segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Surpreendentemente


Sim, é surpreendente insistir vida. Também o acha a poeta portuguesa Dalila Teles Veras, ao observar com ternura que as faxineiras do edifício 

"surpreendentemente 
(não obstante os dez mil, quatrocentos e trinta e um degraus,
os oito mil, trezentos e vinte metros quadrados de piso, as 
quatrocentas e quinze vidraças e as três toneladas de lixo à 
espera de varrição, transporte e limpeza)
cantam..."

Surpreendentemente, a pulsão de existir não cede; não se desgarra. Surpreendentemente, moradores de comunidades e periferias seguem espocando danças, risos, ritmos, literaturas, grafites e tudo mais que pode nascer colorido na invenção humana, apesar de milícias, tiroteios, insaneamentos, escrachos policiais aguardando na esquina. Crianças seguem mochilando para as escolas, usando régua para traçar as lacunas a serem preenchidas, cheirando os cadernos novos, desenhando corações e bonequinhos nas margens. Mamães/papais primeiro-viajantes continuam embrenhados em felicidades e fraldas. Senhores, senhoras, senhorinhas continuam pegando dicas de internet com os netos. Nutrindo os netos. Maternando os netos.

Surpreendentemente, tomadores de cafés e trens da madrugada abrem a porta das lojas conversando alto e forte. Taxistas enfrentadores de trâââânsito não deixam de transbordar assunto. Motoristas galhofam cordialmente de ônibus para ônibus, embora imersos em calores de Vesúvio. Professores dão nó, pintam, envernizam e fazem escultura em pingo d'água para educar filhos alheios enquanto são achatados pelo governo e pela mídia. Garçons mestre-salam entre sorrisos e bandejas. Garis sambam e rodopiam com as vassouras. Guris soltam pipa na laje pela chance de colorir os dias. 

Surpreendentemente, manifestantes manifestam-se com a teima e a alegria de quem desconhece balas de borracha e gases de pimenta. Candidatos candidatam-se (ainda poucos, mas alguns) com a intenção sinceríssima de atenuar disparates de fortunas. Militantes militam na rua, no zap, no Face, no telefone do avô e da tia, sem pausa e sem paga, alimentados apenas pela crença amorosíssima em ver gente morando, comendo, comprando, trabalhando independentemente de ser subornada com cesta básica por agentes da mesmice. Surpreendentemente, esperanças esperam, lideranças lideram, resistências resistem, desejos desejam; o espírito humano é coisa de adamantium, ninguém breca. Ninguém quebra. Arranha-se, não se interrompe, tropeça adiante. Adiante. Adiante.

Continuará a haver obstáculo. Mas: não obstante.

domingo, 29 de novembro de 2020

Dez sinopses que não sei se há, mas poderia haver


Uma autora não tem nadinha definido – nada: enredo, título, personagens, cenários, nomes. Não tem nem pretende. Para os esqueletos dum novo romance, escolhe uma qualquer pessoa na rua, se aprochega, explica, explica, sorri a lábia dos escritores e enfim convence seu ou sua protagonista a se deixar acompanhar, observar, absorver, documentar. E não, a autora não terá com seu ou sua protagonista qualquer romance além do digitado; ambas(os) já moram nas respectivas histórias e se enlaçarão por motivos gerais de humanidade.

Num futuro loguinho-ali, anda bombando uma empresa que oferece serviços terceirizados de pai e mãe. Mesmo. Oficialmente.

Um sujeito manda fazer seus primeiros óculos e, para sua total petrificação, se redescobre violentamente apaixonado pelos olhos e sardas da esposa.

Outro sujeito se descobre violentamente apaixonado pela voz de uma dubladora e não vive mais, só assiste aos trabalhos dela. Amigos em exasperação decidem implorar à dubladora que grave uma mensagem "ordenando" ao sujeito que se cuide. A dubladora fica de crush caído por um dos amigos do sujeito e, plot-twistmente, investe nas altas chantagens. 

Alguém herda a caixinha de música de um desconhecido e precisa cavar explicações.

Alguém é "engolido" por uma biblioteca milenar que, para algumas pessoinhas selecionadas, vai criando corredores e mais corredores à medida que é percorrida.

A tecnologia da nuvem evolui a ponto de se atingir a capacidade de lá guardar coisinhas materiais. Até que o espaço nuvesco passa a ser cativeiro duma jovem sequestrada, e os agentes selecionados para o caso têm de aprender a investigar e se localizar num ambiente impegável, um pouco Matrix, um pouco Tron, com toques de Sala Precisa. 

Um experimento científico faz o rosto das pessoas ir assumindo várias cores, conforme suas emoções reais – o que transforma o mundo num furdunço de gente tentando fugir a essa espécie de polígrafo eterno.

Uma criança jura que a cortina de seu quarto vira bailarina quando ninguém (mais) está olhando. E vira.

Outra criança, quando ninguém está olhando, resolve cálculos complicadíssimos que acha na pasta de trabalho dos pais e que nenhum ser humano da firma entende.

The end?

sábado, 28 de novembro de 2020

Atração fatal


Só hoje! Apenas hoje! Aproveite! Vai perder? 85% em todo o site! Vem que tá acabando! Última chance! Últimas horas! 12h 35min 44seg... 43... 42... 41...

Toda Black Friday (+ adjacências) é isso: esse terror, esse desespero. Lojas que costumam depositar na caixa de entrada seu mailzinho diário – às vezes porque você deu um rolê inocentíssimo e totalmente platônico no site, sem chegar às vias de fatura com um produto sequer – acordam possuídas, frenéticas, viradas numa entidade enviadora de spam; a gente deleta, deleta, deleta e os bichos procriam como gremlins molhados, especialistas em consumição psicológica. Sabem muito bem, os desgraçados, explorar a culpa. A cada mensagem, mais exclamações de urgência (um dia virão com a musiquinha de plantão da Globo, EU SEI), mais descontos jogados na cara, mais promessas de amor eterno, mais cobranças, mais contagens regressivas, mais chantagens; é que não abro a imensa maioria dos e-mails, mas tenho certeza de que os últimos devem incluir áudios de cornitude bêbada e alguns sussurros de "seven days...". Um banquete de ansiedade servido frio em pleno tribunal.

Funciona? Funciona, claro, ou não nos cutucariam com tanta violência. A insanidade que habita o mercado saúda a insanidade que habita em nós, seres condicionados desde as fraldas a estender a mãozita para todos os estímulos: dááá! Tudo fomos treinados para cobiçar, pedir, apetecer – algo instigante no desenvolvimento infantil e funesto no desenvolvimento do consumidor; há tempos já não era para respondermos a luzinhas e barulhinhos que nossos tutores nos sacodem diante do nariz, porém lá vamos nós, atiçados, pavlovos, capturáveis, prontos a concordar com a existência de alguma fome a partir do cultivo de uma salivação. Não desejamos perder nada de que não precisamos, não nos puseram confortáveis para abrir mão de nada que nunca possuímos; todas as portas nos aparecem como obrigatórias, já que sua mera e muda presença ilustra o fato de que ALGUÉM passará por elas – e as gotas de Corridamalucol que diariamente pingavam em nossas mamadeiras nos fazem querer garantir que seremos nós.

A tal ponto fomos estocolmizados que chegamos a bendizer como vantagem o assédio sofrido: ueba, esperei até o último segundinho e – 8.427 e-mails-com-cupom depois – consegui aproveitar a melhor promoção! (sendo aproveitar, no caso, finalmente ceder ao inferno tsunâmico de mensagens e anúncios que pisca-piscam no meio de qualquer página consultada, além de gastar dinheiro imprevisto com algo que poderia alegremente continuar na categoria do sem). Celebramos o sequestro de nosso foco, atenção, energia, e pagamos radiantes o resgate; e pagamos o resgate apenas para assegurar nossa assinatura nesse camarote das trevas que é a lista preferencial das empresas. Pagamos pelo posto de cliente VIP apenas para sermos mais perseguidos e atormentados que os outros. Pagamos para nos ver stalkeados, espionados, atalaiados, abelhudados, lidos e invadidos até em pensamento; pagamos para ver necessidades produzidas e amplificadas, neoproblemas surgidos, desequilíbrios plantados na cabeça e no cartão.

Capitalismo – de capital Masoquistão.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Efeito Leidenfrost


Hoje se completam 305 aninhos de um alemão que eu até há pouquito não conhecia, mas que já considero pacas pela descrição de um fenômeno fofíssimo. O introvertido Johann Gottlob Leidenfrost percebeu e relatou que: quando uma gotinha é jogada sobre uma superfície quente, mas de um quente próximo a seu ponto de ebulição, ela faz aquele tssss!, ferve e some; isso mais ou menos sabemos (ou intuímos). Só que – vejam que legal –, se a temperatura da superfície for muuuuito maior que o ponto de ebulição do líquido, a gotita não vai evaporar feito doida; na verdade, ficará deslizando lindamente sobre uma caminha de vapor (NHOM!). Pelo que entendi, um bocadinho do líquido evapora e forma essa fina camada em que o restante da gota permanece "flutuando", como se em sua micronuvem particular. A ebulição não é rapidíssima porque o vapor não conduz o calor com eficiência bastante para o líquido que nele passeia. Não sei vocês, mas eu fiquei totalmente devastada de fofura ao imaginar um pinguito – de ares soberanos – dando uma volta com seu hoverboard num hot resort. 

