generoso." Sim, é generoso – lembro-me de ter comentado sobre isso outras vezes no blog –; somos generosos, sim, mas especialmente na caridade de última hora, nas emergências, que costumam ser nosso desafogo para conseguirmos mostrar como somos legais sem termos de nos estruturar em longo prazo. Enxergamos quase que só quando não há alternativa, reagimos e ajudamos à flor da pele; alimentamos, vestimos, calçamos, damos internet e notebook para alguns casos focados na mídia, temos corações ótimos sem dúvida – e ainda assim resistimos, muito forte e coletivamente, a ser coletivos de fato. Incontáveis de nós ainda se defendem da política como de um capiroto, recusando-se a tentar limpar, pela participação consciente, aquilo que consideram distante, alheio e sujo. Inúmeros entre nós põem a mãozinha no coração para cantar o hino, veneram cores numa bandeira e não gritam para proteger o maior dos maiores símbolos de um país, que é seu povo (principalmente os descendentes mais diretos dos povos originais). Muitos, muitos, muitos (excessivos), seja por falta de educação formal ou familiar, de recursos ou de orientação, de tempo ou de condições – ou simplesmente por egoísmo de elite –, não germinaram empatia bastante para se responsabilizar pelo outro desde a base e as minúcias, desde o papel guardado na bolsa que não vai para o chão, desde o voto dado pensada e pesquisadamente, desde a máscara colocada do jeito certo, desde a saída evitada se possível. Uma quantidade exagerada dentre nós continua habitando não apenas uma terra de ninguém, mas uma terra de ninguém mais. 

São já cinco séculos (e um quinto) de tanto sono eterno em berço esplêndido, de tantos grilhões que nos forjaram, que virou especialidade da casa nosso peito desafiar a própria morte.