segunda-feira, 31 de maio de 2021

Exército fantasma


Saber que hoje o pintor e escultor norte-americano Ellsworth Kelly faria 98 anos me trouxe, em acréscimo, um episódio totalmente FABULOSO de que o artista participou em plena Segunda Guerra. No verão de 1944, desembarcou na França uma tropa dos EUA que ficou conhecida como The Ghost Army, o Exército Fantasma. Eram jovens recrutados não entre os mais fortõezões e os melhores atiradores, e sim entre alunos de faculdades de arte e funcionários de agências publicitárias; afinal, não iam para o campo de batalha abrir fogo contra os alemães – iam, deliciosamente, ENGANAR os alemães. Os cerca de 1.100 convocados executaram mais de 20 missões (nada seguras nem tranquilas, apesar do ponto de partida quase lúdico) na França, Bélgica, Luxemburgo e Alemanha, e usaram os recursos mais maravilhosos para engabelar os hitleretes: tanques de borracha inflável, efeitos sonoros, transmissões de rádio fake, voltas e mais voltas com homens em caminhões – a fim de parecer que uma verdadeira cabeçada de soldados estava chegando –, visitas a cafés franceses para cultivar fofocas adequadas entre os espiões que poderiam farejar o recinto. Literalmente um espetáculo (nenhuma surpresa quanto a isso, aliás; sabemos bem quão especialistas nossos irmãos do Norte são em soft power, razzle-dazzle, jogo de cena e fogos de artifício. Antes assim. Que feliz o mundo, se todas as armas americanas tivessem ever sido cenográficas!). A ilustração que pousei acima e que trouxe do Opera Mundi, onde também bebi a história fascinante do Exército Fantasma, é uma pintura do soldado Arthur Shilstone que retrata um dos momentos mais impagáveis dessa guerra artística: o espanto dos franceses desavisados diante de quatro jovens carregando um tanque brontossáurico, porém levinho. Certamente encantado de tirar uma com a cara de seus aliados na guerra, mas rivais culturais, um dos moços ianques só lhes explicou calmamente que "os americanos são muito fortes". Kiss on the shoulder.

Impossível não ficar fissurado nesse plot fantástico – que tinha de virar e virou documentário em 2013, produzido e dirigido por Rick Beyer –, até porque poucas coisas são mais divertidas do que ver nazistas sendo feitos de idiotas. E poucas coisas são mais reconfortantes do que conceber uma guerra brigada na inteligência apenas, no cambalacho, na malandragem, sem balas rolando e nada sangrando afora o orgulho (eu sei, eu sei, foi uma parte beeeem diminuta de uma guerra indescritivelmente HORRENDA, com gorda quantidade de horrendice devida aos States, como perfeitamente sabemos; mas me permitam esse desafogo imaginário). Na falta de um mundo em que o diálogo tenha potência para resolver as tretas, não podíamos, pelo menos no período de transição de 14 mil anos entre hoje e um tempo de gente civilizada, combinar umas solucionáticas ao estilo Ghost Army? Sem munições à exceção de malasartices, tudo na maciota, no máximo certas manipulaçõezitas básicas que não machucassem ninguém e, inclusive, se pusessem no caminho de desafetos propensos a esganarem uns aos outros.

Cônsules, embaixadores, diplomatas de países tretosos, por exemplo, que em vez de representarem seus respectivos governos decidissem acabar com a palhaçada e representar a paz: podiam sair todos para um café ou chope muito de boas e acertar, entre si apenas, os detalhes dum esquemão burocrático no qual os chefes de Estado acabassem assinando acordos fofíssimos de harmonia universal sem nem ler o bagulho – pronto, terminou, registra lá essa bagaça no cartório e anuncia pro mundo INTEIRO ao vivo, faz um escarcéu planetário em tempo real, duvido eles desmentirem a notícia e confessarem a própria trapalhada. "Ah, francamente, só daria certo uma vez e olhe lá, SE os governantes pudessem ser tão estúpidos." Claro que os governantes podem ser tão estúpidos, qualquer um pode, cidadãos pê-agá-dados em manipulação fazem funcionar até com um país todão de cabo a rabo – diversas vezes na História, conforme estamos tendo o desgosto de constatar. Enrolões das trevas que continuam circulando pelo mundo talvez fossem detidos por enrolões do bem, e talvez somente por eles: gente que tornasse o sinal de internet do gabinete do ódio inapto para carregar a menor figurinha, gente que amofinasse os grandes do Face e do Twitter até conseguir que TODOS os posts mentirosos e bélicos virassem automaticamente vídeos de catioríneo ou de cacatuas dançantes, gente que botasse em prática os disfarces do Missão: impossível tão perfeitamente que obtivesse a confissão de qualquer criminoso de guerra, gente que ensandecesse os caras de paixão a ponto de alcançar, querendo, até a extinção dos latifúndios no Brasil, assinada de vermelho e exibida nos telões da Times Square.

"Ââââin, credo, mas você mentiria como eles mentem?" O quê – para eles?? ÓBVIO. Ou alguém aí ficou com peninha dos nazistas ludibriados pelos americanos? Não havendo mortes, ferimentos, torturas, humilhações públicas ou algo do gênero, e tendo em vista distribuição de renda e justiça social, SUPERAPOIO uma ótima e velha mistificação, um ilusionismo esperto, um joguinho com perfis psicológicos de deixar o FBI e os algoritmos da rede salivando de inveja. Há que se honrar, muito e muito, a existência de muitos: tudo vale a pena se a vida do pobre ficar mais amena.

domingo, 30 de maio de 2021

Uma parte muito estranha de mim


Li um tweet bem de repentemente intrigante que confessava: "uma parte muito estranha de mim me diz pra eu fazer cinema". Não creio fazer cinema seja algo tão dizível por uma parte muito estranha – não tanto quanto, por exemplo, escrever um romance protagonizado por um ornitorrinco, cobrir a casa inteira de fita crepe, atravessar a nado e sem antibióticos a Baía de Guanabara –, mas enfim que sei eu da vida de quem tuitou essa estranheza? Pode ser alguém que tem há 46 anos um bem-sucedido consultório odontológico, ou uma criança de 11 que deveria estar preocupada apenas com o primeiro crush e as últimas tarefas do Google Classroom. Ou uma soldado que escreve seu diário em meio a uma zona de guerra. Ou um monge. Para muitos possíveis alguéns, "fazer cinema" é da ordem do impossível, do estapafúrdio e gratuito ao menos, e integra o processo de eu-heinização da vida. O que eu-heinizaria a vossa vida, amados – o que é que só aquele lado randômico da personalidade seria, gaiato, capaz de sugerir?

A mim, uma parte muito estranha já disse para cursar Artes Cênicas (relevem, eu tinha 13, 14 anos e amava folhear o Guia do estudante em busca de carreiras). Uma parte minha muito estranha disse para plantar um jasmineiro que tende para enorme numa varanda minúscula (não minúscula, mas excessivamente esbelta, digamos. E não, não plantei – ainda – nenhum jasmineiro). Uma parte muito estranha de mim já escolheu nomes de filhos que na verdade nunca pretendeu ter. Já passou horas de adolescência planejando abrir, na idade adulta, uma escola diferentona. Já passou outras horas de adolescência desenhando futuros vestidos de formatura, casamento etc. inspirados em trajes da Saori nos Cavaleiros do Zodíaco. Já assistiu a várias temporadas dO aprendiz e GOSTOU daquela bosta (aaaaaaaaaargh!, por sinal, com relação a todos os seus apresentadores). Já conviveu em boa amizade com pessoas que hoje, definitivamente: NÃO. Já detestou sopa e teve medo de montanha-russa. Já habitou all-day-longs sobre a bicicleta ergométrica, querendo o pior padrão da pior maneira. Talvez – embora sem nunca, nunca mais a resignação ao sacrifício – ainda queira.

Uma parte muito estranha de mim soooofre ao escutar quase qualquer música, pela propensão odienta de gravá-la tão a fundo que todo o fundamental silêncio interno se vai, já que o som inconvidado toca dia e noite, feito assombração, à sua revelia. Uma parte muito estranha de mim meio que acompanha a novela das sete, apesar de achá-la tenebrosa. Uma parte muito estranha de mim, mesmo firme em crer que existem abundâncias de caminhos felizes sem abundâncias de diplomas, sente culpas ocasionais de se haver afastado da universidade; mesmo avessa a dormir e sonhar, não quer levantar da cama; mesmo amicíssima de viagens, não fica 20 segundos mensais chateada por estar impedida de fazê-las; mesmo hostil a carnaval, acompanha e comenta detalhadamente os desfiles. Uma parte muito estranha de mim curte a Europa mais do que gostaria, ama francês mas se nega a fazer curso, detestaria ter de cuidar dum lugar enorme mas queria um castelo medieval, admira autores que não aprecia – uma coisa é a qualidade, mon amour, outra é a vontade literária –, sente saudades de algumas propagandas, tem preguiça de fazer aniversário porque a gente não se possui nessa data, não descarta pintar o apê inteiro em algum momento só para não ter de botar ninguém em casa (não, não é exclusividade dos tempos de pandemia), recusaria viajar no tempo a não ser que fosse para o futuro (essa minha parte mente, claramente; ela daria tudo para ir ao passado impedir os pais do genocida de se conhecerem, rolasse a borboletização histórica que rolasse). Uma parte muuuuuito estranha de mim não postou foto da vacina: timidez, além da AstraZeneca, fazendo efeito.