Além da fofura, amei a filosofia e a metáfora da coisa (metáforas: trabalhamos com). Uma infinidade de vezes, vivemos também esse aparente paradoxo apontado pelo cientista, essa quase maluquice do Efeito Leidenfrost: quando o tormento ainda se encaixa em nosso universo com alguma razoabilidade, quando é forte porém compreensível, destrinchável, abordável com qualquer recurso – então conseguimos reagir assim que ele nos toca; então conseguimos receber e perceber o impacto como algo real, que nos diz respeito e nos cobra posição. Mas quando os fatos nos atropelam em temperatura irrazoável, doidos demais, febris demais, surreais demais, uma partezinha nossa parece desligar-se de nós em mecanismo de defesa, e sobre essa película de anestesia é que somos capazes de pairar ainda respirantes, até supostamente imperturbáveis. Não é que não sejamos perturbados, ao contrário: somos tão duramente afetados à primeira vista que a própria perplexidade vira almofada, torna-se a cortina (ou colchão) de fumaça que ameniza o espatifamento da psiquê – não impede a ferida, mas impede a plena consciência do abismo. 

É piração, eu sei, porém não pude evitar a comparação do Efeito Leidenfrost com a lógica protetora do TDI, o Transtorno Dissociativo de Identidade; aqui, em oposição à história da gotinha que ganha um "escudo de nuvem" contra o calor destruidor, não há fofura nenhuma, embora não se possa deixar de ver alguma beleza triste e terrível no ato de o cérebro inventar eus secundários e terciários a fim de algodoar a integridade do eu principal (sim, é o que chamavam outrorinha de "dupla personalidade" – termo pouquíssimo abrangente, mesmo porque a personalidade não precisa ser dupla: pode perfeitamente desdobrar-se em dezenas, com nomes, idades, gêneros, orientações sexuais, gostos, profissões, biografias incrivelmente diferentes). TDI genuíno é coisa rara; dá-se em casos muito, muito, muito específicos em que um trauma, porque doloroso em excesso, faz a vítima inconscientemente dilacerar-se por dentro. É sua tocante estratégia mental para metabolizar o imetabolizável, conviver com o inconvivível – uma angustiante poesia do luto. Acho fascinante (quem não?) e desolador, assim como horrivelmente desolador cada um de vários mecanismos outros a que a mente se vê obrigada pela ofensiva alheia: o coraçãozito aterrorizado de pisar fora do armário, a pele que não se abraça como negra para não ter de reconhecer sobre si os efeitos do racismo, os seios e úteros que não se engajam na luta feminina e reforçam o lado do agressor, os braços e pernas dotados de habilidades lindas e temerosos demais para desenvolvê-las, porque não é o que a família espera, o que meus pais vão pensar. Ainda que não levadas à dissociação clínica e extrema do TDI, milhares, milhões de gotas dos nossos arredores trafegam por aí escudando-se da realidade atrás de facetas suas, negando-se a pôr os pés no chão enquanto se blindam de suas películas. Fogem a certas dores imediatas, é vero; em algum momento inevitável, no entanto, esbarrarão com as mesmas ameaças e os mesmos calores, e por fim inexistirão – passando pela dor adicional de não se terem cumprido.

Cumprir-se envolve, também, saber que a chapa sempre estará quente.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Meu pote


Cá estamos: bodas de cerâmica (ou de vime), equivalentes a nove aninhos casamentícios. É formidavelmente linda e amorosa a simbologia envolvida nesse construir cerâmico, nesse construir algo a partir da terra; mais linda ainda quando se acolhem as palavras de Claude Lévi-Strauss: “Há milênios, sob todas as suas formas – barro esmaltado ou não, faiança, porcelana –, a cerâmica está presente em todos os lares, humildes ou aristocráticos. Tanto que os antigos egípcios diziam 'meu pote' para dizer 'meu bem', e nós mesmos, quando falamos em reparar danos de qualquer espécie, ainda dizemos 'pagar os vasos quebrados' [payer les pots cassés]".

Meu pote. Meu pote, sim, já que todo amor é um receptáculo; todo amor é ao mesmo tempo práxis e arte, presença sólida e beleza just because, infraestrutura e decoração (e tome coração). Todo amor é, tanto quanto a cerâmica, moldado pela maciez mas enrijado pelo fogo – fogo dos dias que sempre demandam, nem sempre se sabe exatamente o quê; demandar: verbo intransitivo. Todo amor é, como a cerâmica, um fruto misto do que buscamos de imprescindível e do que nos agrada criar, um mestiço de ideia e sonho, uma miscigenação entre o que é do chão e o que é do éter; poucas feituras artísticas são tão utilitárias, poucos instrumentos de rotina são tão estupendos; existe em ambos o apelo do cotidiano e o luxo das solenidades. Potes e amores, belos na superfície, precisam ser forçosamente hábeis na acolhida e na conservação, ou bem pouco lhes resta: o seu destino é ser e estar.

Em nove anos (afora os outros nove de namorice), nossa ceramorâmica já atravessou uma bem considerável estrada de solidez – sem perder a ternura absolutamente nunca. Eis o abre-te-sésamo: ternura. Continuamos os dois igualmente flexíveis, adaptáveis, estáveis na forma e ainda assim almofadados no conteúdo, em prontidão para o apoio e o afago, prestes no cuidado, desarmados na conversa, desativados para o modo apontamento de dedo, estranhos a fraturas e discussões. Mui importantemente, fomos talhados no mesmo torno, do mesmo material; educamos juntos a mesma visão de mundo qual se educássemos o filho que não temos (nem pretendemos); crescemos a crença nas mesmas políticas, nas mesmas justiças, nos mesmos conceitos, aprendendo constante e entrelaçadamente, em mútua admiração e respeito mútuo. A convivência é a natural, fácil e fluida confluência de dois fluxos de rumo idêntico: somamo-nos sempre, não disputamos intensidade e terreno jamais. Em nove anos (e mais nove), não há vasos quebrados a serem pagos, não há menos – há mais! – inteireza e doçura do que já houve um dia.

Os nove são a prova da alegria.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Desâncora


Não sei bem se é verdade, mas fiquei tocada e encuriosada ao ler palavras do poeta caribenho Derek Walcott, que decreta: "Se você já sabe o que vai escrever quando está escrevendo um poema, então o poema vai sair fraco". Não sei bem se é verdade crendo, porém, que seja; a poesia, afinal, é talvez a parte lúcida do humano adulto que mais temerariamente se debruça sobre seu vulcão deslúcido, que mais de perto flerta com o descontrole e o sonho sem chegar a se estatelar no abismo. Fica difícil conceber conto, romance, roteiro, discurso que não saibam bem direitinho como vão e para onde vão, ainda que haja repensamentos, redirecionamentos ao longo do processo; planos mudam, personagens nascem, ideias são espanadas e substituídas, mas há as linhas gerais servindo de norte e de superego, há um objetivo específico esperando na faixa com a bandeirinha na mão. No poema – se lírico – a essência é que exista mais passeio do que transporte, mais mochilagem do que projeto. É bagunça? de jeito nenhum; nem displicência, muito menos amadorismo. Tem que haver muita estrada de poetação para que o poeta possa confiar em seu moderado delírio. Tem que haver muito conhecimento e conforto no reino das palavras para que um colega de Drummond se atreva a penetrar esse formidável reino surda e cegamente.

Em verdade, sabemos, não ocorre delírio ou cegueira no trabalho de parto dos versos; como fingidor tarimbadíssimo, o poeta é e não é totalmente sincero nem no ardor nem no cálculo, nem no surto de inspiração nem no de contenção. O poeta só consegue bem-sucedidamente ser poeta porque, ao sê-lo, mente o tempo todo. O-TEM-PO-TO-DO. Mente tanto ao dizer-se ou dizer-nos que cada pequeno rumo do texto já estava previsto – quanto ao dizer-se ou dizer-nos que foi tudo fruto de uma possessão pelas musas, uma febre dos sentidos, um transe sideral. Mente como um Chapolin se garantir que "todos os seus movimentos são friamente calculados", mente como um líder de seita se jurar que não passa de revelação cósmica. Nada, nenhuma das opções é honesta; caso uma seja, é quase certo não sair poema que preste. Lembra aquela história de que "sexo é poesia"? pois então: imagine-se um ato de transbordamento e amor integralmente roteirizado, ou um que se constitua do mais completo atabalhoamento adolescente e zero técnica – e por aí se intua o que seria o correspondente poético com cem ou necas por cento de previsibilidade. Artes (quaisquer) são esfinges com patas e asas; em faltando umas ou outras, dificilmente alguma parte de nós as devora.

Poesia exige vontade direcionada e loucura atenta. Por mais que existam Índias em vista, buscadas e miradas, nada impede que um desvio de paixão e momento venha a dar no Brasil. Nada impede que versos preliminares se mostrem tão competentes de beleza que a rota mude, completamente mude, maravilhosamente mude, a ponto de não haver saudades do imaginário trajeto: todo lugar exubera riqueza para quem sabe averiguar. O poeta é não só fingidor nato, mas ajustador profissional, adaptador de berço, líquido de nascença para espreitar novas frestas e se interessar por improvisados caminhos, e se for o caso germiná-los, flori-los, semear no árido e inesperado – pastorear nuvens como Cecília, esculpir Pasárgada como Manuel, desdobrar-se como Adélia, passarinhar como Mario, respirar um arco-íris de ar em águas profundas como Hilda. Poeta é caravela de ideia desancorada; mapa: tem; bússola: confere; voo de borboleta mudando o vento: tem também, e por causa desse talvez qualquer ademais é cais, qualquer chegada é porto.

