segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Machucadas

Mais de 400 imagens grátis de Preocupado e Ansiedade - Pixabay

"Papai, mamãe está machucada na cabeça", ficou repetindo o filhinho de três anos da jovem Ana Cristina da Silva, que, na última quarta-feira, morreu atingida por dois tiros no meio de uma guerra entre bandidos do Complexo de São Carlos (Centro do Rio de Janeiro – sempre este nosso fabuloso Rio de Janeiro). Surpreendida pelo tiroteio quando ia para o trabalho, Ana Cristina pediu para entrar com seu garotinho no carro de uma mulher que vinha passando; entrou e escudou o filho, envolvendo-o com o próprio corpo, o que provavelmente foi decisivo para a sobrevivência da criança, uma vez que os bandidos atiraram no veículo logo em seguida. A mãe de 25 anos protegeu, mas não conseguiu proteger-se – nem ser atendida pelo Corpo de Bombeiros, que ainda não chegara ao local uma hora após ser acionado pela família. Moradores da comunidade, por conta própria, levaram a moça para o hospital Souza Aguiar. Era dolorosamente tarde; Ana tinha derramado muito sangue por e sobre seu pequenino, que (no momento em que escrevo) ainda pergunta se mamãe está bem e a que horas volta. 

Olha. Se alguém lê isso no jornal e continua com o coração inteiro, está tendo coração de maneira MUITO errada.

Não sou mãe, mas creio que não é preciso sê-lo para sentir em cada osso as várias orfandades envolvidas na tragédia: a de Ana Cristina, duplamente desamparada pelo Estado (que falhou em guardar seu menino sem que ela tivesse de recorrer ao autossacrifício, e falhou em evitar que esse sacrifício se tornasse irreversível); a do companheiro de Ana, submetido à dor viúva de ver crescer sozinho o filho com o qual ela tanto sonhou (e de vê-lo lancinantemente chamar pela mãe, e de saber-se também responsável por ajudar um serzinho tão pequeno a lidar com a dimensão do acontecido); a da própria criança, evidentemente vitimizada por uma enormidade de perda que logo lhe será manifesta, e que a atravessará por toda a vida. Não há palavra ou lágrima que chegue; não há – como diria Forrest Gump – "pedras suficientes" para atirar nessa fonte de dor. Há um combão de ausências que só não arde com mais força do que a força de presença das mães, em especial das mães brasileiras, a quem não chamo de guerreiras do caos apenas para não romantizar o sofrimento que se veem obrigadas a encarar pelas circunstâncias. Mas que são – são.

Ana Cristina morreu para proteger seu filho. A mãe de Ágatha Félix viu morrer sua filha sem que pudesse protegê-la. A mãe de Miguel viu seu filho praticamente morto sem que ninguém lhe tivesse dado proteção. A mãe de João Pedro quase nunca mais viu o corpo de seu filho morto – e morto dentro de casa, onde o considerava protegido. Uma senhora que outro dia dava depoimento num episódio do programa Sem rastro, no AXN, contava sobre sua saga de nunca mais saber do filho vivo nem morto, e de procurá-lo, procurá-lo, procurá-lo incessantemente há 17 anos, largando do serviço às 15h, perambulando e panfletando cartazes de desaparecido pelas ruas até o último ônibus à meia-noite, acordando cedíssimo para estar no trabalho às 7h no dia seguinte, repetindo, repetindo. Não sou mãe, reitero, mas acho impossível não sangrar junto com as mães brasileiras, machucadas incessantemente na cabeça, no coração, na dignidade, na memória; mães aos milhões que não contam com pais assumindo a coautoria dos filhos, mães solo que deixam de receber auxílio emergencial porque os genitores ausentes se inscreveram como beneficiários, mães que se tornam elástico entre empregos para ocupar todos os espaços vazios dentro e fora da certidão de nascimento, mães que mantêm a alma em suspenso e suspense enquanto os filhos (sobretudo os filhos negros da periferia) não voltam do mercado, do colégio, da balada. Mães que se fazem mil para afastar seus jovens tanto dos policiais como dos bandidos, mães que dedicam a vida a limpar a reputação de seus adolescentes levianamente acusados de crimes por supostos agentes da ordem que desejam encobrir assassinatos. Se há gente mais raçuda, resiliente, resoluta do que essas mães que conhecem todas as formas de dar a vida, ignoro. Falar delas é o pouquíssimo que posso para honrá-las e abraçá-las. Falar com elas é coisa de um instantezinho suficiente para dizer: mães, não é que a Força meramente esteja com vocês. Vocês são a Força.

Segundo o filhinho de Ana Cristina, sua mamãe é uma super-heroína que o protegeu dos tiros. Está certíssimo. Seus inocentes três anos nem sabem o quanto ele está certo. Não era para estar; não era para que absolutamente ninguém carecesse ir além de nenhum limite e nenhum dever porque outros foram além de seus limites e direitos; muito, muito, muito, muito, muito infelizmente Ana teve de ser o escudo que a segurança pública não foi, e muito infelizmente não há como trazer de volta esses heróis da vida real num estalar de dedos. O mínimo que se espera é a máxima justiça humana possível para cada vítima. 

O mínimo que se espera é que cada uma seja a última.

domingo, 30 de agosto de 2020

De reis e rainhas

Morre aos 43 anos Chadwick Boseman, astro de 'Pantera Negra',

A matéria do Razões para Acreditar é de 2018, mas foi resgatada agora por motivos dilacerantes. O jovem Renato Siqueira de Castro (que tinha 15 anos na ocasião da reportagem), morador de uma favela em Duque de Caxias, RJ, ainda na infância tomou a decisão de virar bombeiro e salvar vidas, influenciado pela angústia de ver o barraco da mãe pegar fogo. Quando mais tarde, no entanto, brigas constantes com a irmã o levaram a deixar a casa do pai e trabalhar como engraxate para assumir o aluguel de um espaço próprio, o garoto acabou largando os estudos. Mas no meio do caminho tinha um projeto social determinado a enviar jovens negros da periferia para Wakanda, embarcados em cadeiras de cinema – e lá foi Renato assistir a Pantera Negra, lá foi Renato para um reino africano desenvolvidíssimo, moderníssimo, riquíssimo, e riquíssimo especialmente em ciência e tecnologia de ponta capaz de botar qualquer nação estrebuchante de inveja. Batata. O contato empoderador da ficção bateu fundo na realidade: "Sem a escola eu não consigo nada. Parei e pensei: 'Pô, melhor eu voltar a estudar'", declarou o menino, de ânimo remotivado. E voltou – num colégio com menos bagunça, segundo ele. Ou terá sido simplesmente a perspectiva interna de futuro que se reorganizou?

Assim como Renato, incalculáveis crianças, adolescentes e jovens negros certamente terão sido realinhados pelo filme dentro de suas próprias visões de possibilidades, dentro de seus autoconceitos de talento, força, beleza. Intermináveis almas que habitam corpos negros, após terem estado na celebração de poder africano que é Wakanda – a extraordinária, sedutora, embriagante, vibrante, sábia, potente, incrível Wakanda –, sem a menor dúvida se desbagunçaram da bagunça mental em que o mundo eurocêntrico costuma atirá-las, ao castrar-lhes a chance de perceber sua plena lindeza, sua plena capacidade. Infinitões de gurias e guris que amavam os Vingadores, mas não se viam na lourice caucasiana do Capitão, na ruivice da Viúva, nas referências nórdicas do Thor, ganharam não só um modelo de herói à sua semelhança como uma COMUNIDADE de heróis à sua semelhança: uma nação inteirinha, um elenco todinho negro; um contexto em que personagens brancos são, além de raríssimos coadjuvantes, "meninos a serem consertados". Ganharam ainda mais: uma terra na qual a guarda é inteiramente feminina (e sua principal representante, Okoye, não deixando de ser apaixonada e amorosa, nem por isso cede à chantagem do crush, e garante que abriria mão dele em prol de suas convicções sem nem piscar); o maior gênio científico é também uma mulher; o poder não é simplesmente herdado de papai, mas conquistado no suor (o próprio, não o alheio); a evolução tecnológica ultrapassa em anos-luz a do resto do mundo, incluindo os metidíssimos States; até o vilão, apesar dos métodos detestáveis, apresenta motivações e questionamentos legítimos. Não é pouco; é forte, é um marco. Foi e continua sendo uma abertura de Mar Vermelho para milhões de olhinhos desacostumados a se enxergar em posição de superioridade.