Uma parte de mim não tem jeito.

sábado, 29 de maio de 2021

Das materialidades do verbo


O fabuloso Gilbert Keith (ou G. K.) Chesterton, hoje completador de 147 anitos, era de uma fraseabilidade tão milionária que fica árduo, para um coração admirador, citá-lo uma vez só; sendo porém impossível derramar no texto tudo quanto o autor cristalizou de maravilhoso, deixo um resignado farelinho que seja: "A ideia que não procura converter-se em palavra é uma má ideia, e a palavra que não procura converter-se em ação é uma má palavra".

Isso resume livros, isso resume sistemas de pensamento inteiros. A portinha de ingresso para uma ideia no mundo é qual? – a palavra, claro, já que parece soberanamente complexo comunicar a outrem qualquer dado, dividir qualquer impressão, imprimir qualquer motivação, instaurar qualquer debate na base da telepatia, do olhar, da energia de sincronicidade ou de algo assim etéreo que o valha. É preciso verbalizar, falar, escrever, detalhar, destrinchar, discutir; a ideia carece sair da confusão primordial em que surge, lambuzada duma placenta feita de intuições, afetos e abstrações, para ser banhada e limpinha pelo verbo; só o verbo, meio cinzel e meio água, bota a ideia próxima do que nasceu para ser, esculpe-a mais perto do claro, do usável, do sólido. Se a ideia não se consegue transmissível, é inútil; se não se deseja transmissível, é potencialmente perigosa.

Mas é como disse o poeta: há também a ideia que atinge o estágio de palavra e daí não pretende se mover um milímetro, encantada com a facilidade de ser e obter, de seduzir e manipular investindo na arte de si mesma. É quando a lábia cínica, preguiçosa, o discursinho malandro pegam as rédeas do esforço em não fazer esforço algum, se especializam sambarilovemente em driblar o compromisso com a realidade incômoda; para que agir, se já tanto tempo é gasto arrudiando, convocando, descrevendo, floreando, exaltando, esmiuçando a ação? Não resisto a me lembrar do personagem de Leonardo DiCaprio em Prenda-me se for capaz, um fraudador inteligentíssimo e talentosíssimo, mas sobretudo uma fraude ambulante que se escorava no papel, na pavonice e no palavrório de ser piloto, médico, advogado e o que mais lhe viesse à telha, sem no entanto ser competente para um ato sequer que prestasse dentro da carreira simulada. Também no longa Grandes olhos (que sina a de Amy Adams, ficar se envolvendo com personagens salafrários e gargantões!) o pseudoartista vivido por Christoph Waltz jogava uma tonelada de letras e carismas na esposa, no mundo, para fantasiar de desculpas múltiplas a sua inabilidade de pincelar uma só telazinha. Ambos os filmes foram extraídos de fatos, o que ajuda a ilustrar quão diabolicamente fascinante sabe ser, na vida social, a palavra impostora e parasita – a palavra especialista em volteios e pole dances e razzle-dazzles em prol e em torno de si, a fim de amaciar de arco-íris sua egoistíssima inaptidão acerca dos outros.

Palavra é a coroa que metonimiza, concreta, a realeza da ideia abstrata; porém coroas apontam simplesmente – coroas não decidem, não governam, nada representam sozinhas para a função real ou o bem-estar súdito. Na palavra pode faiscar a confirmação burocrática da autoridade; mas é a ação que nunca perde a majestade.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

O meu país também


Completaria hoje quase redondos 99 anos o querido José Craveirinha, um dos poetas maiores de Moçambique – ou um dos moçambicanos maiores da Poesia, o que possivelmente se diria mais em conformidade com falas autobiográficas suas de 1977: "Talvez por causa do meu pai, [eu fui] encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. [...] Escrever poemas, o meu refúgio, o meu país também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse país, muitas vezes altas horas da noite". Nunca terei condições de dimensionar perfeitamente a relação de Craveirinha com seu chão físico, mas consigo compreender com inteirame d'alma essa outra espécie de pertencimento vivenciada pelo poeta, esse carimbo imaterial no passaporte, esse surto de nacionalidade alternativa que tende absolutamente para onde o coração viaja. A gente, eu sei, não é apenas fácil cidadão do lugar palpável em que nasce ou vive; a gente pertence ao que é e ama e escolhe, pertence a uma terra abstrata que engloba nossa lógica de operar e ser. Para uns, o supremo país é o outro; para outros, o trabalho, a carreira, a religião, a arte, a família, o alinhamento político, o time da vida (não pode ser à toa que algumas torcidas se denominem nações), o fandom de uma série, filme, banda. Seja o que seja que nos define e dá berço, ou seja mesmo uma reunião de vários elementos em fórmula única, vamos sempre além do meramente nascido; moramos no sido.

Até porque, depois que o Brasil se rasgou em dois assim mais às escâncaras, não vejo como poderia ser possível habitá-lo todo, abraçá-lo na totalidade geográfica que antes (bem antes) parecia óbvia. O Brasil nunca foi um, é fato, porém nunca deixou de ser um tão ostensiva e fraturadamente, a tal ponto que nem no sentido denotativo mais pé-no-chânico, nem naquele sentido registrado com letra de forma na certidão, consigo dizê-lo meu país; nem o Brasil concreto e federativo é todo meu. O meu é essa coisa oswaldiana, jobiniana, rosiana, buarqueana, caetana, antropófaga e criativa, meio atropelada mas leal a si, à sua alegria, à sua matreirice de João Grilo; o outro – uma distopia histérica, descolada do óbvio mais básico, nazifascista de estampar suásticas no braço, piscina, janela e sequer corar –, desse outro não vim e para esse outro não vou em nenhuma circunstância, sob nenhuma hipótese. Não lhe conheço as coordenadas, não lhe falo (ou bufo, urro, grunho) a língua, não o compreendo nem sou parente de quem quer que viva nele: se algum deliriomínion me apontar na rua e alegar ser conterrâneo, vou alegar em resposta (ou no que eu CREIO ser uma resposta ao que eu ACHO que ele disse) que mal reconheço três fonemas do dialeto odiês do baixo-Paleolítico no qual ele parece ser fluente. Essa camada de nação cabeludamente embolorada, mutante no pior sentido, azeda ao paladar e propícia para intoxicações é um tumor acoplado à realidade, ponto – enquanto não for extirpada, não há perspectivas viáveis para seu hospedeiro.

Se como sapiens já somos exilados naturais que vamos buscando nacionalidades num infinito de nuvens, como brasileiros estamos naquele exílio brabo de não conseguir dormir simultaneamente com os dois olhos, de tal forma nosso habitat teórico nos agride. Não é somente questão de desejarmos nos sentir realizados, almofadados o bastante: é questão de não sermos deglutidos. Ter um país no qual nos acomodar e nos projetar "altas horas da noite" virou tão mais essencial quanto mais empurrado para o abstrato, para o virtual, única alternativa de construirmos nosso mapa sem pisar em terra hostil e minada. Somos então nativos da literatura, da esquerda, do grupo militante no Face; nossa cidade é Twitter, Amazon Prime, livro, Messenger, Netflix; residimos entre estrofes e documentários, crônicas e séries, romances e sites, encontrando aí também os nossos, tão igualmente exilados. Família, referências, afetos, tudo andamos pondo em suspenso, em flutuância, como uma penhora ou consignação: quando a chuva passar, quando o tempo abrir, voltamos para resgatar as joias todas que nos pertenciam – que nos pertencem –, nosso capital imaterial, nossa bagagem desassossegada de amores.

Enquanto não cessa o dilúvio, nossa pátria é a arca.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Coisas que abraçam


Bolo assando. Bolo assado. Luz amarelada. Cafeteria muito adornadinha de madeira. Pós-guardação de compras que nos abasteceram. Manhãs sem horário. Tardes sem horário. Noites sem horário. Vésperas de dias sem horário. Cenários das novelas da Lícia Manzo (cheios de sol e flor, mire e veja). Tons de rosa e turquesa. Lençol recém-posto. Parede de tijolinho. Cordão de lampadinha. Flânerie individual ou em dupla. Sala superapetrechada de sofás. Crédito amigo depositado no VR. Atualização no saldo Repassa: mais uma pecinha vendeu, oba! Sopa de madrugada, com pãozito e livro. Remédio de cólica fazendo efeito. Remédio de enxaqueca fazendo efeito. Achocolatado. Pão na chapa. Biblioteca. Memória duma espécie de salpicãozinho, num couvert de restaurante da infância, que até hoje me abre o apetite. Retweet.