Navegar é (im)preciso.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

TEIMAMOS


Já que existe o PODEMOS, proponho a criação do TEIMAMOS: Turma que Elabora, Inventa, Maquina e Arquiteta um Mundo sem Opressão Social. Nós do (futuro) TEIMAMOS somos flor que se cheire, mas não somos osso que se roa; beiramos o insuportável ao insistir que sim, que nesta terra em se plantando dará tudo, por bem das gentes que tem. Se ainda não germinou o que devia, é caso de não ter escorrido chuva suficientemente ao encontro da floresta dormente – ao encontro do bioma inteiro de maravilhosidade humana que habita o território em promessa e latência. Entra aí a galera teimista: comprometida com a irrigação de cada bocado de talento, de cada vocação potencial, de cada aptidão esquadrinhada em cada milimetrinho de solo ora ignorado; onde houver sombra de capacidade possível, aí estará um teimista-mor lançando recursos com obstinação de colheita.

A especialidade do TEIMAMOS será peitar solenemente o improvável. Os partidários do fácil, do visível, do imediato não hão de nem passar na porta da sede, apavorados com a perspectiva de teimistas os cooptarem na base de uma ardente lucidez vestida de loucura. Diariamente o TEIMA (para os íntimos) se engajará em causas pré-perdidas contra empresas safadas e enormes, e embora não ganhe será o inferno dos CEOs até ganhar – amofinando de e-mails, zaps e telefonemas os escritórios, revezando acampamentos na frente dos prédios, fazendo projeções de denúncias noturnas nos circundantes edifícios, espalhando outdoors cobrantes, publicando nos jornais, distribuindo panfletos. Se não for pra ser mosca na sopa de magnata e político mamateiro, o TEIMA nem nasce; uma vez que nasça, é questão de honra e de plano registrado em cartório que a pressão sobre qualquer destruidor seja de 82 toneladas por minuto, que não haja um milissegundo de paz na vida de fascistas, racistas, machistas, foguistas, terraplanistas, negacionistas. Se TEIMAMOS, necessariamente requeremos. Pleiteamos. Exigimos. 

TEIMAMOS sobretudo em crer na força de permanência das estruturas descridas: a honestidade d'alma, primordial – não aquela de comício, oca, amorfa, e sim a profundamente arraigada no olhar para o mundo; a família como agente de acolhida e transformação – não aquela família fake e sórdida que os canalhas recitam, mas a que imensamente ama seja lá por quais laços de amor; a pátria como objeto de afeto legítimo – não a pátria de cores específicas, de palavras de ordem, de hinos decorados, de pedaços de pano, mas a pátria chão de todos, incluídas flora e fauna nesse grupo preciosíssimo; a pátria dos dela nativos e dos por ela adotados, a pátria pela qual se responsabiliza aguda e sinceramente a totalidade dos que a ela se ligam, a pátria extensiva até onde respirar gente, a pátria que por isso pode morar também em Mianmar, na Nicarágua, na Eslovênia, na Escócia, na Tunísia, na Micronésia, no Quênia, no Tadjiquistão. Dispensamos lero-lero e pieguice, abominamos nacionalismo escroto, fronteirice fanática, tudo que é excludente e tudo que é superficial: vamos com a prática, a terra, o húmus, o cultivo, o coletivo, o cooperativo, o inclusivo; vamos com os que produzem como solução e não como agravamento de rachaduras, vamos com os que não fazem rachadinhas, vamos com as bandeiras arco-íricas, vamos com os que não jogam nem garimpam ilegalmente as pedras, vamos com os que preferem imergir no mutirão e sobrepor tijolos. Vamos com os íntegros. Vamos com os ternos. (E não, ninguém está falando aqui de gravata ou paletó.)

Vai? pois vamos: juntos, tinhosos, cabeçudos. Teimistas do mundo, uni-vos em teimosíssimo distanciamento social! Tão loguinho saiam as doses maravilhosas da vacina, a gente combina um abraçaço de quilômetros para desenvolver com o devido amor a nossa maniFesta.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Mude apenas um


O padre da missa de ontem (virtual, gente! por enquanto, exclusivamente virtual!) dizia que muitos costumam chegar para ele e declarar: tenho não sei quantos defeitos, sou fofoqueiro, mentiroso, raivoso etc. E a recomendação do sacerdote tende a ser: no momento – ou no ano que está principiando –, entre seus defeitos, mude apenas um. Dedique-se a deixar de tecer fofoca, por exemplo; em conseguindo, adote como meta de ano-novo se livrar da mentiralha; deu certo? siga a lista e ataque os próprios ataques de ira; e assim por diante. Se prometer mudar tudo de uma vez, vai acabar desistindo e não mudando nada (observou o padre com irrefutável sabedoria); com este sistema de foco, no entanto, em dez anos você terá se aperfeiçoado em dez pontos, o que não é nada mau. Reforme cada pedacinho a seu tempo. 

Achei fenomenal o conselho – embora fronteirize perigosamente com o álibi para adiar transformações inadiáveis: agora não, agora não, estou no Ano do Combate à Vontade de Sentar a Mão na Cara, eu nem queimo suficiente glicose para me tornar honestíssimo simultaneamente. Parto aqui do princípio, porém, de que o adotante do método encare a coisa de boa-fé e admita que falhas de caráter no limiar do crime não podem esperar sequer um diazito, uma hora; nada que potencialmente devaste o mundo alheio é um problema para depois. Dentro do sistema sugerido pelo padre, cabe a prorrogação por mais de ano, só e especificamente, àquelas bombas que tiquetaqueiam com paciência de longo prazo, que permitem ou até pedem um lento desarme, fio a fio, parafuso a parafuso: a criatura insegura demais para expressar opinião; a criatura molenga demais para abandonar o sedentarismo; a criatura que é tomada de ciúme mas nunca o demonstra, consumindo-se no íntimo por outrem (se demonstra maniacamente, aí já é caso de emergência clínica); a criatura que não senta para estudar e incrementar a carreira; a criatura que pretende resgatar uma proximidade com os filhos. Esses e semelhantes seres podem investir num processo um pouco mais esparramado no tempo, espichadinho o bastante para que a cura se vá tornando costumeira, fixa, definitiva. Em várias várias várias situações, é preciso que o sangue esteja inteiro circundando e oxigenando a dificuldade; é preciso que o coração se jogue pleníssimo na treta, sem agendas irreais e sem muitas demandas de outra ordem. 

O efeito bomlateral do sistema é que não se atinge uma melhora única; por mais que se ande focado num só desafio escolhido, melhorar é verbo englobador por natureza, gregário, trazedor de outros verbos em equipe. Melhorar com relação à atividade física revigora a autoestima, revigorar a autoestima tonifica o discurso, tonificar o discurso ajuda com os amores e os filhos, evoluir com os amores e filhos clareia a estrada dos estudos, mergulhar nos estudos bomba mais a autoestima, o discurso, as percepções, as relações, as construções. Se alguém psiquiatriza suas inseguranças, fatalmente acabará pegando o jeito de abordar invejas e ciúmes, talvez até de arrancá-los na raiz; se resolve treinar o corpo para a maratona, é quase certo que deixe os neurônios mais turbinados e os afetos mais doces, mais serotoninos; se arrisca voltar para a faculdade, provavelmente há de criar laços fundamentais de trabalho e amizade, quem sabe descobrir mentores, quem sabe ter a epifania dum caminho com novíssimas metas. Toda evolução é um arrastão de evoluções; tudo em nós, da circulação ao cérebro, dos nervos aos brônquios, do saber ao amar, do esperar ao aspirar, do entender ao pretender, opera em rede.

Sermos várias fontes multiplica nossa sede.

domingo, 22 de novembro de 2020

Palavras que se recusam aos muros


Segundo os versos do português Alexandre O'Neill, "há palavras que nos beijam" – "palavras que se recusam/ aos muros do teu desgosto". Acho absolutamente lindo isso de algumas palavras apenas se recusarem a nosso desgosto, permanecerem imunes a quaisquer tentativas nossas de maus humores, feito menininhas que vão para o pátio brincar com os ganhos de Natal e querem zeromente saber de Dow Jones e Mourões. Outras palavras moças e adultas, irmãs dessas menininhas, já estão em casa e no trabalho metabolizando os desgostos; leem sobre a barbárie, sofrem com a barbárie, lutam contra a barbárie e – no intervalo entre dois sangues, duas lágrimas – suspiram olhando pela janela, recompõem seu fôlego de existir projetando-se nas irmãzitas que pulam corda. É essencial haver a alegria doida dessas garotinhas; sem um nicho sequer de carnaval ao longo de nossas trincheiras, sem uma escotilha sequer para arejar o peito e a linguagem, simplesmente mofamos de dor. São as palavras que brincam no quintal no matter what (tontas, invulneráveis, rebeldes) as responsáveis por ainda termos chance de verbalização após a edição diária do apocalipse. 

O adjetivo estimulante, por exemplo: me dá sempre uma coisa boa de cafeína fresca, uma celebração do possível, uma festa da oportunidade, uma abertura de porta para o cenário verdinho do "vamos?". Da mesma forma, algo colorido soa imediatamente chamante, vivo, acessível, avesso ao ar de sépia dos escritórios. Nos escritórios não costuma morar a pausa, esse termo de vidros escancarados e vento correndo, transparente, flutuante, beijado de mar; nem nos escritórios mora o maciíssimo e sussurrante sossego, ao contrário, fala-se muito e alto, cobra-se alto e forte. Falta o mínimo de doçura (amo!) aos tudos e ondes que exaltam o metódico e o produtivo.