Um reino tão colossal merecia o privilégio de ser governado por seu maior herói, e foi: T'Challa que era Pantera Negra que era Chadwick Boseman. Ninguém, imagino, se recuperou ainda do choque não apenas de seu falecimento, mas igualmente da certeza de que o ator encarou quase todas as batalhas de seu papel mais importante quando, no lado de cá das telas, a guerra já era muito mais infinita. De onde tirou aquela abundância de vigor que não permitiu que a doença fosse um ultimato? Como lutou com tanto ímpeto? Como defendeu Wakanda e o mundo com tanta intensidade? Infelizmente não conheci Chadwick em pessoa, porém, a julgar pelos personagens que o marcaram – basicamente pioneiros negros, desbravadores, guerreiros nas mais diversas acepções –, arrisco um palpitezinho a respeito de sua coragem tamanha: ele sabia. Sabia, como menino negro que foi, como criança negra que provavelmente cresceu com pouquíssima representatividade nas artes, o quanto seu trabalho avassalaria de vida a vida das atuais e próximas crianças negras. Sabia que havia milhões precisando espelhar-se, precisando reconhecer-se, orgulhar-se, catapultar-se, receber endosso para amar suas características e origens, para abraçar como reais suas grandezas e suas chances. Sabia que havia Renatos; muitos, incontáveis Renatos e Renatas que mereciam renascer aos próprios olhos, diante de suas opiniões mesmas, e ganhar um estímulo novinho para se admitir como reis e rainhas de seus superpoderes exclusivos.

Que honra tê-lo tido entre nós, T'Challa, e que felicidade ter testemunhado a abertura de seu reino de possibilidades para o mundo. Diante da existência de tantos meninos e meninas que ainda não conhecem a riqueza de suas possibilidades, sabemos que não poderemos jamais cruzar os braços – a não ser, claro, que seja para dizer:

Wakanda forever.

sábado, 29 de agosto de 2020

E presunto também

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No Frases de Crianças, mais uma daquelas historinhas suculentas (literalmente, no caso). A mãe ou pai de Miguel, um pitico de dois anos, estava rezando com o menino e pediu durante a oração:

– Senhor, nos dê saúde, segurança e sabedoria.

A que o fofildo complementou, de mãozitas postas:

– E presunto também, porque eu adoro.

Evidentemente, numa oração devemos mesmo ser pais ou mães de Miguel, pedindo o prioritário: energia física, mental, emocional a ser empregada em fazeres cotidianos ou extraordinários, e a sabedoria que tudo orienta e nada mais é do que a roupa intelectual do amor. O próprio rei Salomão foi tão, tão frugal nas demandas que as reduziu a um só denominador, à essência da essência, e se ateve apenas à sabedoria. É essa, em tese, a alma adulta; deve(ría)mos ter boas bússolas e bons astrolábios ao desbravar escolhas e reconhecer facilmente o crucial – simples, firme e pleno. Adultos são (ou foram concebidos para ser) crianças de foco aperfeiçoado, com oclinhos de maturidade filtrando as miopias e ajustando-lhes a nitidez para o bem e o bom, o justo e o necessário acima de tudo, no matter what. Adultos proficientes, em suma, sabem o que é preciso querer primeiro.

Mas crianças – inclusive as que nos habitam – sabem o que é permitido querer também

Claro, o humor da anedotinha está no fato de o pequeno Miguel trazer o frívolo para o sério, o mundano para o espiritual e filosófico, o supérfluo para o essencial; porém Miguel pode, Miguel tem dois anos, e, se seu aparte fofinho não funciona no campo da oração, funciona no do símbolo. Podemos estar totalmente imersos em ideais e urgências, mas isso não nos impede, uma vez encaminhadas as prioridades, de buscar o também. Nossa sisudez e eficiência nas tarefas não nos impõe voto de pobreza, nossa responsabilidade de alunos nota dez não nos tolhe a dança, nossa confiabilidade como cirurgiões ou contadores não briga com a fantasia de Pequena Sereia no carnaval. Sim, comunista pode ter iPhone se desejar, e pode usá-lo na militância vivamente, aliás: quem curte distribuir miséria é banco, a gente quer mais é que o trabalhador tenha acesso a tuuuuuudo que produz. Sim, religiosos como o padre Fábio de Melo podem fazer tatuagem e post zoeiro; por que carambolas um desenho de abelhinha ou meia dúzia de risadas em nada ofensivas deporiam contra a fé de alguém? esse povo implicante mora na Idade Média antirriso de O nome da rosa? (Bem dizia São Francisco de Sales ou Dom Bosco, não sei com certezinha: "Um santo triste é um triste santo". Tooooma, sociedade!) Sim, pessoas que recebem auxílio emergencial podem comprar sua cervejinha se acharem que as despesas principais estão cobertas, e ninguém tem nada com isso, criatura alguma está expulsa dos prazeres inocentes para dar satisfação aos fofoqueiros e hipócritas. Sim, estão liberados para todos: alegria à prova de medo, lazer com todas as medidas de segurança, pequenos luxos que não venham de nenhuma exploração e nenhuma fome alheia, agrados à autoestima que não sejam uma trip maluca do ego, música que não aglomere nem irrite vizinhos, sonos longos, sonhos de viagem, viagens efetivas (pós-pandemia, obviamente), lanchinhos nham-nham com moderação de gorduras e açúcares, teeeeeeeeempo livre para si, para a família, para a vida, para o nada. Tempo, tempo, tempo, tempo. Porque somos humanos. Porque essa verdade exclui a hipótese de sermos máquinas. Porque o trabalho é uma contingência, não um ídolo. Porque somos donos daquele aparelhinho que tem WhatsApp, e não o contrário. Porque os filhos crescem mais rápido que o ciclo de uma borboleta. Porque não somos obrigados a virar mártires do primeiro bilhão de ninguém. Nem se (numa realidade alternativa) fosse do nosso. 

Um brinde, pois, ao presunto e a todas as metonímias felizes dos tambéns que roseiam a rotina. Um brinde – para chamar à dança Oswald e Clarice, já que a literatura é sem dúvida um de meus presuntos maiores – à contribuição milionária de cada pedacinho de mundo que nos enche, senão com a pior, talvez com a mais perigosa vontade de viver.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Vestir o painel de controle

Foto profissional gratuita de céu, espelho

Ainda na vibe do Dia do Psicólogo, mais conhecido como ontem, lembro uma frase lindona de Carl Rogers a ser estampada nas paredes, almofadas, camisetas, cabeças: "O paradoxo curioso é que quando eu me aceito como sou, então eu mudo". Isso é de uma precisão redondamente maravilhosa. Note-se que a autoaceitação sugerida por Rogers nada tem a ver com gabrielismos de nascer assim, crescer assim, ser mesmo assim, para sempre assim – o que não é aceitação, é um chafurdamento no comodismo, no medo, na preguiça, ou representa mesmo situações mais sérias e patológicas. Reconhecer-se e abraçar-se como de fato se é envolve necessariamente perdão, mas não autoindulgência. O perdão é produtivo, a autoindulgência é passiva; um, caminhante, e a outra – paralisante. Quem se aceita é porque finalmente encarou o desafio de olhar-se com sobriedade (o que exclui pena e inclui doçura), sem megalomania e sem depreciação, sem passar pano nos defeitos mas também sem entrar na trip infantil e chantagista de querer ou a perfeição, ou nada. Aceitar-se, em última instância, não está atado a aprovar-se, e sim a enxergar-se com clareza bastante para não virar refém de si mesmo.

Pois então: só pessoas que não são reféns podem mover-se, podem caminhar no sentido transformador da coisa. As que não se impõem um espelhinho interno; as que vivem um autorrelacionamento abusivo que acorrenta dinamitando a confiança; as que se atam e se atêm a uma self-narrativa irreal que justifica a permanência na caverna; as que fazem piada de si antes dos outros, e se escondem à luz do dia da necessidade de mudar hábitos; as que posam de desconstruídas às vezes por puro terror de reconstruir-se – todas essas, porque de várias maneiras e com várias estratégias e por vários motivos desviam o olhar do material que têm em mãos, consequentemente permanecem na ignorância de como moldar esse material. Suponha-se que um tenha massinha, outro tenha cimento, outro ainda tenha bronze, um quarto tenha argila, um quinto tenha granito: nenhum dos elementos é ruim ou extraordinário itself, mas adiantaria que a massinha teimasse em se tornar fundação de prédio, ou o granito cismasse de ser brinquedo na pré-escola, ou o cimento e a argila se metessem a medalha olímpica e assim por diante? Não se ver, não se pesquisar, deliberadamente desrespeitar as próprias possibilidades (para mais ou para menos) equivale a adentrar o Reino da Frustração com cinco malas de 32kg e mais um caminhão da Granero – e se entulhar com tudo 24 horas por dia num quarto de hotel. Nada desencoraja mais o movimento do que não ter mapa, não ter plano, não ter projeto, não ter informação, não ter propósito, não ter de si uma paginazinha de Wikipédia capaz de guiar a ação.