Assistir à TV de outro país no hotel, em momentos pós-passeio. Assistir ao Papo de segunda (TÃO queridões!). Pousar o pé, quando está formigando, num chão geladinho. Deitar com o alinhamento preciso da coluna. Sentar ante o computador sem tema determinado. Sentar ante o computador com um tema colorido. Terminar a correção. Ver a Dança no Domingão. Vestir blusa que valoriza sem marcar e amacia sem sobrar. Beber um bom chá preto. Botar baunilha no leite. Fechar as cortinas. Achar um casal da ficção pelo qual suspirar de torcida. Ouvir a música favorita na loja. Flagrar nossa mala fabulosa sobre a esteira do aeroporto, logo na primeira leva. Já estar com tudo arrumado. Sentir-se pós-banhado. Aguardar o feriado. Receber encomenda da Estante Virtual. Pôr-se à caça dos presentes de Natal. O filme ser legendado.

Creme bavarian. Caqui. Alho-poró. Shampoo do Boticário. Comfort para roupas de bebê. Livro com orelha que marca a página (oooora, não me amolem, a orelha é feita para issozinho mesmo). Feijão temperado que nem em pensão antiga. Biscoito amanteigado. Broinha de milho. Bolsa de água quente. Vick Vaporub. Ovo mexido. Canais cujo som está na justa medida e não nos enfarta de decibéis a cada comercial. Música que não se torna espírito obsessor quando fica na cabeça. Vídeos de catioros e seus bebês humanos crescendo juntos. Lencinho úmido. Álcool gel perfumado. Jardim com muita flor balofa e nenhuma ordem aparente. Torta salgada. Cômodos de formatos esquisitos. Mesas de restaurante com sofás. Casas tomadas de hera. Salas de cinema (cheirando mornamente a pipoca). Pipoca. Azeite. Mate com leite. Essência de hipermercado, feita de pão com sabão em pó. Mais alho-poró. Árvore de Natal gordalhuda de enfeite.

Dizer às coisas que nos foram fatais – que nunca mais.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Prodígios


Acabo de ler uma citação superfofa de Schopenhauer (ou ao menos atribuída a Schopenhauer, cujo nome não costuma exatamente frequentar as mesmas frases em que brota o termo superfofa): "Toda criança é, de certo modo, um gênio. E todo gênio é, de certo modo, uma criança". Não vejo por onde discordar. Se a característica fundamental do gênio é um cérebro escancarado para possibilidades, curioso de causas e consequências, observador apaixonado de fatos e efeitos, nada mais parecido com a cabecinha dum pequeno cidadão que recém-começou a ser humano e que ainda não foi desdeslumbrado, pelo hábito, com relação a todas as coisas tão frescamente novas. E se a característica fundamental da criança é sua inocente predisposição de esponja, sua eterna constatação de que há sempre constatações espantosas apesar e além de suas certezas, nada mais semelhante à permeabilidade duma mente adulta que não se sacia, que nunca termina de descobrir caminhos dentro dos caminhos descobertos e de se atirar obcecadamente em cada trilha, estrada, escada, alçapão que vai se abrindo. É fato que a criança o faz por quase instinto e com quase inconsciência: nasceu programada para aprender e fadada a fascinar-se, já que não tem repertório para chamar de seu. Isso não tira o mérito individual de sua sede, porém não impede, tampouco, que esta se contextualize como regra até que o verniz social e o costume de viver a vão sufocando, atenuando, desencorajando; já a sede das mentes geniais sobrevive perfeitamente ao fechamento do portal infantil – em pelo menos algum dos nichos de conhecimento, a vaidade e o cansaço não chegam a suplantá-la.

O gênio é a criança que sobreviveu, não como ausência de informação e de técnica, e sim como abundância de espaço e de fome. Pode inclusive ter todos os rompantes, todas as teimosias e impaciências duma criança no perseguir obsessivo de seus gols particulares (e não passo pano para isso: se criaturas pirralhas mal-educadinhas precisam ser devidamente enquadradas, quanto mais gênios malcriados!, em torno dos quais continuam existindo outras respeitabilíssimas vidas adultas que não-me-re-cem ter de lidar com ataques marmanjos de prima-donnice). Pode igualmente, para bênção de seus convivas, ser dotado de um caráter docinho e comedido na aparência; mas o que não pode e não há de ser é comedido na essência de seus impulsos buscadores, insones de desejos e elucubrações específicas. Gênios serão qualquer coisa na condição de adultos, menos adultos sossegados – por dentro. Por dentro vão permanecer na imurchável, imarcescível hiperatividade dos neurônios, que engatinharão com a mesma fúria das pequenas mãos, pernas, olhos debutantes de mundo; vão enfiar os dedinhos em muitas tomadas acadêmicas e emocionais, vão contar a si mesmos again and again a história de suas obsessões, vão ser ocasionalmente temerários na tentativa de engolir o que não foi feito para ser engolido, ou digerir o que não se espera digerido. Vão eventualmente suspender a fome física de tão devorados pela outra, seja qual for a outra – química, filosofia, astronomia, literatura, música, física, pintura, cinema, medicina –, e viver volta e meia suspensos e possuídos por sua brincadeira de estimação, que não raro é a mesma responsável pelos ossos partidos e joelhos ralados.

Gênios são capazes de residir na hipnose de suas cismas, no atordoamento feliz de suas hipóteses, porém nem um pouco semelhantemente aos tontos que são escravos da piração alheia. Gênios se enamoram das porções da verdade que conseguem adivinhar, não criam compromisso com mentiras, não se consideram com tempo suficiente a ser desperdiçado no que não se reverte em beleza e em lógica. Gênios absorvem AND geram conteúdo em escalas industriais, nem que desejassem estariam em condições de sentar com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar; deprimem-se, claro, circulam completamente suscetíveis à série de males físicos e emocionais que acometem todos os outros (provavelmente, ainda mais suscetíveis), e no entanto nem por nada conseguem interromper a inquietude, conseguem se privar da inquietude que os caracteriza. Sendo insaciáveis de planeta – e de além-planeta –, fatalmente ou o devoram, ou são devorados por ele.

Querem ou precisam exaurir-se de brincar mentalmente até o limite do prazo, eis tudo. Gênios são acontecimentos sólidos feitos para solidificar desejos que, sem eles, desmanchariam no ar.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Afirmacionismos


Foi assim que, gaiatamente, Fábio Porchat inaugurou o Papo de segunda de ontem: colocando no meio de suas brincadas apresentações de praxe a genial definição de afirmacionista – aplicada ao querido Emicida, no caso, mas certamente extensiva a todos os demais participantes e aos fiéis papolovers (como esta que vos escreve). É genialmente adequado o conceito, nestes tempos de tão ensandecido desapego das verdades outrora mui fáceis; se há os que negam, negam, negam o óbvio, e os há ainda em abundância, não é menos do que urgente que haja também os que afirmem, afirmem, afirmem em todas as ruas e redes e vilas e estações e páginas e outdoors tudo que é gritável por ser cristalino, tudo que é correto por ser científico, tudo que é garantido e fact-checked. Deixem-me, pois, me alinhar às hostes quase involuntariamente convocadas pelo bom Porchat e ser sim (coração aos berros) afirmacionista de que:

📢 Não é que o "governo" não se importe de nós morrermos. Ao "governo" INTERESSA que nós morramos. Ter muitos idosos falecidos significa, para os desgraçados-em-chefe, algo a ser visto como um alívio para a Previdência; entre os falecidos jovens, o provável é que a maior quantidade seja de pobres e negros, categorias classicamente enxergadas pelas elites brasileiras como estorvos e (desde a abolição de 1888, em especial) destinatárias preferenciais de todos os instrumentos de genocídio.

📢 Estender a pandemia o máximo possível é a única chance que o "governo" acredita ter de impedir que nós, pessoas de esquerda, tomemos as ruas de maneira tão intensa e furiosa que só reste à Câmara abrir processo de impeachment.

📢 Indo nós para a rua ou não, o "governo" cairá; é simplesmente histórico: todo e qualquer fascismo se autodestrói. Já está inclusive acontecendo, cada episódio da CPI borrifa mais longe o clássico perfume de bases desmoronantes.

📢 E cada ato de desespero que quer posar de macheza, como a palhaçada motoqueirosa do domingo, faz a pá do Juízo Final cavar mais e mais profundo. Aqui pelos meus cálculos, o Grand Canyon que irá se tornar a cova deste fascismo maldito já está chegando ao solo chinês (coisa de 13 metros para mais ou para menos).

📢 Nossas mais de 450 mil vítimas da covid hão de ter suas memórias avenged em Haia.

📢 O que vivemos (e morremos) neste momento é apenas o paroxismo do que o Brasil tem sido há cinco séculos, com pequeníssimos intervalos/núcleos em contrário: solo regido por elites hedonistas, cruéis, assassinas, escravagistas, exploradoras, torturadoras, desbriosas, preconceituosas, predatórias, covardes, cafonas, ridículas, arrogantes, hipócritas, mesquinhas, inclinadas ao beija-mão do rei e do imperador em prol de benefícios para seus clãs, dotadas de consciências sociais natimortas e caracteres humanisticamente indiferentes, agarradas ao conservadorismo de consumo externo e à incapacidade moral de compreender e vivenciar o cristianismo no qual DIZEM crer, e ao qual renegam solenemente de portas adentro. Certo, e também de portas afora.