Assim como a doçura, amo a ternura, essa fofurice vocabular de ares já adultos, esse fragmento de serenidade amorosa. A ternura é guriazinha menos saltitante, mais crescida, magrinha, de olhões meiguíssimos e expressão de quem alimenta, veste e põe para dormir os irmãos pequenos, como a Carlota do Werther. Nenhuma dúvida de que a ternura quer adotar os bichitos todos do universo e passear com eles no colo, mesmo que búfalos ou elefantes, enquanto entrelaça os cabelos de flor – outra dessas lindezas na forma e no conteúdo, tão feita de aconchego e alento quanto varanda, lírico, adorável, frescor, luz, águas, clepsidra, claraboia, arco-íris, mágica, música, inocência, mel, café, romântico, buganvília. Evidentemente há termos assim revigorantes às dúzias, aos trilhardares, porém não basta (ao menos a mim não basta) que o significado pulule força para que seja antídoto contra o desgosto; tanto é que entusiasmo, digamos, não me traz nada semelhante a seu nome – me parece antes um senhor sério e ligeiramente tuberculoso do que uma palavra-menina. Nem gratidão, empatia, unicórnio, saudade ou resiliência tampouco me emocionam, por mais que suas definições sejam um espetáculo: seus corpinhos de letras me aparecem como aqueles atores diariamente focados pela mídia, até o ponto do tédio e da indiferença. Sou estranha, já me declarei firma-reconhecidamente estranha, e enjoo fácil até de cor de esponja; preciso ver profusões diferentíssimas de fonemas no jardim.

Senão (para olhos e ouvidos) ficam muro e spleen.

sábado, 21 de novembro de 2020

Explica pra mim


Dois tweets fabulosos – e suponho que traduzidos, no traslado para o Face – de Heather Thompson Day, que reproduzo aqui apenas com leves adaptações e correções na grafia:

"Quando eu tinha 19 anos, meu chefe disse que eu devia ser operadora de tele-sexo e riu.
Eu falei: 'Não entendi'.
Ele disse: 'É uma piada'.
Eu disse: 'Explica pra mim'.
E assim eu aprendi que, quando assediadores têm que explicar por que suas piadas impróprias são engraçadas, eles param de rir."

"Meu pai me ensinou: 'Nunca sorria. Eles propositalmente assumirão que sua risada nervosa é submissão. Em vez disso, finja confusão e observe enquanto eles explicam o motivo da graça'. E eu tenho usado esse conselho desde então."

Heather & Father, aplaudo-os de pé e dando aquele assobio de dois dedos que nunca saberei imitar (acolham a intenção, queridos). Em poucos caracteres, atingiu-se o nervo: assediadores são seres eminentemente covardes, hienas que só estabelecem algum império sobre a ossada das autoestimas que vão pisando. Qualquer mínima reação da vítima que eles consideram carcaça e toda a valentia implode, já que não há plano B – não há outros recursos além de uma aguardada leniência cultural, não há nenhum guarda-chuva fora da confortável zoninha de normalidade fake em que se abrigam esses subpredadores.

Fique claríssimo, desde já, que: 1) reagindo a vítima ou não, a culpa não cabe a ela nunca, nunca, nunca; seu nervosismo perplexo NÃO é condescendência, e JAMAIS lhe pode cair na conta um débito que pertence única e exclusivamente a homens canalhas maiores de idade, vacinados, vermifugados (não o suficiente) e portadores de título de eleitor; 2) estamos falando aqui de subpredadores, reitero – não gente capaz de perversidades audaciosas como um Ted Bundy, não gente que só na base do enjaulamento, e sim infelizes ainda dentro do espectro da "gracinha", da "piadinha", da "brincadeirinha". A transição se dá num fiozito de nada, eu sei, mas digamos que o tutorial de Heather se aplique preferencialmente àqueles espécimes que costumamos chamar de tios do pavê; todo mundo conhece o tipildo: é o que lança as maiores barbaridades com ar bonachão e se tolera com riso amarelo por ser chefe, colega, família, amigo da família; quando eventualmente questionado ou flagrado em aberta biltrice, ah, que exagero, você entendeu errado, o mundo tá muito chato, que coisa, não se pode falar mais nada também. Não, NÃO se pode falar mais nada que pese como constrangimento e assédio – nunca pôde, em verdade, e está mais do que em tempo (sempre em tempo) de reforçar limites e rédeas. Vai gaiatear e gaslightear pra cima do teu sofá, da tua mesa, do teu travesseiro, imbecil: suas "brincadeirinhas" não passarão.

É preciso criar um mundo não apenas chato como INSUPORTÁVEL para os idiotas: envergonhá-los serena e impiedosamente (aliás, deixá-los envergonhar-se sozinhos, sem estender nenhuma sombra de riso amarelo ao resgate), não lhes facilitar a vida no público ou no privado, cutucá-los com tranquila elegância a fim de que sejam obrigados a encarar, muitas vezes com plateia, sua própria escrotice. O método Heather & Father é maravilhoso por configurar um anticrime perfeito; não permite ao pústula sequer a saída precária de se dizer acusado pelo outro, uma vez que não há acusação – somente um posicionar de espelho, um espaço solene para que o bostejador acuse a si mesmo. O fato de ele estar ciente de sua inconveniência, e de se ver às voltas com a necessidade de verbalizar o indefensável, só torna tudo mais passível de pipoca. É sentar e observar o embaraço, o arregalamento, a gagueira, a surpresa indignada de quem contava achar cumplicidade em seu alvo e em seu público, mas acabou sozinho e com o risito nervoso (devolvido) no colo, sob os holofotes do picadeiro.

Melhor ainda: trata-se de estratégia multiúso, perfeitamente aplicável também contra piadinhas racistas, homofóbicas e assemelhadas – com a chance-bônus de contemplar o preconceituoso, se minimamente avesso a delegacias, tentando se safar de um possível enrosco criminal. Quanto mais hostil e espinhenta se desenhar a situação para os calhordas, quanto mais incômodos lhes forem os olhares, quanto mais perderem empregos e patrocinadores, seguidores e respeitos, melhor; que a terra lhes seja inóspita, que o ar lhes chegue irrespirável, que em torno deles nenhum empreendimento germine, que sua vida seja um colchão de cactos social até que eles, sim, se amaciem como humanos, adestrem a língua, se for o caso andem com focinheira imaginária. Que se virem, que lutem; não são as vítimas da incivilidade que têm de suar frio, são os nativos da babacolândia que devem pisar miudinho se não querem ser deportados da civilização.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Os labirintos impermanentes


É receita da bela e absoluta Cecília: "Construirás os labirintos impermanentes/ que sucessivamente habitarás.// Todos os dias estarás refazendo o teu desenho./ Não te fatigues logo. Tens trabalho para toda a vida./ E nem para o teu sepulcro terás a medida certa". 

Os labirintos impermanentes. Acordando, soltamos devagar a pontinha do novelo; uma sinapsinha amanhece aqui, outrali, e enfim vão todas nos ensolarando, cada uma em seu fuso horário delicadíssimo, apenas/ raia sanguínea e fresca a madrugada. O café, o chá preto ou o que quer que seja de energizador e quente acaba de descolar nossas linhas de ação que acordam tontas, grudadas; e daí em diante é um desafio sem fim, por motivos de: achamos estar finalmente despertos para o expediente remunerado, para o serviço fundamental, e na pressa de avaliação impercebemos que as horas pagas são somente a casa, a casca e o pretexto das horas realmente fundamentais. Moramos sob o telhado de nossos labirintos mais sólidos, porém só vivemos porque, dentro deles, pulsam nossos labirintos impermanentes.

Os labirintos impermanentes são bordados de matéria excessivamente sutil, a saber: uns filamentos de relação que começam finos, finos, finos e vão encorpando conforme os bons-dias, as cumplicidades e finalmente os declarados afetos; uns germes de reputação que vão brotando segundo a constância do adubo, e ganhando massa até o ponto de sua raiz já ter virado rede; umas fibrazinhas de algodão-doce liberadas nos gestos, que nem a pétala roçada libera perfume – o ato de fazer cafuné, por exemplo, gera quilômetros de doçura desenhados com os dedos, milhagem de teia apta a dar inveja em qualquer Homem-Aranha profissa. Se abraçamos um rosto com a mão, se botamos o sorriso indiscutível apesar da máscara, se defendemos voto antifascista, se labutamos por igualdade a cada conversa, se distribuímos exemplos maciços à criançada que está sempre olhando, se não paramos nunca de levar o meio ambiente em conta, se pausamos sempre o obrigatório em prol do amoroso, lá estamos: procedendo ao crochê dos labirintos impermanentes, como dédalos que montam sua engenharia nas entrelinhas. 

Sendo dédalos, entretanto, podemos ser também penélopes involuntárias, já que esses labirintos essenciais se configuram im-per-ma-nen-tes. Uma distraçãozinha brusca, uma palavrinha que escapa avinagrada, um vacilozinho nas percepções políticas e pronto: parte do tecido se desmancha, um só fio puxado fragmenta uma meada. É justo? – vá que não seja; mas nos serve bem de aviso para irmos reforçando uma, duas, três vezes cada trecho construído, amarrando forte, enlaçando forte, consistente, sob eterna vigilância. É o mais morredouro que nos exige mais vivos. É o mais imaterial que nos requer mais sólidos.