Aceitar-se NÃO É limitar-se: é libertar-se para ser. Aceitando-se, a criatura se veste de seu painel de controle; é aquele ali que está disponível, não é outro; não é por manuais com outras funções e outros botõezinhos que alguém consegue ser funcional e se dirigir. Se não tenho o desejo de ser mãe (e não tenho), acolho essa característica e não tento protagonizar Os Busbys + 5, que não vai prestar. Se assumo que meu negócio é mesmo violoncelo, grafite, mecânica, turismo ou criação de joias, largo finalmente o curso de Odontologia em que a família de dentistas aposta, mas que pelo resto da vida me faria sonhar com amargura outríssimas formas de deixar gente de boca aberta. Se percebo mui honestamente em mim que minha orientação sexual não é aquela que mamãe, papai, vovó e vovô imaginam, adoto com amor o que sou, e não uma projeção externa de um eu impostor que só roubaria espaço e saúde do verdadeiro. Se consigo admitir com ternura que eu – um não-super-herói – estou sujeito a uma depressão, a uma qualquer tendência viciante (consumismos, acúmulos, jogos, substâncias, repetições), a uma falha na condução do casamento ou dos filhos, não poso de inoxidável: me vejo livre e pleno no ato de marcar consulta, fazer pergunta, pedir ajuda. Aceitar-se, evidentemente, não garante que as coisas serão fáceis – mas é a ÚNICA maneira de garantir que não sejam impossíveis. 

Cada um de nós é foguetinho que só cumpre a função de elevar-se quando corrige cálculos e rotas de nossas explosões anteriores. Em não nos refazendo, parecemos traiçoeiramente intactos, mas viramos monumentos de ferrugem e não saímos do chão.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Harmonizadores de gente

Banco de imagens : mulher, textura, chão, janela, vidro, parede ...

Hoje, 27, é no Brasil o dia desse herói do destrinchamento humano, desse domador de fantasmas cerebrais, desse síndico de raves internas, desse assistente de sanidade, desse Mestre dos Magos que aclara a Caverna sem sumir inconvenientemente no processo: o psicólogo. Nunca cheguei a frequentar um – certamente não por falta de necessidade; sou do princípio, aliás, de que não há serumaninho com falta de necessidade –, porém olho com total fascínio para os fazeres desses profissionais, que aprendem e identificam tanto as constantes no comportamento da espécie quanto as individualidades mais impensadas. Olho com tamanho fascínio que chego a imaginar: se não tivesse cursado Letras (carreira de que jamais me arrependi, e que eu seguiria e resseguiria em todos os universos paralelos, sendo mesmo o caminho mais à minha feição), não descarto a possibilidade de ter-me enfiado no andar de Psicologia. Inclusive não descarto a de vir a me enfiar ainda, sabe-se lá? Ainda que não seja dada ao acadêmico, aprendi com este 2020 nevado, pandêmico e gafanhôtico que quase tudo pode ser, que planos e desplanos se dissolvem numa piscada e que nossas estradas profissionais também podem acordar em modo freestyle.

Mas não é sobre mim, é sobre eles: os corajosos que um dia se segredam "vou tentar desenredar essa mixórdia que vive em todas as cabeças", e se atiram no que talvez haja de mais abismante, na casa mais mal-assombrada, no oceano mais bestial, na altura mais rarefeita, no vulcão mais cáustico. Se atiram na anatomia do que manda na anatomia, na dissecação do que controla tudo a ser dissecado – e duvido que exista EPI suficiente para deter um décimo dessas emanações tóxicas. Estudando a bagaça toda do que é humano, psicólogos estudam necessariamente o que é extremo, e precisam compreender sem vômito a mente dos psicopatas, a insanidade das mais absurdas parafilias, o efeito dominó das várias manifestações do egoísmo, o total pavor ou o total esvaziamento dos olhos já submetidos a uma coleção de horrores. Não é preciso que o atendimento clínico seja feito nos corredores da morte americanos para que o estômago tenha de virar em Megazord. Onde quer que trabalhem, psicólogos lidam com camadas de dor recebida e provocada: adolescentes com a autoestima no pé, vítimas e praticantes de bullying, crianças que mal sabem expressar os abusos sofridos, filhos dilacerados porque sua orientação sexual não é acolhida pela família, pais dilacerados porque o casamento está insustentável, pré-universitários dilacerados entre seus sonhos de carreira e os de seu clã, mulheres que lutam para desvencilhar-se de relações abusivas, pessoas deprimidas, suicidas, automutiladas, ansiosas, solitárias, desamadas, negligenciadas de todas as maneiras possíveis. E claro: pacientes psicólogos que se consultam com outros psicólogos, porque não me parece seja viável encarar um tal expediente sem terapia de apoio.

Por mais que histórias e corredores da alma humana me atraiam, e nisso esteja justamente o que me seduz na área psicológica, é quase certo que eu jamais viesse a suportar a carga emocional diária desses batalhadores do equilíbrio; provavelmente choraria abraçada aos pacientes no primeiro dia de trampo – e em todos os demais. Não posso deixar, pois, de assinalar aqui minha admiração e ternura pela tamanha e tão complexa labuta dos que conseguem, dos que ficam, dos que se sustentam e sustentam seus atendidos nessa trincheira. É deslumbrante que, assim como na medicina e na enfermagem, haja os que se entranhem tanto na procura do bem-estar alheio; porém é sempre preocupante que cheguem a fazê-lo expondo seus corpos e mentes à exaustão e ao "contágio" – daí a urgência de cuidar dos que cuidam, valorizá-los como heróis mas não exigir-lhes as habilidades dos quadrinhos, honrá-los sem lhes romantizar o sofrimento, aplaudi-los dedicados sem os querer perfeitos, gênios, mártires. Psicólogos e demais profissionais da saúde mental podem ser pontes e para-raios, mas facilitar a travessia não significa ter o poder de interromper a inundação, nem ajudar a direcionar forças implica a capacidade milagrosa de impedir o golpe.

Pelejadores armados de ciência e escuta, harmonizadores de gente, moderadores de autodiálogos, monitores de autoaceitações: mil parabéns pelo aniversário brasileiro; cuidem-se firme para seguir firmes. Sem seus ouvidos constantes e treinados, milhões não encontrariam no dentro de si a melhor versão.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

É preciso

Água Garrafa Desejo - Foto gratuita no Pixabay

É preciso que o cesto de roupa suja seja esvaziado. É preciso que todos os animaizinhos de rua ou abrigo ganhem urgentes papais e mamães. É preciso que um pano úmido leve embora a alergia dos enfeites e móveis. É preciso que a não passagem de pano devolva a alegria aos injustiçados. É preciso que, em dias de chuva, os habitantes da Terra estejam universalmente em aconchego; que, nos momentos de sol, a roupa seque lá fora ganhando cheiro de verão; que o aspirador asseie os rodapés da sala, que meditação e sono e leitura limpem os cantinhos do pensamento, que o real se revalorize, que a covid se interrompa, que o você-sabe-com-quem-está-falandismo se exploda, que a cultura do estupro se dissolva. É preciso que os ácaros, os áscaris, os fanáticos, os lunáticos, os parasitas de gente, os assassinos do ambiente, os que apertam a corrente se retirem como é devido e vivam em outra galáxia por todos os séculos, amém.

É preciso que os filmes do NOW sejam gratuitos, uma vez que a NET já é paga; é preciso que todas as cidades se cubram de ciclovias; é preciso que todas as máscaras cubram o nariz; é preciso que o império do ferro de passar acabe aqui e agora; que os cinemas (quando voltarem, num mundo descoronado e seguro) percam a mania dos dublados; que as mensagens faiscantes de bom dia saiam de qualquer mídia com as mãos para o alto, em nome da lei; que as tirinhas da Mafalda e do Armandinho virem patrimônio da humanidade; que os povos indígenas recebam o amor e os cuidados zelosos, atentos, quentinhos contra todos os horrores que os ameaçam; que as famílias dos profissionais de saúde se vejam plenamente amparadas, à altura dos riscos corridos por seus amados em tempo integral; que os preconceitos sejam amplamente caracterizados como as CAFONICES que de fato são; que os livros permaneçam não só intaxados como barateados de acesso. É preciso que Trump desabe, que toda a extrema-direita o acompanhe, que as penas de morte e as pulsões de destruição se revoguem. Todas. Forever.