📢 Gente que definitivamente não faz parte da elite, porém atravessa os dias achando (como os loucos de anedota, autoproclamados Napoleão) que faz, anda apenas, se já é idosa, envenenando suas últimas temporadas na Terra com doses cavalares dum ódio e duma vergonha de que talvez nunca tenha tempo de buscar o antídoto. São almas que estão descultivando saudades, esforçando-se por serem desamadas e por terem a lembrança tão infame quanto a daqueles que apoiaram hitlerismos, mussolinismos e afins.

📢 Tic-tac, defensores da morte; quem ainda tem casaca a virar para a vida, vire. Que o vento está mudando de norte.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Entre quase e cais


Completa hoje 70 anos, assim com bainha feita, meu xará de cidade e sobrenome Ricardo de Carvalho Duarte, o Chacal. Poemas que citar não faltam, mas fico com este, justamente pela celebração do ofício poético: "estranho poder o do poeta./ escolhe entre quase e cais/ quais palavras lhe convêm./ depois as empilha papagaio/ e as solta no céu do papel". Peço licença ao querido Chacal para pendurar umas rabiolinhas no papagaio solto e completar que esse estranhíssimo poder não voa só com o poeta específico, voa amplamente com o escritor genérico – a criatura fadada, por ofício, a se embriagar de possibilidades dicionárias, a sofrer vertigens maravilhosas ante a tudidão de verbetes possíveis, e o melhor: o acréscimo dos impossíveis, improváveis, inexistentes. Por mais que o tsunamizem também os sofrimentos da escolha, o escritor anda sempre mergulhado na secreta volúpia de se lambuzar nas opções oceânicas, como um Tio Patinhas linguístico chafurdando em substantivos, adjetivos, advérbios, neologismos dos quais é quaquilionário.

Nomear personagens, por exemplo – que espetáculo, que Disney de indecisões, que piscina deliciosa e enervante de brinquedos! Especialmente nomes femininos, mais tendentes a vir de flor, de pássaro, de estrela, ou mais tendentes a parecer de fada ou elfa ou rainha ou feiticeira ou odalisca (como viver uma vida sem batizar alguém Nashira, Nerine, Caliandra, Nitzah, Yamha, Andalee?), formam um mar tentador o bastante para que se pense quase em traçar um enredo e tecer todo um livro apenas em torno duma boa nomenclatura protagonista. Histórias inteiras são capazes de brotar na condição de simples armação de pipa, simples esqueleto da seda leve e colorida que de fato seduziu os orgulhos do autor. Ah! e sabem uma outra? coisas pequeninas ou bem imensas podem nascer meramente para preencher de carne um belo título. Sim, nada impede que um cronista, romancista, poeta se apaixone com perdição por um título com o qual passa a sonhar, com o qual passa a enxergar seu próprio nome casado numa capa ou numa página, e desenvolva um filho literário que venha a portar o tal batismo – como quem pensa uma criança que combine com a certidão. Não questionem, isso são escritores.

Escritores são isso que se esfalfa e que se delicia com o gigantismo do terreno a ser lavrado. Não basta (eles sabem) vir com toda a planta baixa da narrativa, quem é quem e faz o quê, e acontece quando; é preciso vestir esses quens e quês de comos, é preciso saber se Dandara Martina tem olhos de pradaria ou de avelã, se tem cabelos dum castanho contente ou duma palidez melgaça, se se cobre de sáris variegados ou de calças jeans embaçadas de uso; é preciso construir onde vive Dandara Martina com um desbunde de tons turquesa, com empréstimos do sertão de Riobaldo, com qualificantes urbanos e estrídulos, com sibilares arenosos, onomatopeias de canto de jandaia, perfumes de almíscares ou de conchas. É preciso dar (ou não) um amor a Dandara Martina (ou a Noribel Iolanda?), cobri-la de propósitos ou loucuras, rotinas ou debandadas, revoluções ou burocracias, e também dar-lhe amigos, amigas, amigues, acertar em todos eles um jeito e um sotaque, uma gíria e uma intenção, e decidir-lhes o rumo, o prumo, a prosa, o espírito, o rito, a meta, as horas favoritas, os traumas insolúveis, os passados idos e estados. É preciso arcar com as responsabilidades de empilhar sobre Dandara, Noribel, Martina, Iolanda uma soma incrível de decisões escritoras, e só então empiná-las, completas, coloridas, em céus de papel que já não é necessariamente papel, e em que não há espaço bastante para quase, por ser tudo grande demais.

Escritor, para se alar e soltar, inventa o cais.

domingo, 23 de maio de 2021

O tempo da tartaruga


Hoje é o Dia da Tartaruga, essa criaturinha completamente adorável, e a celebração fofa me resgatou para a memória a frase de Khalil Gibran: "Tartarugas conhecem as estradas melhor do que os coelhos". Por quê? ora; tartarugas – as metáforas, não necessariamente os animais – frequentam com muito mais longueza os detalhes do que há a ser conhecido, seja de fato estrada, seja página, poema, música, história, jogo, mercado, jardim, filme, ponto turístico ou o corpo do outro. Não é que os pequenos (ou grandes) répteis-símbolo estejam fadados à lentidão porque seu organismozinho nasceu limitado e próprio apenas para vagares; seus organismos são capazes sim de agilidades insuspeitas, e, embora certamente nunca possam se comparar a lebres ou guepardos, dão conta com suficiência de suas corriditas urgentes. Mas o pulo do gato – ou o saltinho do cágado – é o fato de essas corriditas não serem tããão urgentes: são evitadas se possível, destacam-se como exceção e não como padrão. O padrão meio natural, meio escolhido é um tempo não emergencial, feito de pausas e doçuras, nada afeito a ansiedades e desesperos.

O tempo da tartaruga se limita com escrever, diria João – com o escrever literário não premido (ou quase não premido) por quaisquer obrigações, bem entendidamente; se limita, aliás, com o geral das formas de arte, que não são paraísos sob o céu, concordo (o ato de criar não é nem um pouco isento de descabelamentos mentais), porém se aproximam tanto quanto possível de um recreio intelectual: pode-se levar a cada momento uma bolada, mas nem por isso se deixa de estar brincando. O tempo da tartaruga se desvia do comercial e tende ao boêmio; dá de ombros – répteis têm ombros? – para o produtivo e se demora no criativo; foge sem pressa do apressado, do apreçado, do aprazado, e se entrega ao prezado com o máximo de minúcias e o mínimo de ressalvas. Fique claro que o tempo da tartaruga não é de irresponsabilidades, a alma simbolizada pelas cascudinhas passa (devagar e) longe da recusa ao cumprimento de metas; são outras, no entanto, as metas: estão igualmente no percorrer e no atingir, ou talvez menos neste do que naquele. Estão atentamente distribuídas pelo caminho, contam com várias estações, vários sublucros, várias minivitórias, preciosos conhecimentos anexos, easter eggs fabulosos, felicidades delicadas. A felicidade no tempo da tartaruga é assim: delicada. Como velocidade não é o forte da menina, o percurso demanda interrupções e em cada interrupção há um canteiro, um parque, um café, um quiosque, um revigor para a viagem que é integralmente (não apenas no final) gozufruída.

No tempo da tartaruga é que podem existir preliminares, cuidados, ternuras, mimos, cafunés; no tempo da tartaruga se calam disputas, competições, cronômetros; no tempo da tartaruga se enxugam caprichadamente as lágrimas, se tocam desveladamente as dores, se conversam (e acertam) compridamente as zangas, se dissolvem gentilmente as desconsolações. É tempo manso, meticuloso, cheio de perserveranças, cheio de suavidades; é o tempo das crianças, dos artistas, dos jardineiros, dos cozinheiros, dos místicos, dos amigos, dos apaixonados autênticos, dos pais e mães loucos pela função de cultivar gente, dos enamorados dum sonho que não seja estritamente ambicioso e numérico. Nesses quandos e durantes de tartaruga pulsa frescor, pulsa oxigênio, abre-se espaço ao passeio, bota-se de escanteio a quebra ou não de recordes, encoraja-se a flânerie, desencoraja-se a maratona, estimula-se a experiência e destitui-se o pódio, elogiam-se a curva e a peripécia e vê-se com muxoxo a linha de chegada. Caminhos palmilhados tartarugamente têm, mesmo, linha de permanecida.

Feito a vida.

sábado, 22 de maio de 2021

O ridículo


Um cachorrinho late na vizinhança, absolutamente ridículo – tão mais ridículo quanto mais ameaçador e ranzinza é o latir, que não pode cumprir as próprias expectativas de esbravejo por motivos de gasguita, frágil e minúsculo. Uma coisa, porém, o pobre catioríneo com fumos de valentão atingiu, embora a meta tenha sido involuntária: evocar-me outros seres e elementos ridículos (além das cartas de amor, que, como J. Pinto Fernandes, não entram na história); chamar à lembrança aquelas burlesquices da rotina, às vezes risíveis porque ingênuas, às vezes desprezíveis porque más:

Gesto de arminha com as mãos.

Crochê em vaso sanitário.

Transparência em vaso sanitário (guilhotina, gente. Caso de gui-lho-ti-na.)

Mesóclises que se levam a sério em pleno ano da graça de 2021.

Vídeos, pessoas, textos, discursos ufanistas.

Bolsonaristas.