Que afinal, in the end, só esses imponderáveis d'alma nos ficam em permanência e em herança; são os únicos bens com leveza suficiente para que nossa leveza última os possa carregar.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Estranhezas


Eu, como todos, sou estranha. Gosto de ver a máquina de lavar batendo as roupas em neve. Não raramente falo sozinha em inglês. Se por acaso espio o relógio e calha de estar em 12h34, fico esperando até ter a chance de ver chegarem os 56 segundos, para completar a sequência (nenhum motivo não, só acho bonitinho). "Enxergo" cores em palavras e números. Curto sinceramente comida de avião. Não consigo deixar de confundir determinados nomes, como Roberto e Ricardo, Simone e Solange. Toda vez que passa um comercial de alguma forma fascinante, paro para assistir arrastada pela mesma irresistibilidade, aguardando com estrelinha nos olhos as partes favoritas – um trechito de música, uma expressão do ator ou atriz, um elemento qualquer que me leva no bico pela maciez, pela fofura, pela graça, pelo timing. Não me equilibro em bicicleta. Não tenho secador em casa. Não sei dar informação na rua. Não sei segurar bebês. Não sei descascar fruta (não sei descascar nada). Não compro saco de lixo porque praticamente toda uniformização me entedia. 

Quando aparece alguém desconhecido (brasileiro) na TV, fico tentando adivinhar o nome pela cara, antes que o identifique a legenda. Legendas, aliás: vou necessariamente lê-las, mesmo que o áudio esteja em português. Às vezes peço desculpas a objetos. Me dá conforto instantâneo sentir cheiro de café na vizinhança. Me dá agonia doida qualquer coisa – que não óculos – presa à orelha (sim, uso adaptador de máscara. Não, não uso brinco). Volta e meia me gruda no ouvido mental algum termo completamente aleatório, como "retículo endoplasmático rugoso". A primeira coisa que me ocorre, diante daqueles salões suntuosos cheios de curvinhas à Versalhes, é "quem limpa isso?". Sou tomada de uma boa moleza ao som de vozes específicas, sem que tenha nadíssima a ver com estimar ou sequer conhecer a pessoa. Sofro de misofonia: há barulhitos que me aceleram o pulso, me arrancam a atenção, me deixam simplesmente insana. Tenho uma vontade enfofurada de amassar cachinhos alheios. Crio particípios sem o menor pudor. 

Normalmente permaneço na sala de cinema até a telona cuspir toooodos os créditos, ainda que não seja filme da Marvel e os funcionários me olhem discretamente furibundos. A não ser em casa com os familiares, adoro poder almoçar sozinha (please, não me digam "vou ficar aqui te fazendo companhia"). Creio serem exceções os dias em que NÃO tenho dor de cabeça. Não sou fã de ouvir música, mas, se ela estiver casualmente tocando e me for preferida, não sou fã de quem me impeça de ouvir a música. Odeio o roçar de lápis e lapiseiras no papel; só uso canetas, silenciosas e definitivas. Não uso carteira. Não uso estojo. Não uso cartão de crédito. Não uso blusa sem manga. (Praticamente) não uso calça comprida. Morro de preguiça de assistir a filmices no recesso do lar; séries idem, ibidem. Detesto estar com alguém a tiracolo quando preciso comprar roupa. Danço jingles de comercial e vinhetas jornalísticas. Apoio o controle remoto no pescoço. Transformo em advérbio qualquer palavra que respire.

Crio minialternativas de existência sem o menor pudor.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Fragmentados


O cientista norte-americano Ray Bandar possui mais ou menos 7 mil crânios de animais. O islandês Sigurdur Hjatarson reuniu quase 300 pênis de animais. O vendedor de charretes Sérgio Cintra guarda pelo menos uma ficha telefônica de cada estado brasileiro e algumas gringuinhas: alemãs, portuguesas, argentinas, paraguaias, etceterenses. O ex-pastor Paul Luke precisou fazer um armazenzinho no quintal para acomodar suas mais de 10 mil garrafas de leite. A britânica Carol Vaughn já chegou a cerca de 5 mil barras de sabão, de todo tipo e nacionalidade. A americana Barbara Hartsfield ultrapassou as 3 mil cadeiras em miniatura. Sua conterrânea Nancy Hoffman resolveu dar um lar feliz a mais de 730 capinhas de guarda-chuva (sim. As capinhas). O inglês David Morgan arrebanhou pelo menos meio milhar de cones de sinalização. A cantora Deborah Henson-Conant fundou o Museu da Comida Queimada, para expor todas as carbonizações culinárias possíveis. O historiador John Reznikoff acolheu, em suas gavetas, mechinhas de cabelo de Edgar Allan Poe, Albert Einstein, Abraham Lincoln e mais cabecitas famosas. E por falar em famosidade: Penélope Cruz é louca por cabides. Regina Casé, por vassouras. Angelina Jolie, por facas. Tom Hanks, por máquinas de escrever. Johnny Depp, por bonecas Barbie. 

Acho doidalhaça a dedicação que esse povo celebrado hoje – hoje, Dia do Colecionador – gruda nas mais aleatórias, nas mais avulsas improbabilidades, como se para construir um totem de si precisasse amealhar cacos de uma caça ao tesouro. O mais fascinante é a abrangência, a roleta-russidade da escolha; há desde os canônicos selos e moedas (eu definitivamente, por ligar a coisa à imagem de homens-seríssimos-com-pastas-de-couro manipulando os itens com pinça e paciência em gabinetes de madeira, não seria nunca desse grupo) até o extremo da bizarrice: gente que coleciona sachês de ketchup, pacotinhos de açúcar, fezes fossilizadas, baratas – SIM, vi foto de uma menininha que cria CENTENAS de baratas, e as BEIJA –, borrachas em forma de comida, bigodes de gato, bibelôs de sapo, caudas de sereia, cotocos de lápis, fitas métricas, coçadores de costas, adesivinhos de banana, tudo & qualquer traquitana com estampa de dálmata. Nada parece existir, sobre ou sob a superfície terrestre, que não possa randomicamente ser elevado por alguém à condição de joia do infinito ou pacote de figurinha; você está voltando do almoço para o serviço e VRAU, é acometido por uma revelação maia ou asteca de que deve consagrar a vida a reunir todos os tipos de guardanapo do mundo, todas as gravações do Biafra, todas as embalagens ever produzidas da batata Ruffles. É isso e acabou-se, é a parte que lhe cabe neste louquifúndio, não questione. 

Má ou boamente, me falta a disciplina febril dos colecionadores – esse espírito de catalogação, essa entidade filha de Indiana Jones com bibliotecária que possui a alma dos obcecados. Sou preguiçosa demais para ser obcecada. Evidentemente há temas e coisitas que me definem e representam: Mafalda, Amélie, Loki, Coringa, Mickey, beija-flores, cerejeiras, romantismos, esquerdismos, harry-pottismos, elementos que mui recorrentemente as minhas pessoas veem por aí e dizem "lembrei de você". Se chego a adquirir algumas peças relacionadas, no entanto, não o faço com propósito de coletar nem me vejo imbuída de missão; cadê tempo, espaço, drive, sistema para me entregar à alegre insanidade dos stalkers de bugiganga? Acumulo bastante papel, é fato, mas mezzo por motivos de magistério, mezzo por indolência na hora de rasgar impressos que contenham dados pessoais (PENSE num ódio: CPF e endereço na nota). No acumular de busca, mesmo, e não naquele advindo de prostração, o que eu poderia incluir são os livros – livros de autores do século XIX, mais exatamente; esses sim eu pesquiso, caço, arranco dos confins de sebos e de outros países, necessário sendo; se realmente quero aquele título ou aquele autor, viro um perdigueiro, um cão farejador da Polícia Federal. Configura coleção? não sei; sinto certo desconforto em categorizar livro na mesma prateleira de enfeites de coruja, Funko Pops ou tampinhas de garrafa. Livro é um utilitário, um mantimento moral. Ninguém, ao que me conste, afirma colecionar os biscoitos, doces, alimentos vários que venha a consumir – a não ser que não os consuma; ou mantém o conteúdo intocado e entocado, em estado de coleção, ou o faz cumprir-se como conteúdo e abre mão da ideia de considerá-lo artigo de vitrine. Ou o incorpora – ou o exibe. Daí que bibliotecar tende muito mais para a antropofagia do que para a adoração.

A alergia é a prova dos nove: se o acumulador de títulos mora entre estantes abarrotadas e não dá um! espirrinho, alerta de coletador na área. Amantes reais, famintos, que vivem se enfiando no vaivém das páginas, não conseguem deixar de meter o nariz onde são chamados.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Stand-byers


Nosso Millôr Fernandes definiu criança como sendo "esse ser infeliz que os pais põem para dormir quando ainda está cheio de animação e arrancam da cama quando ainda está estremunhado de sono". Concordo muitissimomente – até por ser um caso menos de pitaco e mais de constatação –, e tomo a liberdade de acrescentar: adulto é (na maior parte das vezes) a mesma coisa. A diferença crucial é que, em versão adulta, esse ser infeliz engloba a criança e os pais; ele é o torturado sendo ele próprio o torturador, embora normalmente não se torture por mero impulso de servir a uma dominatrix que o pisa com dois ponteiros, e sim pela urgência de ser agradável a quem o alimenta. Motivos que eu sempre considerarei extravagantes têm um frissonzinho especial no ato de encaixotar a nós – milhões, bilhões de organismos distintos, com agendas e ritmos peculiares – num Grande Padrão de produtividade e sono, por mais que seja óbvia a desfuncionalidade: pessoas que moram looooonge do emprego cruzam a cidade na ida e na volta em modo zumbi, exaurindo-se nos bancos de trens e ônibus, quando não apagam de pé contra a parede; pessoas cuja consciência só atinge os 100% de carga lá pelo meio-dia precisam estar atrás do volante às 7h, raciocinando e metabolizando um trânsito que, para mim, seria astrofísica avançada em qualquer horário; pessoas que não sabem nem o nome depois do almoço cabeceiam na mesa, sem ter onde ou como providenciar uma sesta; pessoas e pessoinhas que estudam em horas avessas à sua biologia desmaiam o nariz no livro, impossibilitadas até de um 2 + 2. Não bastantemente, os já péssimos sonos da vida urbana ganharam, nas últimas décadas, o atravanco luxuoso de computadores e smartphones, reis daquela luzinha azul hipnótica e obsedante cunhada no inferno. Nada há de ruim no capitalismo que o capitalismo não seja bem-sucedido em piorar.