É preciso lavar as mãos como se houvesse um infinito de amanhãs; é preciso distribuir renda, assumir a relação, mimar o parceiro, educar o filho, consumir legumes, adotar árvores, folgar sem culpa, passear sem mapa, escutar piano, beber água, beber água, beber água, almoçar na varanda (ou na laje, ou no terraço, ou no quintal, ou à beirinha da janela); é preciso impulsionar talentos, entusiasmar vocações, vocacionar entusiasmos, apoiar livrarias, divulgar microempreendedores, valorizar mulheres, promover e encorajar mulheres. É preciso ouvir crianças, proteger crianças, velar pelos que se desvelam por crianças, ler poemas, circular em museus, dar chance a novos sabores, dar chance a novos cantores, conhecer temperos, fazer mais sábados, fazer menos selfies, combater ardente e furiosa e aguerridamente a homofobia, o machismo, o racismo. É preciso rir sem ser de tudo, tonificar o coração mais que os outros músculos, estourar qualquer bola que role no campo do absurdo. É preciso teimar, militar, intransigir, embirrar, pelejar, matraquear pelo bem, como se houvesse um infinito de amanhãs.

É preciso fazer com que haja.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

O que não quer calar

Mic, Microfone, Passagem De Som, Cantar, Executar

Nossa boca está cheia sim – de gritos ainda insuficientemente gritados, de revoltas estocadas –, e na porrada ninguém vai enchê-la não, Vossa Truculência. É verdade que nossa impotência de agora parece imensa e às vezes engana, às vezes arriamos em desânimo, falamos em desistir, mas é da boca para fora: da boca para dentro nos sabemos repletos de combustível, ou assim nos descobrimos quando uma fagulha nos incita à combustão. Como assim "impotentes", se somos bocas e mais bocas e mais bocas repetindo aos milhardares a pergunta que NÃO VAI calar? se somos a defesa do formigueiro justamente aos milhões, aos ferrões; se ante ameaças imprevisivelmente raivosas temos a prerrogativa de um cair de boca coletivo; se qualquer fim da picada pode bem ser o início das nossas – teimosas, múltiplas, doloridas? se (querendo) somos um enxame, uma matilha, um estouro de manada, um gigante disseminado em peças de gigante pela própria natureza?

Não, Vossa Indecência, sua boca é suja mas é uma – a nossa pode ser una, se devidamente atiçada por quem não pode contê-la. Mesmo a corrente que se alastra à boca pequena nos WhatsApps não pode deter a torrente que facilmente a engole, quando tsunamizada de fúria humana verdadeira, não mecanizada, não robótica. Androides repetem com obediência programada, são bonequinhos ventriloquados pela mão que balança o dinheiro, porém não votam, não se inflamam contra quem sugeriu que seus parentes mortos por covid são bundões, não quebram tudo nas ruas em protestos que a pandemia tem contido, mas que a raiva engasgada está a um isto-aqui de liberar. Androides não enchem as ruas de bocas; colocam-nas na rede enquanto as botamos no trombone. Fake news se espraiam num rastilho de pólvora? verdades também; estas, no entanto, resistem ao tempo, ao clima, à checagem, e se fazem usualmente menos estrondo têm muito mais público em compensação: 70%, ao menos. Tudo bem que o ponto de ebulição nestas plagas demora, demora; a explosão custa; mas depois de excessivos acúmulos acontece em sua glória, e há de ocorrer – senão num barulhão uníssono, certamente num pipocar contínuo de vozes que perguntam perguntam perguntam perguntam até o atordoamento. Se algumas se calarem ou forem caladas, é bíblico: as pedras gritarão.

Seu rebanho mecânico só muge autorizado, Vossa Violência, porém no boca a boca vencemos, na razão nos impomos; os fatos não cedem a punhos cerrados, não se desfazem com berros, não se transfiguram com ameaças. Não há peneira que chegue no universo para tapar todo o sol que anda vazando em extratos, vídeos, áudios. Não há seita nacional que baste para consertar a imagem do Brasil num mundo que já não o aceita, que o respeitou há poucos anos, mas que agora recua horrorizado diante da burrice, do preconceito, da destruição, da insanidade, e que (mais rápido que nós) responderá em forma de abandono político e prejuízo econômico. Não há mais espaço neste planeta para cala-boquismo, anticientificismo, absolutismo, censura, tortura, espírito de chibata; se não estão erradicados de fato, já o estão moralmente, e é de se esperar que as urnas americanas protestem loud and clear contra essa mentalidade idiota demais até para os padrões dos EUA. Cala a Boca já morreu, Vossa Decadência; quem manda aqui somos nós. 

Falando nisso: por que sua esposa Michelle recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Sem querer querendo

Inspiração Motivação Vida - Foto gratuita no Pixabay

Uma constante em entrevistas com escritores e demais fabricantes de histórias – incluo nisso os cineastas, músicos, pintores, escultores, desenhistas, porque verbal ou não verbalmente é tudo uma história de dentro, ou não? – é a pergunta a respeito das inspirações. De onde vem a inspiração, de onde vêm as ideias?, querem sempre checar os jornalistas. O natural quase combinado é que se responda: vêm de toda parte, de uma conversa ouvida, de uma matéria a que se assiste no JN, de uma notícia que pipoca no UOL, de um caso familiar, de um filme, de um livro, de um transeunte na vizinhança; e é tudo absolutamente verdade. Mas nem sempre as ideias chegam assim súbitas e românticas, como aquele cão fofíssimo que, outro dia, adentrou o carro que um casal deixou aberto e foi adotado. Grande parte das vezes, deve-se ir de propósito à fonte para adotar uma ideia, tal qualzinho se vai a um abrigo de cães e gatos fofíssimos para já sair de lá com um amigo nos braços. Ideias, feito espécimes raros, operam uns 30% no acaso e uns gordos 70% na teimosia da busca.

A busca teimosa nada mais é que um estudo mais ou menos ordenado do mundo, mais ou menos organizado, mas continuante sempre. Tipo: pegar Drummond sem método ou caminho específicos, pegá-lo consistentemente anyway, e beber e beber e beber dos versos até que estejam suficientes para fermentar em algo novo. Tipo, também, escarafunchar sites de reportagem e cultura mesmo sem necessidade determinante, mesmo sem uma dúvida particular, mesmo até sem curiosidade voltada para os diversos assuntos, e apenas com o compromisso consciente de se embrenhar no que é humano para se oferecer a uma possível paixão mental. Ou assistir a produções cinematográficas de várias vibes, várias épocas, ainda que por mera "obrigação" de conferi-las para que a cabeça se higienize convenientemente. Não é de sacrifício que se trata, mas de procura, de práticas decididas (e não passivamente preguiçosas) de oxigenação cerebral; de práticas de insistência em pegar estradas não favoritas por gosto e facilidade, porém de potencial imenso. Com ideias nem sempre se esbarra na fila do banco ou na padaria: podem cair sim em nosso colo, mas é bem provável que careçam do empurrãozinho de um Tinder.

Não é raro, assim, que artistas se frequentem para apresentar-se estímulos mútuos – uma verdadeira feira de puppy ou big ideias da qual é difícil que cada um não saia com um filhotinho de projeto debaixo do braço. É saudável, é vital para a criação que haja conversa, troca, leitura em muitos níveis; que haja o hábito de visitar inspirações residentes em bibliotecas e museus, a fim de uma consultoria de possibilidades, formas, olhares; que haja não um adestramento – que parece mecânico –, mas de qualquer forma que haja um educar da visão para o belo, o refrescante, o criativo, o impensado que mora nas coisas pensadas. Mesmo a inspiração aparentemente facinha costuma sorrir, porém só excepcionalmente assobia, e tende a dar mole apenas para quem já estava olhando. Ideia é troço que gosta de ser seduzido também quando se fantasia de espontâneo; para termos o privilégio de ser abordados por ela, precisamos desde antes estar caminhando com decisão e vontade de amor em sua direção. 

Como o esperto cãozito que escolheu seus novos papai e mamãe, ideias nos adotam quando lhes deixamos o convite das atenções e portas abertas.

domingo, 23 de agosto de 2020

Formigueiros

 África, Formigueiro Gigante, Incomum, Reino Unido
Diz que, no fim da década de 1990, a executiva americana Joan Murray decidiu arriscar um salto em queda livre a 4,5 mil metros de altura; só que o paraquedas principal não abriu, e o reserva não o fez direitinhamente, já que a saltadora estava muito perto do chão e se debateu em pânico. Mas Joan não morreu – e arrumou a maneira mais inusitada de não morrer: aterrissando (involuntariamente, é claro) sobre a morada de cerca de 250 mil formigas-lava-pés naaaada simpáticas à destruição de sua casinha. É verdade que, além de ter ferido seriamente a parte direita do corpo, a americana já havia levado mais de duzentas picadas quando os socorristas chegaram, o que seria fatal se ela fosse alérgica aos insetos. Felizmente não era, e o ataque – que podia ter causado a morte que a queda não causou – acabou sendo exatamente a salvação da paraquedista, uma vez que provocou uma tal descarga de adrenalina que estimulou o coração e os demais órgãos a continuarem trabalhando. Joan ficou um par de semanas em coma, recuperou-se e até voltou ao paraquedismo dois anos depois. 