Puxa-sacos: tanto gentes peguentas (eca) quanto aqueles recipientes de tecido, bichinho e babadinho nos quais se mete a coleção de embalagens plásticas que toooodos temos, não negue.

Apelidos de neopombinhos que não temem extravasar sua paixão insuportável em público.

Aliás: o andar dos pombos literais.

Discussões encarniçadas sobre terraplanice.

Mullets.

Ombreiras.

Ciúmes.

Cenas pastelão.

Homens palestrinha – especialmente quando palestrinham para mulheres especialistas no assunto.

Homens competindo por absolutamente qualquer coisa.

Homens dando chilique.

Mensagens com carro de som espalhando a vergonha eterna do destinatário para todo o universo.

Mensagens de Dia das Mães, mesmo sem carro de som; cafonice filial é uma instituição planetária.

Azulejos de patos, flores, frutas, galinhas, vaquinhas.

Pelo menos 93% dos ambientes PODRES de caríssimos que aparecem no Espaços milionários.

Pelo menos 96% das coisas feitas ou compradas por milionários.

Milionários.

Bilionários. Céus, minha gente.

Tudo que late mais do que é, age acima do que pode e chega a se fingir senhor do que deveras mente.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Vaidades da raiva

O aniversariante de 333 anos do dia, Alexander Pope, é pop: teve lá sua importante menção no Código Da Vinci, por exemplo, e emplacou o título do multiamado filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças (trecho que equivale a um dos versos de "Eloisa to Abelard", conhecida obra do poeta); foi, também, o segundo autor mais citado no Oxford dictionary of quotations, perdendo unicamente para Shakespeare – que não chateia ninguém, convenhamos, por ser o Clóvis Bornay da literatura inglesa. Nada mau para quem teve a vida atravessada de agruras que não eram exatamente talhadas para fazê-lo rei da popularidade: filho de dois católicos numa época em que praticantes da religião estavam proibidos de ensinar, ir à universidade, votar e basicamente ter qualquer participação mais relevante na esfera pública, Pope aprendeu a ler com sua tia e apenas aos 10 ou 11 anos começou a receber alguma educação mais formal, que foi curtíssima (o poeta se instruiu praticamente sozinho, devorando autores como Horácio, Homero, Virgílio, Chaucer, Shakespeare – claro –, Dryden e afins); além disso, a partir dos 12 o jovem Alexander colecionou problemas de saúde, incluindo a doença de Pott – ou mal de Pott, ou tuberculose vertebral, ou espondilite tuberculosa –, infecção que lhe atacou a coluna, deformou-lhe o corpo, causou-lhe dificuldades respiratórias, febres altas, inflamação nos olhos, dor abdominal, deteve-lhe o crescimento em 1,37m e lhe rendeu uma corcunda pronunciada. Ah, sim, e dores de cabeça terríveis por toda a vida. Mesmo assim, ou exatamente por isso, o guri ficou um satírico espetacular, o que não o impediu de crer também num universo divina e perfeitamente ordenado, do qual só reclamamos por não o compreendermos. Nenhuma dúvida de que o rapaz tinha peito, tinha fé e tinha estilo.

Foi essa criatura interessantíssima de brilho eterno que um dia escreveu: "Sentir raiva é vingar-se das falhas dos outros em si próprio". Lindo e preciso, tal qual aquele "guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que o outro morra", frase que ora vejo atribuída a Einstein, ora a... hum... Shakespeare. Seja qual seja a paternidade da segunda máxima, a questão é que ela e a primeira vão guilherme-tellicamente no alvo; o que pitombas fazemos nós de nós, ao deglutir diariamente o ódio que preferiríamos enfiar na garganta daquele-um? Que raios de dever de casa masoquista pretendemos cumprir ao repassarmos rancorosamente cada tópico, ao revivermos cada item, ao ruminarmos cada parágrafo de coisas idas, ditas, feitas? Que grande avanço imaginamos empreender dando todo dia a cabeça de encontro às mesmas quinas, decicatrizando os mesmos arranhões, atiçando os mesmos machucados, salgando as mesmas dores? Não sei se há nisso alguma espécie de imolação (ou ao menos de amolação) ritual; não sei se temos raiva de nossa própria raiva, se por preguiça e estranha lógica desejamos resolver o assunto em home office mental, se algum mecanismo psiquiátrico nos impele a ser um tipo de bonequinho vodu de nossos desafetos; mas vocês vão concordar que SENTIDO, amigues, essa mania não faz – essa mania lokona de promovermos em nós a malhação do judas sem esperança de aleluias.

Obviamente a alternativa não é malhar nosso judas particular in loco, porém é necessário, é essencial não nos confundirmos com ele. Se alguém errou grave, errou rude, só nos cabe a parte bem minoritária da dor – aquela isenta de culpa, e por isso ligeira feito andorinha. Atirarmo-nos a um sofrimento descompensado dá uma pista de que não anda ali somente mágoa com Fulanito, andam também diversas vaidades possíveis: a presunção de que éramos bons demais para alguém SEQUER pensar em traição; a síndrome de onipotência frustrada, visto que todos os nossos esforços não foram capazes de evitar o erro e isso é i-na-cei-tá-vel; o gostinho em desabafar pública e superiormente a respeito dos horrores de Sicrano, como ele pôde, como ele foi capaz; o gosto em ostentar igualmente uma grande ferida para a qual estamos aceitando consolo, viu, galera?; a quase alegria salvo-conduta de estarmos livres de qualquer movimento em direção à criatura pecadora, ingrata, feia, boba, cara-de-mamão, pela qual já sofremos muito, muito. Apontar toda a hipótese envolvida nesse gozo da mágoa não significa, naturalmente, que não se tenha o pleno direito de acusar o golpe e contar com o sagrado desafogo da dor; significa apenas que a dor da falta alheia não nos pertence tamanhamente que devamos nos arvorar em maiores (ou menores) do que somos. Feitas todas as diligências que nos cabiam, em tese nos deveríamos vestir da paz missão-cumprídica de quem se sabe pequeno demais para palmatória do mundo – e grande demais para a covardia da indiferença.

Humanos nenhuns somos uma ilha. Mas tampouco somos homens e mulheres-maravilha.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

O que é que a bondade tem


Amo que Mark Twain tenha dito algo como: "Faça sempre o bem; isso contentará algumas pessoas e deixará as demais perplexas". Um plano absolutamente perfeito, já que dá conta às maravilhas tanto de trazer orgulho e admiração às pessoinhas amadas quanto de semear horror e confusão entre os eventuais desafetos – e o melhor do melhor: sem que seja necessário sujar minimamente as mãos (sendo necessário, aliás, o exato oposto). Agrada-se a si próprio e aos seus próprios, espalha-se uma camada de amparos e mercês pelo mundo e, de brinde, ainda se deixam brutalmente irritados todos a quem de preferência se deve irritar sempre, por serem irritáveis com o bem; vejam que negoção.

Como se não fora o bastante, sobram empurrõezinhos para a bondade na boa e velha linha "estudos dizem": estudos dizem (podem checar aqui o que eu resumo adiante) que os doadores, no doar(-se), ativam o sistema de recompensa no cérebro e liberam a almofadada dopamina, além de beliscarem o córtex subgenual e a área septal, ligados a apego e pertença. Segundo a Universidade de Michigan, a taxa de mortalidade tende a cair entre praticantes de serviço voluntário genuinamente abnegados; o International journal of behavioral medicine, por sua vez, aponta que os generosos se sentem no geral mais fortes e com mais energia; já uma pesquisa canadense mostra que "pequenos atos de bondade ajudam a melhorar quadros de ansiedade social". Mais confiança, mais laços, mais autoestima – não fica pedra sob pedra no organismo varinha-de-condado pela alegria azul de ser útil, de assentar uma pecinha de porcelanato que seja para pavimentar bem-aventuranças. Isso mesmo desespera os que não se inclinam para distribuições de renda e justiças afins, e que se agarram num triste espelho-espelho-meu incapaz de lhes mostrar rostos, peitos, peles, olhos, cabelos iluminados por dentro; estilos de vida egoistizados, enrolados em concha, podem providenciar os melhores cirurgiões, os melhores coiffeurs, os melhores cremes, mas decididamente não o viço vindo da satisfação mais subterrânea.

Gente que se acostumou a desdobrar-se em caridades – não ruidosas, e não obrigatoriamente financeiras – parece que engoliu um ring light desses que clareiam as chamadas de vídeo, ou antes: parece que anda por aí com auréola embutida e implícita. Não é que essas criaturas tenham o desapego dos ermitões ou caminhem sobre sua nuvenzita portátil, simplesmente conseguiram imergir na inteireza do que somos, na (quase) óbvia orientação de coletividade para a qual fomos feitos; e, uma vez imersas, permanecem como que sob um batismo irremovível de consciência, atado tanto ao senso quanto às doçuras do dever. Em palavras outras, os que fazem o bem não mais se veem aptos a deixar de fazê-lo: absorveram-no, permitiram-se absorver por ele e incorporaram, como consequência, uma lampadazinha invisível de calma felicidade – a calma, descansada felicidade de quem se cumpre.