"Nhâin, lá vem você com o capitalismo." Ué, meu amor, vou vir com quem – com a Liga da Justiça? com o Kid Abelha? com o Curupira? com o papa? Venho com quem vive de funcionar fazendo-nos funcionar mal, funcionar só o suficiente, e ainda nos culpar por não estarmos funcionando. Na lógica em que estamos chafurdados, é essencial que nossas singularidades permaneçam domadas; demonizadas, se possível (levanta a mão quem nunca ouviu nenhuma inferência de que um indivíduo pego cochilando é "preguiçoso" ou "vagabundo". Alguém? alguém?). É essencial que a meta a ser batida vire um Graal e o descanso vire frescura; que a marcação do expediente se torne parâmetro e todos os demais agendamentos orbitem em torno do sol profissional; que o excesso de desafios desafios desafios estímulos estímulos estímulos nos mantenha atiçados e, paradoxalmente, de corpo tão exausto que não consigamos, fora do trabalho, mergulhar em nada muito filosófica e sociologicamente profundo. É essencial que não haja um período significativo desse fora do trabalho, aliás: que continuemos alcançáveis e disponíveis a um deslizar de dedo na tela, que vivamos num sobressalto pavloviano a cada tremidinha ou barulhinho do zap, que "durmamos" com a ansiedade embaixo do travesseiro, feito máquinas que na prática não desligam nunca, ficam somente a um toquezinho de tecla que as sacuda do stand-by. Não passamos mais, dentro de fábricas, as 12, 14 ou sei lá quantas mais horas absurdas que se passavam, nas priscas eras da Revolução Industrial; e ainda assim – considerando, claro, todas as imensas evoluções de regulamentação, batalhadas com muita luta e muita greve – os tentáculos não desistiram, sofisticaram-se apenas: funcionários são sinuosamente persuadidos ao cabresto numérico, à prontidão virtual, ao debater-se maripôsico na luz que sorri altas inocências.

Isto não é (insisto sempre, sempre) um libelo contra tecnologias: tecnologias são irreversíveis, e em grande medida muito boas. Digo simplesmente que quaisquer discursos que tornem a presença delas compulsória – na cama, na mesa, no banho – não são confiáveis. Quaisquer discursos que toquem terrorismo suficiente para nos manter em desassossego, entrecortados a cada repouso e obedientes a cada "plim" de um brinquedinho iluminado, não são confiáveis. Se estamos há milênios fugindo de predadores, nos enraizando e buscando (como espécie) um cantinho para nos abancar sem medo, já é hora de resgatar a coerência biológica e afogar essa ditadura da apreensão: apaguemos a luzita azul, apaguemos nossos afobados superegos para que haja sono e trégua bastantes, desapeguemos das velhas estruturas históricas que nos preferem androides, autômatos. É só da pálpebra para fora que esses programadores vão contribuir para que andemos de olhos bem abertos.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Saquinhos de ar


Hoje tem boniteza de celebração: é o Dia Internacional da Tolerância. Sou nem doida de questionar o quanto é urgente, o quanto é fundamental esgoelar a coisa aos quatro ventos – já que, à medida que cresce a conscientização sobre o abraço universal, algumas almas infelizes também se desvergonham e desgovernam, surtando preconceitos feito baratas cutucadas na toca. Não há a menor condição de NÃO haver constantes lembretes, convites, alertas, odes, brindes, chamadas à tolerância, critério indiscutível e sagrado para sermos aprovados em Humanidade; não há a menor condição de não falarmos dela, não a louvarmos, não a defendermos em todos os tons e timbres, em todas as (plata)formas e mídias, em todos os grupos e ocasiões. É essencial citarmos tolerância, gritarmos tolerância, tecla-batermos tolerância até que se calem em definitivo os intolerantes (únicos realmente intoleráveis). Certo; isso não está em discussão. É questão domesticada. Terra pacificada.

Não consigo evitar, porém, meu impacificado incômodo com o termo "tolerância".

Concordo seja difícil arrumar substituto, mas é fato: em determinadas situações, a palavra me desconforta. Afinal, toleramos coisas feitas, em tese; coisas-atitudes, coisas que nos são – ou são quase, ou praticamente são – dirigidas, que nos causam efeito prático com ou sem propósito. Toleramos (no devido horário) a festa do vizinho, o videogame online do vizinho, a conversa aos gargalhos do vizinho, os trocadilhos vintage do colega, a ligação chorosa da amiga na madrugada, a criancinha fofa do cliente desarrumando a loja, as 43.768 especificações da mãe para uma escolha bem-sucedida de frutas no mercado, o inquérito da tia-avó sobre os namoradinhos, o meeeeeesmo trecho de ópera durante o loooooongo banho do irmão. Toleramos hábitos, chatices, rabugices, manias, perguntas – toleramos em geral ninharias que nos aborrecem no outro, e que nos aborrecem por efetivamente nos invadirem o espaço sonoro, o tempo de trabalho, o tempo de sossego, o que for, mas representarem uma pequena invasão real/oficial. Toleramos o que, de alguma maneira, é da nossa conta.

O ser muito particular e intrínseco do outro já não é da nossa conta. Aquilo que é constitutivo da vida e da identidade do outro, dele apenas e no máximo extensivo a seu parceiro amoroso, já não é da nossa conta. Não nos diz respeito, não tem de bater ponto em nossa opinião, não precisa de nossa autorização mais do que precisa de uma lixa quebrada. Se a pele do outro é desta ou daquela cor, se o cabelo do outro assume maior ou menor volume, se na vivência de sua fé o outro come isso ou jejua daquilo, se o outro beija homens ou mulheres ou ambos (ou nenhuns), se se enxerga como homem ou mulher ou nenhum (ou ambos, ou outro), se traz no sotaque a música de regiões aléns ou aquéns – nada, absolutamente nada disso sequer tange a necessidade de nossa aceitação ou consentimento, nem de levinho roça o perímetro em que nossa participação seria conveniente ou requerida. Essa consciência é que me faz, num cantinho do peito, achar arrogante o conceito de tolerância aplicado ao que nunca deveria se dar ao trabalho de pedir para ser tolerado. Who the hell somos nós para "conceder" a honra do óbvio? Que espécie de autoridade nos atribuímos para julgar relevante nossa condescendência – para fazer parecer que estamos suspirando fundo e "concordando", generosamente, com a existência de algo perfeitamente alheio a nós?

Apoquenta-me (não adianta) esse aspecto semântico da tolerância que aponta para um "olha, estou aqui aturando seu estilo de vida no qual não entro, estou aqui suportando com bravura a visão de um alargador que NÃO está na minha orelha e de uma tatuagem que NÃO me doeu na pele, estou aqui autorizando com sacrifício o gesto de carinho entre um casal de transeuntes, estou aqui me resignando em silêncio à sua quantidade de melanina, veja que ser evoluído e fabuloso eu sou". Como se um desconhecido, sei lá, chegasse para mim na rua e me outorgasse o direito de andar nela. Como se qualquer de nós se pusesse na esquina a distribuir saquinhos de ar. Sim, assim absurdo – e ainda assim, muitíssimo infelizmente, continuamos necessitando de um dia para celebrar o ululante; aquilo que, não existindo, desanda simplesmente em barbárie. O que me faz compreender com inteireza por que a respiração, a pulsação e as demais atividades-eixo de nosso organismo são involuntárias: a depender da disponibilidade natural dos sapiens para viver o que nos mantém vivos, já estaria toda a espécie enterradíssima.

Nosso drama capital, entre os mil outros, é não termos crescido bastante para nos recolher à nossa insignificância.

domingo, 15 de novembro de 2020

Um bufão no salão


Preciso nem comentar o quanto fiquei horrorizada e indignada com a capa da IstoÉ desta semana, imperdoavelmente desrespeitosa – desrespeitosa com o Coringa, é evidente. Por motivos óbvios não vou reproduzir aqui a imagem grotesca, mas todos devem ter visto: a cabeça do criaturo-em-chefe pintada com a já icônica maquiagem e colada sobre a já icônica posição de dança do Palhaço; ao lado, numa tentativa de justificar a comparação esdrúxula, os adjetivos "inconsequente, irresponsável e insano". Só sei que me deu um tangolomango de entojo por dentro, uma embrulhada de dor que vim aqui despejar na cabeça de vocês antes que eu saia por aí apavorando Gotham.

"Âin, por que isso tudo, é só um personagem" – sim: é um personagem que eu amo profundamente (ao menos em sua última encarnação, e ao menos em sua versão pré-dissociativa) sendo relacionado e confundido com o representante de tudo quanto eu mais odeio. TU-DO. Até faço, boazinhamente, o esforço de compreender o raciocínio dos editores a partir da escolha das palavras; não há como negar que ambos os indivíduos sejam inconsequentes, irresponsáveis e insanos, de fato; porém linká-los por esse umbigo de abordagem só demonstra a mais superficial das visões – como se alguém, do filme inteiro, tivesse visto somente a cena da dancinha louca na escada, e ignorasse solenemente cada tijolinho psicológico, cada recorte social, cada circunstância, cada porquê. Não muito diferente, em última análise, de se fazer uma capa equiparando o Batman à Vandinha porque os dois se vestem de preto, ou o Cascão à Ariel porque os dois decidiram ficar longe da água, ou o Ursinho Pooh à Moana porque os dois têm um amigo porquinho. Nada mais fácil do que prosseguir sem critério na farra dos emparelhamentos doidos, considerando que qualquer um de nós está, relativamente a qualquer coisa, intermediado por algum grauzito único de separação.