Longe de mim posar aqui de animadora de velório; tenho horror àqueles jatos de positividade tóxica borrifados desempaticamente na cara de quem está sofrendo, como se fosse possível, por exemplo, que alguém conseguisse enxergar vantagem numa doença, morte, perda em geral, especialmente nos primeiros momentos após essa perda. É cruel e ridículo. Não há "lado positivo" no meio da dor, assim como para Murray não havia chance de consolo ou celebração enquanto as lava-pés furibundas a devoravam viva. PORÉM a vida acontece, o enredo se desenrola com vários requintes independentes de nós, e a posteriori, depois do maior sofrimento e do coma emocional, estamos finalmente em estado de constatação: não foi bom, mas algo bom nasceu dos escombros. Não é que qualquer consequência favorável justifique o ocorrido e anule as péssimas lembranças, ou desautorize o luto vivido. Não anula; não desautoriza. Mas bem pode acontecer que ressignifique, que redimensione – que a continuação da narrativa enfim amarre as pontas e se consiga chegar a alguma espécie de paz.

Lembro-me de situação recente em que, tal qual no caso da paraquedista, algo em si mesmo terrível foi incrivelmente redimensionado pelo contexto: quando um paciente soropositivo desenvolveu leucemia e, após receber um transplante de medula destinado à cura desta última, acabou ficando também livre do HIV e se tornando uma das primeiras pessoas a eliminar totalmente o vírus. A leucemia foi, para o paciente em questão, o que as formigas insanas foram para Joan Murray: um acontecimento funesto que, por vias tortíssimas, levou ao conserto de outro. Reitero que casos tais não nos forçam a bendizer coisas ruins, mas ao menos segredam o recado de que, quando as nuvens se dissolverem, podemos vir a nos surpreender com alternativas antes invisíveis; podemos esbarrar com um caminho que se redesenhou despercebido, às vezes interiormente mesmo, ao sermos empurrados de uma perda para uma nova coragem. Há alguns dias escrevi sobre o quanto é debochado e perverso falar em "reinvenção" pessoal nesta era de crise, como se ainda se jogasse uma roupinha de fada ou unicórnio sobre o desespero da sobrevivência; entretanto, se é maquiavélico forçar a barra da recuperação com papinho coach, muito diferente é estar aberto a reconhecer o que foi encaminhado pelas circunstâncias e, simultaneamente, não desrespeitar a história escrita nem o sofrimento envolvido.

O ideal seria nunca, jamais passarmos pela queda ou pelo formigueiro – mas, na eventualidade de passarmos, é fundamental capturarmos toda serenidade que estiver ao alcance, nos agarrarmos a quaisquer exemplos que nos forneçam conforto, a quaisquer memórias (como a da paraquedista americana e a do paciente anônimo) que sirvam de precedente e boia. É, sim, um exercício de confiança quase cega num futuro que talvez só compreendamos quando há muito for passado; é um caminhar no nevoeiro, tateante; porém o coração precisa continuar batendo, mesmo na aflição, até por causa dela. Não pode parar, não agora. Certamente não parecerá assim, mas, havendo queda, é de fato melhor perceber a dor do formigueiro do que ser incapaz de percebê-la; dói porque estamos vivos, porque o sangue corre, porque o pulso pulsa, porque a alma reage, porque o que somos não quer se entregar a ser destruído. O que tem de ser, dizem, tem muita força – e eu diria diferentemente: o que somos tem muito mais força para transformar o que foi em tudo que será ainda.

sábado, 22 de agosto de 2020

Moro num país glacial

livre jaqueta com capuz papel de parede fotos | Piqsels

Nevou, o que por si só é uma festa para os fãs, e nevou no Brasil, o que é mais uma confirmação de que 2020 não se trata de um ano para amadores. Nevar exige um alinhamento de condições e planetas que rarissimamente atingimos, mas aí está o Sul todo nevadinho para quem quiser atender ao convite da irmã de Elsa e construir seu próprio Olaf dentro de nossas fronteiras. Não fosse a pandemia, talvez eu mesma estivesse, a estas horas, devidamente apresentada a esse fenômeno fofo e branquinho; entrava em nossos planos uma primeira viagem pela América do Sul, com provável visita de pelo menos um dia a alguma estação de inverno à moda Frozen. Porém o senhor corounaváirus chegou à Terra causando – e já nos damos por felicíssimos de ter apenas leves planos de viagem transtornados. Paciência, que a neve inteira do mundo não há de derreter de um ano para o outro. Acho.

Quase toda vez que se fala de neve, me vem à memória a definição que alguém (não lembro quem) deu do cisne Grace Kelly, e que li na biografia da princesatriz anos atrás: "um vulcão coberto de gelo". Sempre me soou tão colorida e expressiva essa imagem. Um vulcão coberto de gelo. No momento em que o livro me pôs em contato com a metáfora, há coisa de duas décadas, o Brasil era bem outro; complicadíssimo, sim, mas começando a caminhar para aquela que viria a ser sua melhor versão. Hoje que moramos na pior versão de todas, que em tão pouco tempo reunimos tantos horrores, não consigo não vincular a esta terrinha o oposto da definição cunhada para representar a atriz de Alta sociedade. O que era poético se aplicado a Grace – uma beleza só aparentemente fria, e na verdade intensa, apaixonada, transbordante pelos olhos – torna-se absolutamente trágico ao ser (in)vertido para o ponto de vista brasileiro. Nunca fomos nem seremos uma beleza "fria", de divindade esculpida em mármore; ao contrário, somos tidos e decantados como calorosos, espontâneos, abracentos, festivos, e podemos nos considerar tudo isso de fato. Por baixo dessa capa vulcânica, entretanto, parece haver uma geleira inderretível, inexpugnável, inatingível, cujo ponto de fusão será talvez o mais alto de qualquer escala ainda não inventada, já que NADA consegue nos abalar o suficiente. Encarnamos, de forma continental, o meme do cachorrinho de desenho animado que permanece satisfeito e imperturbável no meio de um ambiente em chamas.

E bota ambiente em chamas nisso. Amazônia, Pantanal, tudo queima no literal e no figurado, enquanto a turma que deveria se encarregar da proteção passa boiadas figuradas e literais. As obras de nossa Cinemateca, negligenciadas, estão a um passinho do incêndio definitivo. Outros tantos museus e bibliotecas também. Reformistas seriais sapateiam diariamente em nossas cabeças, fazendo fogueirinha de direitos trabalhistas e mantendo privilégios incompreensíveis, como os militares. Jovens da periferia continuam morrendo aos borbotões, a polícia continua abrindo fogo por engano. Queimam-se vagas nos ministérios oferecendo-se os postos, em geral, àqueles com a menor capacidade possível para assumi-los. Milhões e milhões de chances são incineradas à medida que se compram EPIs indevidos, que se propagandeiam remédios inúteis, que se reiteram os maus exemplos, que se patenteia a indiferença oficial. É evidente que não sob todos (ou já teríamos virado uma Arendelle sem o ato de amor verdadeiro), mas ao menos sob uma parte alarmante desta terra se alastra essa raiz glacial de indiferença: descasos ativos e propositais de uns, congelamentos emocionais de outros. Como no reino de Elsa, do centro de governo parece lufar um vento ártico que tudo paralisa e mata – com a distinção fundamental de os fractais vindos da rainha cobrirem tudo sem sua anuência, enquanto os "e daí?", "não sou coveiro", "é só uma gripezinha" cotidianos vão regelando o país inteiro deliberada e conscientemente.

Quanto falta para que nosso calor superficial derreta essa Sibéria que domina nosso núcleo? O que será necessário para que a revolta enfim perfure a crosta de aceitação, quiçá de medo? Que escrotidão inimaginável será a temperatura de fusão que nos tirará da hipnose, e que achacamento final nos porá irreversivelmente em temperatura de ebulição? Quisera saber. Quisera ver lava borbulhando neste território de neve interna e sol decorativo. Quisera as caminhadas americanas antirracismo, a paixão dos gilets jaunes (de qualquer protesto francês, aliás), a ebulição do Chile, a Revolução dos Cravos; quisera uma bomba de consciência política explodindo nosso iceberg; quisera um 2013 mais ardente, mais experiente, mais direcionado maçaricando nossa Antártica social. Fogo nos olhos, na vontade, no peito – não mais nas matas; não mais nas armas. Fogo, fogueira, combustão de mudança, línguas de liberdade atiçando as transformações, labaredas jovens em todas as idades. O calor que deveria distinguir-nos. O "sol do novo mundo" que cantamos com a mão no lado esquerdo d'alma.