A pulsão do bem inviabiliza e invisibiliza qualquer maquiagem que não seja eterna. Quem ama o cuidado alheio, infinito lhe parece.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Pequenas melancolias


Às vezes um cheiro de pomada me traz estranhas memórias de tempos específicos, que no entanto não consigo especificar. Numa idade qualquer estive em uso desse remédio ou de um parecido – e só um pedacinho à toa do velho aroma evoca adolescências vagas, nebulosas. Fui sempre feliz (ou nunca fui infeliz), mas voltar sei lá para onde não é agradável, é confuso, arbitrário, inquieto. Só quero madeleines literais; sua metáfora me constrange a um terror íntimo.

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O sono, filó nos olhos, nos deixa ternos para tudo.

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E quando a gente está lendo dessas histórias em dois, três volumes, com trilhardares de peripécias, e fica semiórfão no afastar-se da fase e do ambiente em que mais queríamos o protagonista? O infeliz descarrilhado não volta enquanto não atravessamos com ele mil burocracias escritas, enquanto não o passamos para a outra margem de mil tédios e contrariedades; e enfim nossa orfandade aumenta com o fim da saga. Longos e frequentes sejam os enredos que saibam onde demorar-se.

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Há um profundo abandono, aliás, em estar onde quer que se esteja sem o livro que temos lido.

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Há também profundo abandono e profunda desolação no bocejar durante qualquer coisa, mesmo nos restinhos de noite, mesmo nos despojos da festa, do trabalho, do encontro; bocejar é um arriar sincero da vontade, um despregar-se do momento. Bocejo tem seu quê de barco partindo; contém miniaturas de adeus e renúncia.

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Queria, como queria! que minhas curiosidades eternas entrassem em concórdia com a sensatez da biologia e deixassem de ver, no sono, um desperdício!

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Nuvens só são aceitáveis à noite quando esparsas, servindo de algodãozinho às joias que piscam num azul quase purificado e mais limpo. Mas esses vapores que cobrem a noite dum cinza rosado! Tem que haver regulamentação dessas nuvens lesa-poéticas, com o mínimo de urgência.

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Tapo os ouvidos sem querer, ainda que no silêncio de madrugada adentro: musiquinhas interiores, involuntárias, obcecam a paciência feito gremlins.

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A melancolia eu somente considero viável com propósitos artísticos. Mantida em sua pequena gaiola de romantismo e inofensiva doçura, vá; absorvida pelos poros, entretanto, deixa tudo com aquela essência de poeira ou fumaça que se tem num meio-dia de cidade grande, e que chama à irritação e à desistência. Odeio agudamente a melancolia lívida que cheira a cigarro; tolero-a em rosa, sépia, lilás, melancolia-menina com floreira na janela. É improdutivo demais não ter flores reais nem metafóricas.

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A melancolia que presta para alguma coisa não se indiferentiza. Ri do nariz vermelho de frio. E veste agasalho.

terça-feira, 18 de maio de 2021

Cores que não vêm nos dicionários


Em seu textinho "Da cor", o fofílton Mario Quintana diz que "há uma cor que não vem nos dicionários. É essa indefinível cor que têm todos os retratos, os figurinos da última estação, a voz das velhas damas, os primeiros sapatos, certas tabuletas, certas ruazinhas laterais: – a cor do tempo..." Sem dúvida; eu só adendaria "todos os retratos impressos", já que o bom Quintana não poderia saber então que um dia a maior parte das fotos estaria cristalizada jovem e virtual, quase eternamente fresca. O conceito "cor que não vem", "cor que não há", de qualquer modo, é daquelas vias fascinantes que somente poderiam ter sido aradas por poetas, e não creio que o querido autor de bochechas molinhas (sou doida por apertar as bochechas do Quintana, vocês não?) viesse a se amofinar de eu andar semeando nessa via lavrada. De maneira que me arrisco a ensaiar outras cores que, acredito, nenhuma pantoneria já desenrolou sob os céus:

A cor da temperatura que vai mudando, do ventinho de varanda que vai pegando de clarear para o branco ou o azul, ele que era amarelado de verão e se torna uma lâmina de acrílico bulindo na pele.

A cor dos olhos da criatura amada – que nunca é uma só, fixa, redonda; é sempre uma paleta inteira, e sempre variante nas imediações do verde e do mel quando vem o sol.

A cor das ruas com árvores de frutas adocicadas, que adocicam todo o pensamento quando a calçada se cobre de restos enjoativos, maduros; são ruas brônzeas, amarronzadas, desse justo tom de madureza olorosa.

A cor da música, parente dos matizes da noite: mais roxa para o rock, mais grená para latinidades, mais lilás para popices.

A cor do cheiro da madeira, mais louro que a madeira mesma.

A cor das esperas, dum bege árido e monótono.

A cor das várias cidades quando resumidas num abraço da memória: o cinza-atijolado de Londres, o areal-com-floreira de Paris, o andaime-LED-starbucks de Nova York, as nuanças rosamarelas de Roma, o círculo de cores primárias de Lisboa.

A cor dos textos que nos compuseram e que apaixonadamente tateamos – mistura do pretobranco das páginas com a tinta interior das impressões de momento.

A cor dos filmes amados. Os de vocês não sei, mas os meus tendem constantemente aos vermelhos aveludados entremeados de viço turquesa, e algumas penumbras.

A cor dos primeiros dias de qualquer coisa, em geral claros, estridentes, de natureza nervosa.

A cor dos encerramentos, já estes escuros e às vezes salpicados de incenso, rosa, renda.

A cor do sempre: dourada, enleadora, como uma camada de âmbar que cobre a lembrança onde ela está.

E não descolorirá.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

A galera do medo


Hoje é o Dia Internacional Contra a Homofobia, que se firmou nesta data porque, em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID). Ou seja: demorou até praticamente a última década do século XX para que pessoas livres e adultas deixassem (ao menos sob os olhos da medicina) de ser consideradas doentes por amar e/ou desejar outras pessoas livres e adultas. Sei bem que eram "outros tempos", que a internet não havia, que aparelhinhos eletrônicos para aproximar gentes e discursos estavam ainda em zigoto e, em consequência, era consideravelmente mais difícil universalizar o debate, espalhar compreensão e naturalidade sobre o assunto; as tradicionais famílias eram mui capazes de entrar em síncope se ouvissem expressões como "o marido do ator" durante o Jornal nacional, ou assistissem no Fantástico a uma entrevista com o marido do ator – desabituadíssimas que eram de ver homossexuais assumindo seus relacionamentos na vida real e sendo retratados como personagens não cômicos, histriônicos e estereotipados na ficção. A gente entende que era outro momento histórico; mas isso absolutamente NÃO QUER DIZER que a gente perdoe. Complicado demais perdoar a sociedade por sua inacreditável lentidão em naturalizar o afeto, em parar de classificá-lo como enfermidade, aberração ou mesmo crime, enquanto instituições como a guerra vêm frequentando os quadros de honra da História há uns bons milhares de anos, sem o menor pudor de dizer seu nome – e com o animado aval do povo de bem. Em que caceta de lógica uma demonstração de carinho vira coisa vergonhosa e o metralhar (explodir, torturar, mutilar) sumário de outros seres humanos aparece como ato de bravura é um negócio que nem em novos milhares de anos vou chegar a digerir. Jamé de jamé.

Não vou chegar a digerir, mas não vou afirmar que não suspeite freudianamente dos motivos desse desconcerto do mundo, como o nomeariam os barrocos; duvido que se duvide da enorme porção de libido desviada do rumo pertinente – alguém pensou nas fantasias lençólicas que os supostos tradicionalistas não confessam/não realizam? eeeeu não falei nada – e mal-empregadíssima numa violência substituta, vingativa, odiadora dos que são o que não se pode ser. E por são o que não se pode ser não quero dizer necessariamente gays, mas sim felizes. Gente infeliz com o que é, e provavelmente ainda mais infeliz com o que não está sendo, tem um potencial gigante para se tornar destrutiva, devoradora, tomada de uma fome de trator ressentido, que só deseja arrasar o quarteirão AND reduzi-lo a um plano cômodo e igual. Se fosse apenas questão de "não concordar" com relações homossexuais (embora seja esdrúxulo, em princípio, o conceito de "concordar com" ou "discordar de" algo que só diz respeito às pessoas que se relacionam, e que não foram a ninguém pedir autorização ou opinião), bastaria que o discordante não tivesse relações homossexuais; porém não, não é disso que se trata: trata-se de fazer inexistir a mera possibilidade que o ameaça, a mera sombra, o menor testemunho vivo de sua própria insegurança, sua insatisfação, sua incompletude. É preciso que a tentação seja arrancada do universo, que basicamente não haja alternativas – que nenhuma dúvida, nenhuma inquietação seja sequer permitida para bem de seu repouso noturno.