Bolsonaro (com o perdão da má palavra) e Coringa não apenas não são semelhantes: são opostos. Arthur Fleck nunca teve nenhuma blindagem, nenhuma proteção, nenhum privilégio; nunca teve sequer família propriamente dita, nunca foi marido e provavelmente nunca será pai de alguém, apesar de mostrar clara preocupação com a alegria e o bem-estar de crianças e SABER que é errado praticar violência ou portar arma em presença delas (aliás, Arthur é o primeiro a reconhecer que NÃO tem condições de portar arma). É uma criatura pobre, paupérrima, presumivelmente no limite da desnutrição, que não conta com ajuda alguma de empresário rico – e nem ao apoio mais básico do Estado tem acesso por muito tempo. Tenta sinceramente fazer bem seu trabalho. Não apresenta a mínima tendência para adotar comportamentos machistas, racistas, preconceituosos em geral. E (muito importantemente) não parece ter real intenção de rir dos outros, a não ser que estejam fabricando piada; mais: fica constrangido de maneira genuína ao gargalhar em momento impróprio, por mais que o faça à sua revelia, sem prazer e sob toneladas de aflição.

Caso a digníssima IstoÉ ache por aí um presidente assim desprivilegiado, desfamiliado, desamparado pelas esferas pública e privada, empenhado no serviço mesmo entre uma surra e outra, isento de preconceitos contra minorias, envergonhado de suas reações inadequadas, consciente de que armas podem não ser uma boa ideia, vá lá; paro de espernear contra a analogia coringuesca. Mas desconfio de que não rola, jornalistas queridos. E, como não rola paralelo desse lado do picadeiro, deixo aqui minha modesta sugestão para que abracem o super hype Pennywise como substituto. Não estão à procura de um clown que atraia espíritos incautos usando como álibi um objetinho vermelho a ser estourado, e que quase trinta anos depois a gente acha que acabou, mas continua e se perpetua – vampirizando, vampirizando? então. De nada, viu, pessoal da IstoÉ? Em troca, solicito única e docemente que parem de palhaçada.

sábado, 14 de novembro de 2020

Onde não vivem os monstros


OK, a sexta-feira 13 foi ontem, mas não resisto: lá vai a equipe da COISA (o meu Centro de Oposição a Invencionices, Superstições e Asneiras, no qual trabalho exata e exclusivamente eu mesma) se debruçar na data e provar, por A + B e por C - D, que tem também uma penca de troço legal nesse dia injustiçadíssimo – como o são todos os dias, animais, pessoas, ideias, objetos vitimizados por implicâncias malucas. Na evidente falta do que fazer, ou (o que é mais preciso) no escapismo do que deve ser feito, humanos ociosos saem simplesmente envenenando os pacová de humanos impressionáveis, e isso fere sempre de morte o espírito da COISA; em desagravo, portanto, eu aqui comigo pesquisamos diligentemente e descobrimos que:

Numa sexta-feira 13, houve um primeiro registro de carnaval – ainda chamadinho de entrudo – na jovem São Paulo.

Numa sexta-feira 13, foi fundada a cidade de Cabo Frio.

Numa sexta-feira 13, foi criada a vila de Aquiraz, primeiríssima capital do Ceará.

Numa sexta-feira 13, Torricelli inventou o barômetro (mandou bem, Tôrri!).

Numa sexta-feira 13, estreou em Dublin o mo-nu-men-tal oratório O Messias, de Händel.

Numa sexta-feira 13, estreou em Munique a ópera A falsa jardineira, de Mozart.

Numa sexta-feira 13, a França avisou Londres, afrontosérrima, que tinha reconhecido a independência dos Estados Unidos SIM, mon amour! Chupa essa mangue

Numa sexta-feira 13, foi fundada a Impressão Régia, debutante das editoras brasileiras. 

Numa sexta-feira 13, (São) João Maria Vianney chegou à paróquia de Ars com seu coração e seus livros. 

Numa sexta-feira 13, John Keats escreveu o soneto "As estações humanas" e o dirigiu em carta a Benjamin Bailey; o letreiro Hollywoodland surgiu nas montanhas de Los Angeles (mais tarde, numa reforma, perdeu o rabicholand); o game Mario Bros foi lançado; a Nasa declarou ter descoberto água na Lua; Lyndon Johnson cravou como ilegal a contratação de funcionários discriminados por gênero.

Em sextas-feiras 13, nasceram: o poeta escocês William Drummond de Hawthornden (não sei vocês, mas acho auspicioso que nasçam poetas da marca Drummond); o médico dinamarquês Olaus Wormius; o desenhista tcheco Václav Hollar; o naturalista sueco Olof Rudbeck – um dos descobridores do sistema linfático e antepassado de Alfred Nobel; o fabricante de instrumentos alemão Johann Christoph Denner, inventor do clarinete; o pintor inglês Joseph Highmore; o também pintor escocês Allan Ramsay; o escritor italiano Carlo Gozzi; o barítono e violinista holandês Gerardus Craeyvanger; a brasileiríssima Antônia Clara, mãe de nossa Nísia Floresta; o pediatra inglês Samuel Gee, descritor da doença celíaca; o neurologista suíço Otto Veraguth; o nosso poeta romântico Pedro Luís Pereira de Sousa; a carmelita chilena (Santa) Teresa de Jesus dos Andes; os queridos atores Alexandre Nero e Fábio Lago.

Uma fartura de bons aconteceres, em sumíssima – isso porque estive só 24 horas brincando de escavações e não pude, a contento, meter a britadeira nos séculos. Voltei à tona meramente com uma pepita de fatos e de gentes, mas já dou por entendida a COISA: há mais químicos, esculturas, revoluções, inaugurações, aviadores, balés, cientistas, abolicionistas, monumentos, milagres, praças, matemáticos, cantores, romances, festas, cineastas entre céu e terra do que supõe nossa vã cronologia. Mui felizmente, não há tempo que chegue para desentocar todos os feitos do tempo que já chegou; são excessivas e desnecessárias as amostras do óbvio. Porque é óbvio: nenhuma data, nenhum temor, nenhuma cisma perturba o nosso sono com disfarce de brinquedo assassino se a gente mesmo não der corda.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

A água implícita


Nem é tão raro que estejamos rarefeitos, de impulsos rareados, inspirações ralas. Uma montoeira de fatores nos faz assim incertos: o sono não se ajeita, estímulos do dia não empurram, nada de não excessivamente duro e sólido acontece, nada que nos torne as ideias mais moldáveis, mais flutuantes. Às vezes é isso, somos essas massas pasmadas, improdutivas, olhando a tela com alguma perplexidade indiferente, sem ânimo nenhum de comentar o Brasil, o mundo, as gentes, as insânias que prosseguem à revelia de nosso imenso cansaço; por mais que muitos quartos de água nos componham, no organismo e no planeta, ocorre sempre e sempre que nos vejamos tomados de aridez – desérticos no ritmo e no conteúdo.

Felizmente existe a poesia de carro-pipa, existe a poesia como trazedora de umidade mesmo em doses fortuitazinhas; que diriam umas gotículas de Drummond, por exemplo, para nos reprovar essa paralisia de pedras no meio do caminho? Diriam fatalmente que tivéssemos a decência de "amar a nossa falta mesma de amor,/ e na secura nossa amar a água implícita,/ e o beijo tácito, e a sede infinita". Diriam qualquer algo assim, e ouviríamos; e nos poríamos a louvar, fortunosamente, também todo esse fértil estado de vazio, o silêncio que lembra ausência de vida mas é a vida itself aguardando ingerminada – pré-germinada – o despencar das nuvens inevitáveis. Ouviríamos e celebraríamos, senão a saciedade, ao menos a sede: a sede d'alma que é véspera feliz da absorção.

Há que se festejar a água implícita. As leituras que estão em stand-by, próximas de serem fundamentalmente amadas; os episódios de série que estão a postos para machadarem em nosso chão uma fonte irreconhecível; as curiosidades que moram à paisana na esquina, stalkeando meios de nos seduzir a vontade (e à vontade); os esbarrões – virtuais inclusive – que por enquanto inaconteceram, porém residem naquela bela faixa do arrebatamento provável; as falas, os ditos, os trechos, os fatos, os sustos vistos e ouvidos que andam acampados em algum espectro de futuro, sentados num banco de reservas no tempo, a um isto aqui de entrar em campo e nos bagunçar a bola. Há que se festejar a festa em preparo: o que os olhos ainda beberão, o que as ideias ainda vestirão, o que a esperança tinhosa ainda calçará, o que as pulsações ainda dançarão, o que a gula ainda provará, ruminará, assimilará. Há que se festejar o contínuo, o processo, a maré; o acordo firmado para a entrega de surpresas esparsas; o trato latente para a confiança nas ondas; o subentendido pacto de fé no que mais cedo ou mais tarde nos farta, nos dessedenta, nos estanca. 

Nossa água implícita sempre ainda virá na folha branca.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Gaiola das loucas

O autor francês Jules Renard sintetizou milênios de devoção à escrita numa frase: "Escrever é uma maneira de falar sem ser interrompido". Mas, gente – e não é? Só essa maravilhosidade de estar quieto, retirado, recolhido compondo de si para si os pensamentos, que nem mulher rendeira ocupada com a renda interna; só esse troço sublime de se encontrar em período de monólogo, com todinho o tempo necessário à tessitura da fala sem a ansiedade do outro, sem a respiração e o atropelo do outro – só isso, se não for a coisa mais libertadora do mundo, entra molinho no páreo. A conversa falada é um pequeno caos, especialmente agora que o ser humano se torna mais e mais incontinente por influência de pressa, pressa, pressa e estímulo, estímulo, estímulo; cada vez menos dada à paciência e à delicadeza da escuta, cada vez menos aguardante de que processos cognitivos se concluam docemente antes de passar com seu trem-bala verbal, a espécie afrouxa progressivamente na arte de bater papo e trocar ideia sem ficar parecendo um viveiro de araras malucas com música de rave ao fundo.