Chega de let it be, chega de let it go. O frio deve MESMO nos incomodar.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Tá lá o corpo (escondido) no chão

Unwitting Casualty | The rain, a carnival; the umbrella, a d ...

É como tuitou o ator Paulo Vieira a respeito do caso Carrefour, em que um trabalhador sofreu um enfarte fulminante e permaneceu "escondido" por horas entre barraconas de praia, até que o corpo fosse removido do meio da loja e do expediente: "Se for pensar bem, são mais de 100 mil pessoas cobertas por guarda-sóis pra 'economia seguir'". 

Sim. São mais de 100 mil – em verdade, já mais de 112 mil – pessoas serialmente camufladas pelo "governo" debaixo dos mesmos números que deveriam escandalizar-nos; 112 mil histórias não aparentadas dos donos e deuses do mercado, no máximo conhecidas longínquas, no máximo funcionárias que eram praticamente da família, e por isso sujeitas à racionalização que se usa sisudamente com quem pertence de fato à família dos outros. 112 mil existências inteiras, com nomes, endereços, RGs, primeiros beijos, lembranças de viagens, reclamações por causa de tupperwares surrupiados, músicas que as levavam a aumentar o volume, camisas velhas que todos odiavam, receitas que grudaram na panela, abraços que grudavam nos filhos, fotos de réveillon, tradições de Natal, fobias de altura e barata, poemas copiados na agenda, lágrimas disfarçadas no cinema, sambinhas no pé, ideias na cabeça – 112 mil trajetórias feitas de tudo que os amados sabem e de tudo mais que nem saberemos nunca, universos completos, obras complexas, reduzidas pelos donos e deuses do mercado a pontos de um gráfico inconveniente que faz o comércio tropeçar.

São centenas de milhares de senhores Moisés que vivem guiando, orientando, possibilitando, abrindo mares, administrando perrengues, porém morrem sem entrar na terra prometida dos capitalistas, reservada para os same old integrantes do cercadinho VIP – aqueles que não podem perder quatro horas, duas semanas, cinco meses de lucro. São centenas de milhares de vítimas alimentadoras do Minotauro; não largadas num labirinto literal, mas enroladas num ciclo de auxílio emergencial que não sai, de ônibus que chega lotado, de metrô que chega lotado e sem janela abrível, de aplicativo de entrega que não dá direitos, de empregador que não fornece EPIs, de empresário que força para reabrir escola, barzinho, boate, academia. São centenas de milhares de médicos, enfermeiros, domésticas, atendentes, vendedores, entregadores, babás, motoristas sacrificados às conveniências dos gabinetes, vampirizados pelos dependentes de ar-condicionado, imolados nos templos da Economia, assim mesmo em maiúscula, esculpida em mármore. A Economia (com muito melhores assessores de marketing que a vida mesma) não pode parar, só pode pairar formosa e absoluta – sem baixar os olhos aos mortais, sem olhar para os lados, sem verificar de quem são os ossinhos que anda esmagando; uma potência a pleno vapor. Que chato que nós sejamos a lenha.

São 112 mil, caminhando para 113, para 200, para milhão. Não importa, não fechemos a porta, não podemos parar. Esconder corpos em nome da programação normal é ou não é especialidade da casa? Os índios há séculos genocidados, os africanos sepultados no mar durante o sequestro, seus descendentes recorrentemente encontrados por balas perdidas, os resistentes à ditadura suicidados nas prisões e misteriosamente dissolvidos no ar: desde sempre construímos um sólido, robusto currículo. O Brasil é um imenso serial killer com mais de 500 anos de experiência em ocultação de cadáver.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Achamentos mágicos

BoredPanda/Reprodução

Estou absurdamente apaixonada pela mensagem que a menininha Poppy deixou para os compradores do motorhome de sua família – com inglês e letrinha impecáveis, aliás, como se não bastasse o atravessamento de todos os níveis do fofurômetro: "Oi, meu nome é Poppy e eu tenho 10 anos. Este era nosso motorhome e a gente viajou metade da Austrália nele. Esta era a minha cama (a cama de cima) e ela era muito boa. Esta gaveta (onde vocês acharam a carta) é onde eu guardava todas as minhas coisas especiais, que eu não conseguia deixar para trás quando nós íamos viajar. Espero que vocês aproveitem bastante este motorhome. Eu estou na quinta série e sou muito boa com arte. Tenho uma mensagem para vocês: sigam seus sonhos e, se vocês tiverem de escolher entre estarem certos ou serem gentis, escolham ser gentis. Aproveitem este motorhome". (Usei aqui, como base, a tradução publicada no site Megacurioso, com algumas adaptações minusculinhas.)

Para mim é fascinante a ideia de uma minicasita temporária sobre rodas – embora eu não tivesse coragem de arriscar algo assim no Brasil, por motivos infelizmente adivinháveis –, mas não hesito em considerar duas vezes mais fascinante esse tipo de esbarrão delicado com o universo de alguém, com a trilha de migalhas de pão que vai dar numa história, numa realidade pessoal, numa subjetividade em flor. O mais provável é que eu (sendo a destinatária) emoldurasse a carta fofíssima e procurasse manter contato com sua pequena remetente, enviando-lhe fotos atualizadas e felizes das viagens do trailer que lhe foi tão querido: um mínimo agradecimento pelo "testamento" generoso, pela transferência de posse tão feita de entrega e coração. Há um encanto possante nesses laços do acaso, nessa convergência de biografias costuradas por uma herança simbólica – e não é de hoje que sou louca por mensagens na garrafa e afetos que brotam do improvável; com idade ainda inferior à de Poppy, eu às vezes lançava bonequinhas de papel em lugares públicos, para que vivessem suas próprias aventuras e conhecessem alguéns; tive pen pals na infância e adolescência; já adulta, participei de uma ação em que se perdiam livros destinados a encontrar novos donos. Fora a paixão eterna por topar com diários (perdidos, claro; jamais sugeriria que se invadisse algum), com cartas antigas, com fotos e livros assinalados por datas, anotações e dedicatórias, com todas essas emanações de outros seres, outras vivências. Apesar de introspectiva e refratária a muita intimidade presencial, a muitas exigências em tempo real, sou amante fixa dos achamentos mágicos, escritos, desenhados, lentos; dos enredos que enredam amigos puxando um fiozinho do coração de lá, outro fiozinho do coração de cá, inusitada mas pacientemente. Daí o adorar brechós, sebos, feiras de antiguidades e todos esses redutos de tesouros que já chegam narrativos, impregnados de outrem.

Mesmo o meu filme mais acarinhado, O fabuloso destino de Amélie Poulain, é uma denúncia da sede de elos históricos que me habita. Quem já assistiu sabe que a protagonista engata sua "jornada do bem" após descobrir, escondidinha em seu apê, uma caixita cheia de coisas especiais de criança – brinquedos e memórias de menino –, e especialmente após se comover observando a emoção do dono (já um homem de meia-idade) ao recebê-la de volta. O amor também aparece para Amélie em forma de devolução de um tesouro, uma vez que ela se torna achadora e guardiã do álbum de recortes que pertence a seu futuro boy. Era doçura de mais para que eu não casasse de véu e grinalda com essa história formada de histórias que andam de braços dados – não em núcleos semi-independentes, como num Crash ou num Babel da vida (que nos próprios títulos indicam desacerto e colisão), e sim numa harmonia fabulosa ou de fábula. Convenhamos: viver em puro registro babélico nos estraçalha. Carecemos de motorhomes com asinhas mentais e gavetas corretamente abastecidas de fofura; carecemos de tempos só-buscas, só-encontros, sem esse tanto de embates, de capotamentos, de choques. É preciso um retiro. É preciso um respiro para lidar com o humano suavemente, para fazer-nos encontrados e encontráveis. É preciso um reestruturar que nos torne casas sobre rodas, refúgios ambulantes, guardadores potenciais uns dos outros, outros dos uns, irmanados apenas por viagens e demais experiências felizes.

E é preciso, é urgente, é fundamental, é desesperadamente PRA ONTEM um reestruturar que torne bilhetes fofos deixados em motorhomes o único tipo de notícia possível sobre menininhas de dez anos.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Brinquedo de fazer ver

 Câmera, câmera digital, câmera dslr, grapher, grafia, mãos ...