O homofóbico, assim (como o termo mesmo sugere), não é alguém que simplesmente não aprecia: é alguém que tem medo. Quando não se aprecia um tipo de filme ou livro, ora, dispensa-se a leitura, não se compra o ingresso, acabou-se; em sã consciência não se vai passando de livraria em livraria para destruir as obras de Jorge Amado porque não se gosta de Jorge Amado, nem se vai fazer plantão na frente do estúdio para agredir atores de Transformers e evitar a gravação de mais uma sequência da série que se acha uma porcaria. O estranho é uma criatura autodeclarar-se vidrada em, sei lá, romances de ficção científica e não ter OUTRA PREOCUPAÇÃO literária que não seja xingar os de Jorge Amado, ou então apresentar-se especialista em Godard e não escrever nenhuma crítica que não se dedique a desancar Transformers de todas as maneiras. Se algo não está dentro de sua esfera de gosto e compreensão, não lhe afeta a rotina, não o obriga a nada e não machuca ninguém, por que pitombas selvagens fazer justamente desse algo o centro de suas apreensões – A NÃO SER que se tenha alguma espécie de pavor de ser influenciado por esse adversário escolhido? Podem nem ser tendências homossexuais o que um homofóbico reprime (apesar de, em boa parte das vezes, serem); pode calhar de ser um terrível problema de autoestima, uma ferida hemorrágica de solidão, um rancor eterno de outros pais se mostrarem mais amorosos e evoluídos que os seus, uma raiva cheia de pus advinda do campo profissional, mas transbordante para todo e qualquer espaço em que haja uma galera segura e realizada. Seja qual seja a origem do ódio e do medo, entretanto, está lá presente e potente o medo: vai que aquela influência funesta acaba forçando sua vítima a demolir e retrabalhar todo um edifício de verdades capengas, a se encarar num espelho refletidor de frustrações, a se perceber suscetível e desencantada, vulnerável e líquida, dominada por emoções inaceitas entre outras vítimas tão perdidas e frustradas quanto ela?

Aos pretensos valentões e valentonas que têm tempo de se indignar com a vida sexual alheia, livre e adulta: se enxerguem, prezados – em todos os sentidos. Vejam o papel ridículo que fazem querendo reencontrar o que perderam, ou o que ainda não tiveram, espiando por fechaduras de quem nada lhes roubou. É em seu próprio domicílio psicológico que devem concentrar análises e esforços: está bem lá, na bagunça de seu coração, a chave que abre o discernimento necessário. E talvez um armário.

domingo, 16 de maio de 2021

366 dias


Pela primeira vez desde que o Lugarzito botou a carinha no sol, nos idos de 2011, estive aqui presente num pacotão de 366 dias seguidos (porque ainda por cima arranjei de retornar ao blog em situação bissexta – culpa do ano em que calhou a pandemia. Esse dia a mais num ano pandêmico, por sinal, a gente devia poder guardar para render juros após o pesadelo, hein? hein? só acho). Não vou dizer que foi um negócio trabalhento, vou dizer que tem sido, na esperança de que as forças de escrita continuem a andar nem que seja mancando; mas direito de queixa, convenhamos, não tenho nenhunzinho, já que ninguém me obriga a digitar sandices diárias, ninguém solicita o serviço de ser por mim aporrinhado. Mui principalmente: as chateações mentais que este pequeno filho opcional me possa dar não chegam à poeira de 0,000000000023% dos problemas reais de gente que vem cruzando a pandemia sob dúvidas orgânicas, incertezas de moradia e sustento, carências de cuidados de si, dos pais, dos filhos. Seria piada de pessissíssimo gosto "reclamar" de cansaço verbal ou assemelhâncias. Relatar sem peso dramático, no entanto, eu posso; posso confirmar objetivamente que sim, o processo é cansativo e facilmente caível numa rotina nada saudável, uma vez que 24 horas escorregam num tlect! dos dedos e SEMPRE está no momento de outro texto ser pensado. Não é queixa, é a constatação de que não há atividade – mesmo desobrigatória, lúdica – que a gente não consiga tensionar ou ver tensionada nas mãozinhas buliçosas do tempo, permanentemente amassadoras, rasgadoras, inquietas. Em permanente desassossego.

"Você não deveria postar todo dia, sua louca." Concordo, não deveria, e entretanto posto por não ter a tranquilidade disciplinada de não fazê-lo: se de 48 ou 72 horas fosse o prazo, talvez que eu ficasse mais luxenta na escolha do assunto e parasse de entulhar o blog com qualquer sucatazinha tropeçada na timeline, qualquer fiapo de ocorrência recolhida porque pode servir para alguma coisa – e então não me veria liberta, pelo álibi da urgência, do compromisso de ser clara, organizada, razoável, minimamente coesa e não repetitiva a cada texto. Saber que cada texto nasce e não dura mais que um dia, como o sol de Gregório (o de Matos, não o Duvivier), faz a fila autoempurrar-se; tudo serve, tudo é bem-vindo, tudo foi feito como deu para ser feito, se não saiu a contento paciência, daqui a pouquinho reinicia-se o Dia da Marmota. Além do mais, é jeito de me deixarem em paz na oficina – de eu me deixar, inclusive: todos os meus próximos estão cientes dessa batida virtual de ponto e não estranham que eu mergulhe no computador em momentos aleatórios, nem contestam o fato de que esse expediente SERÁ tão comprido e cumprido quanto o outro, o oficial e remunerado. É como é, acabou-se, já está institucionalizado como coprioridade ainda que não me renda nem uma moedinha. O cronômetro das 24 horas beeeeerra – e se impõe.

Escrever um troço qualquer todo dia torna compulsória a leitura de poemas, de definições, de pinturas, de flores, de filmes, de notícias, de curiosidades, de memes, de memórias; nenhumas férias são possíveis em termos de desencavucar partículas interessantes de mundo, feito aquele povo que anda com detector de metais nas praias, nos parques, nos jardins vestido da esperança de localizar umas tesourices. Imagino seja mais ou menos assim o ofício do fotógrafo, que se atribui a necessidade de enxergar entre: o meio do movimento, a joaninha na interseção das folhas, a metade do rosto, as cenas de corredor, a semiaurora, o semicrepúsculo, os bastidores do evento que lhe servem de comentário. Assuntos redondos, inteiros, fotografados de proa e com sol da manhã, nem sempre rendem ou interessam; é geralmente num close, num nicho, numa fratura do tema que habita o fio a ser desenrolado e trazido ao tricô. Sabem? me ocorre que essa teima de passear cotidianamente nos entrelugares (o provável nome mais fiel do blog havia de ser Entrelugarzito) tem muito parentesco com meu amor centenário, milenar pelas passagens secretas; não podendo residir num imóvel de há oito séculos cheirando a pedra e limo, com manuscritos baphônicos espalhados pelas gavetas e livros que acionam cômodos ocultos atrás da estante, eu vou que nem doida achando compartimentos de castelo em histórias da Wikipédia, inventando vidas mágicas em cima de telas, imaginando tretas pensadas e vividas com base em declarações de outros tempos, catucando as dobraduras da alma humana pelo que ela deixa adivinhar em seus flagrantes. Não tenho como saber how-longamente continuarei neste enredo e desenredo tecido em linhas diárias, mas suspeito não hei de andar nunca, nunca fora das entrelinhas; estou, parece, fadada à curva, ao canto, ao escaninho, à sinuosidade, à alternativa, à vereda, ao ponto cego.

Em permanente desassossego.

sábado, 15 de maio de 2021

O mal não é especial


Nestes 110 anos de nascimento do arquiteto e escritor suíço Max Frisch (falecido aos 80 incompletos em 1991), uma de suas observações muito próprias, muito agudas: "Tudo que é humano parece ser um caso especial". Isso ressoa louco na cabeça a cada vez que um ato nos emudece, nos engasga, como os desoladores acontecimentos relativos aos pequenos Henry, Gael e os três bebês de Santa Catarina; a náusea, o refluxo não nos querem permitir a aceitação de que não, não se trata de casos especiais, trata-se de desdobramentos do que é diuturnamente construído sob nossas barbas e debaixo de nossos olhos. Pessoas de comportamento ilibado à flor das águas que assassinam/torturam crianças por motivos de ódio não tratado, de ressentimentos regados com dinheiro e armas, de psicoses circundadas de indiferença, de egos encorajados a desejar e executar sem se sentir limitados por detalhes como a vida alheia. Pessoas, também – para lembrar as não menos chocantes histórias de George Floyd, João Alberto Silveira (morto por "seguranças" do Carrefour em novembro passado), Yan e Bruno Barros (mortos em fins de abril num Atakarejo de Salvador), as vítimas do Jacarezinho, quantos mais? –, pessoas também que barateiam sistematicamente uma determinada cor e uma determinada classe social como características de cidadãos descartáveis; pessoas que se sentem confortáveis para agredir e eliminar outras aos olhos do público, em plena luz do dia, simplíssimo assim. Pessoas às vezes do nosso prédio, da nossa família, que no elevador dão boa-tarde educadamente e atrás do número do apartamento espancam a esposa e os filhos, aterrorizam, molestam, violentam, contam piada machista, assediam a empregada, mantêm em regime de escravidão a empregada. Podem não ter calhado de ir ainda para o Fantástico, mas não é indo para o Fantástico que se tornam ou tornarão casos especiais. NÃO SÃO casos especiais; são humanos fazendo humanices ao-vivomente, a semana toda.