Não é difícil perceber que não sou fã de conversas audíveis em tempo real. Culpada. Principalmente em grupos maiores, me pesa a insuportabilidade de a gente ir falando mais aos berros à medida que o assunto avança. Mas o piorzão mesmo, ao lado dos decibéis insanos, é o hábito mais insano ainda de darmos carrinho na fala uns dos outros, de nos abalroarmos feito bate-bate de parque de diversões no espaço sonoro. É tenso: quem odeia gritar e se sente tonto com a sobreposição de vozes normalmente tenta encontrar um intervalinho de silêncio para emitir som, com a prontidão ansiosa dum sujeito que precisa atravessar, sem faixa de segurança nem sinal, a principal avenida da cidade em horário de rush – ou capturar um saco de arroz no meio do aniversário Guanabara. Quando finalmente se pilha um segundo, uma faísca de oportunidade no fogo cruzado, a tendência é sair-se correndo com a fala e acelerando o argumento como um Forrest Gump que voa para o touchdown. Não é a corrida pelo gosto da corrida, é a corrida ameaçada pela sombra da voz alheia que a qualquer momento derrubará a nossa na área, o que reduz poderosamente o gozo de estar com quem se está e de ousar um tímido espectro do que costumamos chamar de comunicação.

Não digo que eu não seja também uma interruptora; somos todos nascidos e criados nessa selva de predadores linguísticos, e só com desusada evolução espiritual (que não tenho) deixamos de nos sujar na guerra de barulhos. Mas verdadeiramente me odeio quando entro nessa espiral de loucura, e viro mais fã ainda de todos os bons e serenos escutadores, que não alimentam a mania de terminar frases alheias – no máximo dão uma forcinha gentil, se notam o outro em extremo sofrimento para expressar o que sente –, não matam a linha de pensamento de alguém para introduzir novo assunto, não impõem uma quebra do silêncio fora de seu ciclo de maturação, dão espaço VIP para que um raciocínio não-seu respire, cresça, role na grama, brinque, se desenvolva. Não ser – e pouco encontrar – interlocutor assim leva ao desânimo conversesco e ao maior apego à civilidade da interação textual: cada um morando no seu tempo, sem o atravessamento e a urgência e a impaciência e a demanda de outra voz que bufa sobre o ombro; cada um com calma de sobra para entender-se e elaborar-se, e para sentar (se honestamente disposto) a fim de entender e elaborar a outra parte, considerando que equívocos de interpretação não nos separem.

Em era pandêmica, as circunstâncias mesmas conspiram: ave, palavra escrita – os que ainda vão morrer de ódio da balbúrdia-com-delay das videochamadas te saúdam.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

(Também) é preciso


É preciso encarar inclusive os filmes mais difíceis, mais excruciantes na proposta e no tema, a fim de abrandar a ânsia pelo muito intenso e espicaçar a sensibilidade pelo morno, amaciar os sentidos enervados e aguilhoar os preguiçosos, moderar umas febres de estímulo e mo(v)er uns cansaços estéticos. 

É preciso fazer respiração meditativa para aveludar as sinapses.

É preciso desistir gloriosamente de entender o beisebol, as exceções do hífen e as eleições americanas.

É preciso adotar (também) pessoas que já são nossas: eventualmente pegar suas dores no colo como às próprias, sondar-lhes o interesse com interesse docinho, adivinhar-lhes uns quereres com o propósito da melhor surpresa.

É preciso pôr a consciência para amamentar ideias que o subconsciente dá à luz.

É preciso reler textos que aos 18 anos exalavam absurdo, aos 29 refluxogramizaram-se na cabeça, aos 40 ninguém imagina o quão nítidos podem acordar.

É preciso salvar as roupas que já foram centrifugadas e estão lá engrunhando na máquina – corre!

É preciso assistir a O gambito da rainha (não, ainda não vi, mas sei que).

É preciso descobrir maneira de desenferrujar o espelho (não, não estou cometendo metáfora).

É preciso assumir que músicas inconvidadas ficarão tocando nalgum sótão do cérebro, e ter músicas de higiene para proceder à desinfecção.

É preciso persuadir todas as carências da casa a se desentocarem, para que os olhos possam facinhamente recenseá-las: falta café, falta vitamina C, falta pilha grande, falta papel, falta pera, falta palito.

É preciso ouvir pessoas falando outras línguas maternas, outros sotaques, outras cadências, outros compassos, outros fonemas.

É preciso fazer campanha e novena para o Boulos realmente virar em São Paulo.

É preciso tirar as coisas para assear a prateleira sem que, ao ser novamente aterrissadas, estejam nem a um liechtenstein de distância da sua antiga posição de harmonia cósmica.

É preciso, podendo, comer um minipomar por dia.

É preciso legar aos amigos alguma memória excêntrica: ter sido aquele que criava 127 suculentas, que colecionava balanças, que acordava com bom humor insuportável, que diariamente atualizava uma página da Wikipédia, que era fã de satélites, que curtia ler manual, que só assistia a seriados holandeses, que distribuía raquetes de mosquito como presente-assinatura.

É preciso GRANDEMENTE ter sido.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

O reverso da fortuna


Devo pegar de empréstimo a máxima do genial Friedrich Von Schiller, aniversariante do dia com módicos 261 aninhos: "A vida é o único bem que os maus possuem". Dez palavras e um completo tratado psicossocial, um discurso inteiro de reconfortante tristeza ou de sereno desconsolo. Protestarão muitos que não, indignadamente não!; como pode ser a vida o único bem dos maus, se uma coleção tão enorme de maus amealhou, no decorrer de suas maldades, grana suficiente para comprar a Ásia e usar de garagem a Oceania? Diamantes com o diâmetro da Rodrigo de Freitas, Ferraris, iates, ilhas de trabalho, ilhas de férias, closets de três andares alimentados a Chanel e Gucci, cinemas e boates que são mais um comodozinho da casa e de vez em quando dão pinta no Espaços milionários – tudo isso não são bens guardados e exibidos por muita pessoa nefasta, muita gente que simplesmente NÃO PODE ser tão inconcebivelmente rica sem arrastar uma linha pontilhada de doença e miséria? Fora os maus que não se tornam trilhardários: não têm posses normais, família, trabalho, lembranças creepymente caras das maldades que fizeram?

Eles têm, mas não creio que tenham. No caso dos Patinhas mergulhados em cofres nababescos, por sinal, o mais provável é que sejam tidos: seus bens não são necessariamente seu bem, ao contrário, já é quase regra que todas as pompas se mostrem em algum momento Hidras insustentáveis, vorazes, devoradoras; o luxo leiloa sua presença sem, entretanto, aturar desaforo, e só é leal pelo tempo em que caninamente lhe pagam limpeza, manutenção, parcelas, juros, tudo bastante bonitinho. Em ruindo a fonte, nem ele nem seus derivados ficam para dar cafuné e tapinha no ombro, mudam de dono num assinar de cheque, num fechar de porta, lépidos e lampeiros. Fora os custos de incerteza e paranoia que gelam as artérias enquanto Seu Lobo não vem: ninguém pode descobrir, ninguém pode ver, ninguém pode saber – praticamente uma versão magnata das primeiras estrofes de "Let it go" (com a diferença de que FBI, CIA, Polícia Federal e sei lá mais quens não são o frio, e VÃO mesmo incomodar). É vida? a despeito dos aparatos, prazeres, ostentações: é vida? passar décadas olhando por cima do ombro, não sabendo de qual lado, de qual brecha, de qual Brutus vem a facada? Aleguem o que alegarem, vida é que não é, e no apagar das luzes (da mansão) talvez nem ela própria resista à longa penhora moral. Pessoalmente, declino.

Com relação à malvadolândia que jamais terá perdas milionárias porque jamais terá alcançado a posse, o despenhadeiro nem por isso é menor. Mesmo nos casos de psicopatia, em que não há medo ou remorso, existem baldes de inquietação, dissimulação, perturbação azedando a rotina; fugir e fingir em expediente integral é processo que não autoriza nenhuma espécie de paz, e qualquer dopamina obtida na prática da ruindade não dura – nunca dura. Para os nativos ou residentes da malvadeza, é dificílimo restar pedra sobre pedra, escapar o que quer que seja de imperecível: a família fatalmente se esgarça no desamor e na secura, parcerias e amizades se esvaem ao perceber-se vampirizadas, fanatismos de morte se autodestroem ou são coletivamente destruídos, trabalhos acabam por tornar-se inviáveis, nada vive, nada permanece. Nada se edifica ao redor da crueldade que seja sólido o bastante para protegê-la de si mesma. E, como o cérebro gerido pelo cruel tende a não crer (a não ser como máscara social favorita) em nenhum sistema de amor universal, naturalmente não conta com braços nos quais se atirar para além desta vida – que, em análise final, acaba de fato sendo seu penhor exclusivo, seu resíduo de capital, ainda assim amargamente entendido como matéria oca.

Não existe solidão tão tamanha quanto a dos maus, que enquanto vivos perambulam como cascas, e, mortos, não deixam lembrança melhor que seus túmulos na memória dos vivos.