Se não me faltasse a energia dos estudos contínuos, certamente a fotografia e a psicologia estariam em meu radar, e por motivos parecidos – talvez os mesmos que me levam a ser bicho de literatura: a curiosidade do instante, a captura do olhar humano, o amor por histórias. Mas me falta a energia dos estudos contínuos; não vejo modo de (hoje, ao menos) acrescentar caminhos profissionais aos já conhecidos, e, como já conhecidos, acolchoados. Deixo a foto e a psico agendadas para o quem-sabe-um-dia. Porém não deixo de registrar minha ternura pelas duas mocinhas, entre as quais uma está de aniversário: 19 de agosto é o Dia Mundial da Fotografia. A data marca a apresentação oficial (em 1839, na França) do daguerreótipo, primeiro processo fotográfico comercializável neste vasto mundo – nada mais coerente, aliás, que nascesse francês esse pequeno louvor à beleza, mesmo à beleza terrível das coisas tristes. 

É da superfotógrafa americana Dorothea Lange, que documentou impressionantemente o período da Grande Depressão, uma das frases mais intensas e caudalosas sobre essa arte: "A câmera é um instrumento que ensina a gente a ver sem câmera". Me admira que todos os profissionais do ramo não tatuem uma tal definição no braço, na perna, no peito, de pura lindeza. Infelizmente não sou fotógrafa, mas de fato desconfio que não haja melhor resumo; a câmera existe para educar os olhos, para acostumá-los a saber que estão acostumados demais ao trivial, para chocá-los com a revelação do quanto não veem, para ajudá-los a assustar-se de novo. A câmera existe para nos jogar na cara tudo que já estava lá sem a moldura, todos os olhares que já eram profundos e intrigantes antes de serem flagrados, todas as joaninhas e demais criaturas de fada que já existiam antes de serem ampliadas, todas as paisagens que já se entregavam amorosamente a nós antes de serem apreendidas. Claro, não são os mesmos olhares, paisagens e joaninhas os que vivem fora da câmera e os que vivem dentro dela; a tecnologia e (principalmente) a perícia do fotógrafo modificam, recolorem, reiluminam, enquadram, selecionam, transformam o objeto de além da lente, e a obra final nunca será o modelo que enxergamos. Porém a câmera não pretende nos fazer prever obras, e sim nos apontar possibilidades, à moda saramaguiana: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara". 

Repara: há potencial colorido e geométrico no vagão de metrô; há uma beleza estranha desenhada pelos veios da madeira da porta; há uma luz dois minutos mais interessante e outra cinco horas mais misteriosa; há poesia de malha rodoviária nos sulcos de um rosto, ou poesia de artérias na malha rodoviária; há soturnidade ou aconchego se são trabalhados em p&b ou em vermelho os tijolinhos de uma casa; há uma doçura de rasgar corações na florzita microscópica que brota (sozinha como enfeite) nos rejuntes de um túmulo; há contradições entre olhares e sorrisos que se tornam mais visíveis quando congeladas; há um reconforto de fome saciada nos escritos de giz à porta dos bares; há romantismo de século XIX em curvas de prédios que sempre pertenceram à rotina; há oceanos de dores impercebidas na expressão de mães, pais, médicos, professores; há sombras que, em determinado horário, brincam de sacanear seus sombreadores; há ângulos de luar que só se revelam para quem os espera às três da manhã na cozinha; há dedicatórias manuscritas que ficam mais lancinantes se a luz sublinha a força com que a caneta se declarou ao papel. Há variedades, inumeridades de pistas que levam ao fantástico, piscadas que são um flerte do mundo com o fabuloso, e que nossa pressa, nossa desatenção, nossa (des)acuidade visual atropelam – mas que as câmeras gritam, como boas detetives e boas desbravadoras.

Repara: câmeras são o luminol que denuncia de onde escorre o sangue da terra. São a placa de direção que nos avisa o que esperar do adiante. São o mensageiro dos ventos que dança ao ser beijiscado pela alma do quanto existe. São o faro que caça qualquer mínima abertura de portal.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Uma porção de buracos amarrados com barbante

 deco, decoração, decorativo, Rede de pesca, cinto de salvação ...

Essa do título é a definição genial de um dos pequenos pacientes de Pedro Bloch para a palavra "rede". A criança em questão naturalmente se referia à rede tecida, à de pesca, por exemplo; porém, se por acaso estivesse aludindo à rede internáutica que ora nos une, continuaria certíssima em toda a sua filosofia. Que somos bem isto, afinal: uma enorme família de buracos emocionais que existem e se sustentam com base em todas as conexões trocadas, ou, sob outro ângulo, buracos cuja existência só se distingue em contraste com tudo que nos é comum. Por mais que nos enlacemos das maneiras mais variadas, o vácuo individual, numa rede, sempre haverá – e se deixar de haver é porque as relações saíram do formato de rede e se fecharam num véu coeso. Mas o que temos por enquanto é mesmo a rede, e o que somos por enquanto é mesmo uma porção de ausências reunidas por inúmeros fiapos de presença.

Cada um de nós é um agrupamento de faltas. Cada um de nós é um acúmulo ambulante de grandes e pequenos traumas. Foi o amor paterno ou materno que não nos bastou (ou que transbordou, paralisante, asfixiante), foi a vida familiar com amor bastante mas sem apoio intelectual, foi a solidão de filho único, foi a solidão de filho entre filhos, foi o desconforto na turma de escola, o pavor do bullying, o desconjuntamento na Educação Física, a criatividade incompreendida, o talento desestimulado, a vergonha acadêmica ou corporal, o vício e a violência poluindo a rotina, a orientação sexual não acolhida, a paixão ignorada ou zombada, a fobia esquisita que atraiu deboche. São vazios que não obrigatoriamente nos definirão – o objetivo é amadurecermos e nos retrabalharmos o suficiente para que nunca nos definam –, mas que forçosamente nos constituem. Pelas malhas dessa imensa web sem a qual já não vivemos, parece-nos de repente que todos os vazios se tangenciam, embora não se anulem; parecemos não raramente nos descobrir irmãos do mesmo fio, efeitos da mesma trama, o que pode potencializar loucuras que venham a se esbarrar, porém pode também potencializar as curas. 

Quase nos enxergo como os pequenos protagonistas do filme It, os autodenominados Otários, todos com sua história disfuncional: o menino superprotegido e hipocondríaco, o que precisa lidar com a gagueira e a culpa pela perda do irmão, a menina perseguida pela "má fama" e o assédio do pai e daí por diante. Todos solitários no mais íntimo, todos perdedores em algum aspecto, que acham no entrelaçar de suas eficiências algo muito superior a suas respectivas fragilidades – fragilidades que não deixam de existir, mas às quais os jovens heróis conseguem sobreviver operando em rede. Há poucas manifestações tão exemplares de uma porção de buracos amarrados com barbante, de uma corrente rija costurada de fraquezas. Não temos um palhaço assassino em nossa cola (apesar de eu não me opor a que o Coringa fique na minha, mas isso já é outra história); ainda assim, temos um mundo exterior bastante faminto de nossas presas interiores, e só um enredo coesíssimo de palavras, presenças, olhos, braços, exemplos é capaz de preparar armadilhas seguras contra os predadores que passeiam no entorno.

Veias, artérias, brônquios, sinapses – nossos (lindamente tecidos) corpos avisam de nascença: somos feitos de redes. Somos construídos de laços. Nenhum homem é ilha, todo homem é malha; e todo homem é fio da meada universal que ninguém desembaraça sem ajustar todos os percursos.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Os normais

 esgotamento, cláusula, inundar, fluxo, dor de cabeça, lei, lacunas ...

Sei que não sou só eu, porque vários amigos já manifestaram sua exasperação com as expressões que têm dado mais que chuchu na serra: "reinventar-se" e "novo normal". Tudo bem que os tempos são de readaptação e de alguma necessária resignação às contingências, mas não é motivo para a gente, exausto, se encostar no clichê e andar tão agarrado a essas almofadas linguísticas que chegam a virar mantras ou panaceias. São termos de potencial até poético que, no entanto, acabam romerobrittizados de tanta repetição, de tanta exposição, de tanta amofinação na mídia, no home office, no Face, no barzinho (embora NÃO DEVA haver barzinho no momento, mas foi metonímia, vocês entenderam). Sacam o processo de romerobrittização? A coisa começa legal, puxa, que diferente – e de repente a coisa se espalha, a coisa domina o mundo, e martela e sufoca a ponto de não se poder mais ouvi-la/vê-la sem crises de irritação e cafonice diabética. 

Cecília dizia que a vida, a vida, a vida só é possível reinventada, e tinha toda a razão, óbvio. Tinha toda a razão porque nem de leve queria impor a ideia de sermos forçados, vergados pela realidade em nome de uma sobrevivência mínima; pelo contrário: de sua altura de poeta, sabia o quanto é fundamental que a ficção (a arte em geral) nos resgate da realidade e a torne cabível, praticável, respirável. Só que não é dessa reinvenção com altos níveis de sustentabilidade emocional que nosso amiguinho clichê anda falando, mas sim daqueloutra, a que nos força e verga. Para o sistema no qual vivemos e do qual somos reféns, nós, os reféns e peões já normalmente vampirizados, é que devemos nos retorcer inteiros a fim de continuar o fornecimento de sangue a nossos senhores – que, coitadinhos, não podem se mexer muito para nos facilitar o serviço, sob pena de abrirem falência e se dissolverem no ar. Nós que nos viremos para amamentá-los; nós que mudemos de ramo para nos recuperar da demissão; nós que administremos as demandas dos filhos enquanto nos equilibramos nas nossas; nós que nos curvemos a plataformas educativas de grandes empresas, às vezes não muito fáceis de manejar e ainda mais dificultadas pela internet porca fornecida por outras grandes empresas; nós que vendamos o carro e encaremos o ônibus abarrotadíssímo, mais abarrotadíssimo ainda com o misterioso sumiço de várias linhas; nós que compremos do nosso bolsinho todos os apetrechos para incrementar as lives do trabalho; nós que paguemos do nosso bolsinho a luz, a água, a internet gastas durante o expediente remoto, quando outrora o chefe as pagava no expediente presencial. Eis aí: reinventar-se. Esse jeito escroque de romantizar o esgotamento de tantos, de gourmetizar a insônia e a dor de cabeça de quem não tem alternativas para garantir o almoço e o aluguel. Realmente lamentável que ainda não tenhamos conseguido nos reinventar o suficiente para proceder à fotossíntese – mas quem sabe um decreto do governo não nos dê essa oportunidade um dia?

Novo normal: outra maneira meio cinicamente dramática, meio cinicamente fofinha de assegurar que sim, vamos continuar aceitando nos reinventar regularmente. Primeiro nos reinventamos, depois nos novo-normalizamos. Excesso de desemprego? uso de cartão de crédito quase compulsório? invasão do trabalho à privacidade, do profissional ao doméstico? É assim mesmo, é o novo normal. Chegue cá, vou falar no canto do ouvido: novo normal é uma PITOMBA. Em primeiro lugar, não é porque uma coisa é comum que ela se torna necessariamente normal; assaltos, por exemplo, são comuns até demais aqui na terrinha do Rio de Janeiro, porém vamos combinar que normais não são. Algo negativo para nossa vivência nunca pode vir a ser considerado normal. Vá que seja uma contingência, um aborrecimento temporário, um contratempo, um incidente, um desvio de rota, mas não se fale aqui de normalidade. Como se pode conceber "normalidade" em meio a uma pandemia que acontece de século em século, Jesus amado? Em segundo lugar, as coisas realmente corretas que temos aprendido a fazer – tirar os sapatos ao entrar em casa, lavar as mãos minuciosamente, não levá-las ao nariz/olho/boca sem as desinfetarmos, não espirrar/tossir/falar em cima de objetos de uso público ou pessoas –, sabem essas coisinhas? Pois é, já deveríamos fazê-las há muito tempo, o que as configura simplesmente como normais. São normais por serem higiênicas e recomendáveis sempre, não somente agora. Temos, em suma, dois grupos básicos de situações: as desagradabilidades que a pandemia trouxe e, esperamos, irão embora junto com ela (reforce-se que chatices como o isolamento social SÓ PODEM ir embora junto com ela e após a imunização geral, já que todas as tentativas de flexibilização da quarentena só facilitaram o espalhamento do vírus maldito; paciência, gente!) e as necessidades em que a pandemia lançou holofotes, mas que na verdade sempre existiram. Temos as contingências e temos o normal. O normal, só. Ou o que deveria sê-lo.

Por enquanto fazemos o possível, o possível INTEIRO, tudão que nos cabe e sem desculpas: usamos máscara em qualquer interação com alguém que não more conosco – e às vezes com alguém que more, se houver grupo de risco envolvido –, mantemo-nos guardadinhos em casa o máááááximo de tempo, adaptamos o serviço a nossas capacidades emocionais e tecnológicas, procuramos atividades físicas que não peçam academia nem ar livre. Sim, faço tudo isso e continuarei fazendo, não sendo mais que minha obrigação. Apenas não me venham com reinvenções pintadas de unicórnio, esses termos de coach que são um escárnio, um deboche sapateando sobre o estresse e o desespero de muitos. A vida, a vida, a vida precisa ser reinventada sim, mas com alívio, leveza, repouso, amor e arte; nós, os reféns, não precisamos de mais camadas de capitalismo pesando nos ombros, além das que já temos para dar conta.

domingo, 16 de agosto de 2020

Mar absoluto

 Lágrimas Foto stock gratuita - Public Domain Pictures

O Brasil anda cada dia mais demasiadamente chorável, chorável num ponto de asma, de sufocação. Saber que – após mais de 107 mil lutos derivados do total descaso e mesmo da política de promoção da morte  a avaliação positiva desse "governo" chegou a aumentar dá um tal desespero nas veias, coloca um tamanho cansaço na alma, que nem há mais por onde se soluce ou transborde. O ápice da necessidade do choro costuma ser exatamente onde ele resseca: a angústia é potente demais e queda transtornada, paralisada, olhando a esmo. Ainda tem calhado de o clima inteiro andar seco, seco, seco, as matas em incêndio, o ar causticante, pesado, desértico, sem uma umidade para consolar os pulmões.

Nessas horas não é que eu procure ou dê o play na televisão, mas pensar eu penso naquelas obras que nos arrancam à força dessa automação idiota – aquela arte nossa de cada dia, que consegue promover a catarse congelada pelo mundo real. Outro dia mesmo esbarrei com umas cenas de E.T., um dos desidratadores mais clássicos da história; não fiquei assistindo, porque já sabia no que iria dar, porém o simples contato de poucos minutos com a obra-prima de Spielberg já é suficiente para desempedernir a criatura mais talhada em mármore: a doçura gigante dos olhos gigantes do personagem-título, a infância e a amizade em estado de pureza bruta, o voo de bicicleta embalado pela lua e pelos acordes que todos conhecemos (se há imagem mais representativa do cinema, desconheço), a declaração de Elliott para o amigo que abre todas as nossas comportas e evoca todas as dores de todas as perdas. Coisa de ensopar um lençol. Outro que vi em criança e – pelo menos na época – me desandou em lágrimas foi Meu primeiro amor, aliás em situação bem parecida, já que também se trata de um pequeno coração confuso, solitário, que tanto se aproxima quanto precisa se despedir de outro ao qual se confiou. Lembro que a sala inteira terminou a sessão soluçando que era um desespero. 

Duvido, por sinal, que qualquer sapiens sem características de psicopatia não tenha se derramado igualmente no final de Marley e eu e (o que eu acho o "pior" de todos) Toy story 3 – em ambos os casos, não por um sofrimento inerente ao estado de desproteção emocional da infância, mas sim pela dor do fim de um processo, do fim de uma fase quando já se está na idade adulta ou caminhando para ela. De Toy story 3 eu cheguei mesmo a escrever na época (anteriormente ao nascimento do blog que vos fala), e recordo bem que fazer o texto foi tão choroso como assistir ao filme, no qual eu basicamente não podia pensar. Ainda hoje não conheço obra melhor para, havendo necessidade premente de desentupimento emocional, promover um expurgo. 

Mas as produções que considero mais amplas, mais interessantes em âmbito lacrimogêneo são Divertida mente e Viva – a vida é uma festa. Enquanto todas as demais citadas abordam de algum modo as despedidas, as perdas, as mudanças de fase, Divertida mente e Viva abordam as mudanças de fase sem que perdas e despedidas se concentrem num determinado ser; e, até ao contrário, sem que essas perdas não impliquem reconexões. O pulo do gato (ou do rato?) das duas animações é justamente complexificar nosso choro, uma vez que – tal qual na bolinha de memória acridoce de Riley, protagonista do primeiro desenho – o sentimento é multicor; o adeus a algo vem misturado com uniões novas, com resgates emocionais, com abraços mais apertados, com a ampliação de possibilidades. Duas das obras cinematográficas mais profundamente tocantes sem serem precisamente tristes: joias da psicologia humana, infantis apenas na aparência e na forma. 

Se estiver então precisando de uma ajudinha para abrir os diques, ficam as dicas. O país nos deixa sem humores – mas a ficção é plena de fontes bebíveis para nos dar águas que se desafoguem, antes que nos afoguemos em nós.