"Credo! dizer que essas criaturas são humanas!" Olha: se até o fechamento da postagem não mudaram de DNA, são humanas, vai lá tirar satisfações com a biologia. "Mas então quer dizer que os humanos são todos assim??" Deus me livre e guarde, lógico que não, eu não afirmei nem afirmaria isso; afirmo porém uma obviedade (duas, aliás): humanos PODEM ser assim, e SÓ HUMANOS PODEM ser assim. É ululante que a maioria não mata, não tortura, não estupra, não escraviza, sequer fura fila ou deixa de devolver o que veio a mais no troco. Ou seja: a maioria é bastante decente e como tal permanecerá, do contrário já teríamos tacado o porrete nas cabeças uns dos outros e estaríamos extintos há milênios, em vez de irmos evoluindo aos trancos e nos reproduzindo consistentemente. O fato de a decência ser majoritária, no entanto, não exime a espécie do horror minoritário; se não somos intrinsecamente maus, somos maus TAMBÉM – sem chance de alegarmos, alecrins douraditos, que isso não nos pertence.

Não é para vivermos amargurados e desiludidos do universo, enxergando um Assassino do Zodíaco em cada vizinho, que precisamos assumir o quanto isso nos pertence. É para, acabando com a mitologia do caso especial, acabarmos consequentemente com o afã da resposta individual – pune o monstro! isola o monstro! cancela o monstro! –, com o fingimento de que o monstro é uma aberração autoparida e não tem nada a ver com a coletividade, da qual é uma excrescência. O monstro não é uma excrescência, migos, o monstro está INSERIDO em todos os trâmites da coletividade: sente, chora, dorme, come, só não vou dizer que ama porque acho duvidoso, porém certamente acredita que ama algo ou alguém. O "monstro" não veio do Hades, do Tártaro, de Mordor, de multiversos prontos a aliviar nossa carga, conforme preferiríamos; veio de cá, é coisa nossa, é fruto nosso, filho nosso, humano igual, igual, igual, de calça jeans e camiseta de time, de bermuda e boné, de saia acima do joelho e elástico de cabelo no braço, de tênis, de havaianas, de moleca – humaníssima, humaníssimo. É o garoto do 703 que vimos crescer e que não foi dominado por nenhum xenomorfo alojado na barriga: foi dominado, sim, por um fórum qualquer de ódio radicado nas profundezas da web, por um monte de homens e garotos semelhantes a ele, não observados como ele enquanto se tornavam machistas, misóginos, homofóbicos, racistas, supremacistas, armamentistas. É a colega que sempre foi muito atenciosa, muito delicada no serviço, e que – crescida numa família na qual todos fizeram vista grossa para os abusos que sofria – repete o ciclo ao não reagir contra abusos que os filhos talvez sofram. É o famigerado tio do churrasco, eterno aguardado e bonacheirão da festa, que nos belisca amavelmente as bochechas desde que tínhamos cinco anos e que hoje apoia políticas genocidas e chacinas em comunidades, porque sua ótima educação de antigamente não conseguia ir muito além de estrofes de hino e afluentes da margem esquerda do Amazonas. Não é um Jason, um Freddy, um Jabba nojento e alienígena, uma entidade esvurmada dos subterrâneos de Nova York ou manifestada numa geladeira, não, senhores: é sempre uma criatura humanéééééérrima que respirou em nosso mesmo bairro, frequentou a mesma padaria, quiçá a mesma igreja, e foi amamentada pela mesmelelessíssima sociedade doente, competitiva, bélica, preconceituosa em cujo colo passeamos. A diferença entre nós e eles, os "monstros" de suposta exceção, vai ver foi a sorte de um núcleo familiar mais esclarecido e amoroso, uma turma de escola menos briguenta, um numerinho no CEP, uma dobra nesta e não na outra esquina. Nós os conhecemos, podíamos sê-los, eles podiam ser-nos, talvez o tenham sido; nunca foram assim tão outros em relação a nós.

Pertencem-nos – para que estejamos dia e noite atentos à não fabricação de outros deles.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Esta alma apaixonada que não te escreve


De vez em quando vou brincar (virtualmente, é claro; alô, rinite!) entre jornalices velhas, realmente velhas, velhas o suficiente para serem de há um século ou mais, só pela curiosidade purinha de visitar o que éramos – rir um pouco, me horrorizar e consternar um pouco. Folheei agora a carioca Revista da Semana de 14 de maio de 1921, cem anos redondos e de bainha feita, portanto; e notícias do grande-mundo para lá, opiniões absurdas para cá, me diverti horrores (HORRORES é definitivamente o termo) ao deparar com o concurso "A declaração de amor". Uma pérola. Reproduzo aqui a proposta e mostro o pau, I mean, o link, para verdes que não vos minto:

"AOS HOMENS:

– Como declararíeis o vosso amor numa carta de vinte linhas, no máximo?

ÀS MULHERES:

– Como responderíeis, numa carta de vinte linhas, no máximo, a uma declaração de amor?"

E seguem as demais normas, entre as quais a obrigação de os textos "não conterem expressões impróprias da compostura moral desta Revista" (get a room, guys!). Interessantíssimo o fato de apenas os gajos estarem no grupo dos que se declaram, e apenas as donzelas se encontrarem na situação esperadora de quem responde – ah! nossos ancestrais limitaditos –; de qualquer forma, as leitoras da época não pareciam muito encantadas com a perspectiva de reagir às chorumelas dos moçoilos, a julgar ao menos pela edição lida, em que, de doze cartas publicadas, nenhuminhazinha nascera de pulso feminino. Observar as dos rapazes explica fartamente a resistência das moças, e sugere que – como dizem – Álvaro de Campos nunca há de ter passado frio, já que esteve sempre coberto de razão. Uma pequena amostra do mico coletivo (com grafias atualizadas):

"Esta alma apaixonada que te escreve chora neste momento, presa nos tentáculos da Incerteza! [...] Diante de ti, todo o meu ser se dobra num êxtase perene de submissão! Dize o que desejas de mim! E eu serei valoroso, serei herói, serei mesmo covarde, só para alcançar a glória do teu amor, só para admirar um sorriso da tua boca formosa!" (De Pedro para Olga, a sempre bela!, assim mesmo com exclamação.)

"Se sabes o que é este sentimento divino que nasce de repente – de um olhar que se fita em nós, de um sorriso que nos inebria – e que se chama amor, não preciso de vinte linhas para to manifestar aqui. Porque o amor não se declara, – revela-se; e por isso não se define, – sente-se; não se descreve, – cala-se." (De Zizi, esse enrolão safado que mandou caô sem-vergonhento a fim de justificar a falta de assunto, para Edelsuíta C. Força aí, Edelsuíta.)

"Estás disposta a ouvir-me? Queres que eu te exponha, palavra por palavra, pranto por pranto, todo o doloroso poema que vive em mim, desde que te vi? Dize se queres! Dize se tens coragem! Pois para ouvir um coração que ama, é necessário não temer a dor! [...] Escolhe, pois: ver-me feliz, bendizendo a vida, glorificando o mundo, meus olhos fitos nos teus olhos, ou ver-me infeliz, maldito, torturado, com mil agulhas de aço a pungir-me a alma, a ânsia inenarrável de chorar e não poder chorar, e com a vontade de terminar meus dias e não ter coragem para tanto, porque não me é possível perder o teu amor... e deixar-te viver!" (De Carlos, claramente um psicopata narcisista manipulador potencial serial killer, a... meu amor, minha glória, minha vida!, assim mesmo com exclamação AND reticências. Vade retro.)

"Sabes, acaso, o que significa uma corda de violino tremendo de madrugada? [Em 1921 eu não sei; em 2021, significaria vizinhos beeeeem aborrecidos.] É um coração magoado que soluça, chora, geme, uma alma apaixonada que canta." (De Osíris para Regina.)

"Desgraçada é esta minha vida de te amar tanto sentindo no coração o teu amor pela confissão do teu olhar e ter de viver longe de ti só porque o teu nome é inimigo do meu! Yvonne, ouve-me. Eu renego o meu nome, renego tudo neste mundo e só imploro o céu do teu amor, o doce encanto do teu beijo, a luz bendita do teu olhar..." (De Luís D., plagiando DESCARADAMENTE o Romeu do velho William, para Yvonne.)

"O Amor, esse pequenino deus, filho dileto de Vênus, impenitente, travesso, acaba de fazer sangrar o meu já dolorido coração. Fui atingido em cheio e a dor que senti foi por tal modo aguda e violenta que quase perco a noção das cousas." (Bem se vê, José R. – que enchia o saco de uma Senhorinha.)

Veem? não é implicância, gente, é crise supurante de cafonice que faz sangrar o meu já dolorido coração, com a ânsia inenarrável de gargalhar e não poder gargalhar a plenos pulmões de madrugada, sob pena de ser expulsa do prédio. Tudo bem que o dito concurso cultural se deu há cem aninhos; mas CÉUS. Alguém podia de fato acreditar num amor assim tão medido, de linguagem tão cheia de andaimes, tão nua nos seus óbvios protocolos e carimbos de apaixonamento – ainda que fossem realmente fictícios alguns ou vários desses crushes? Alguém podia crer numa paixão tão em posse de si, janota e primo-basília, vervelescente em seu aparente desespero, abundantemente artística em plena crise de pavor à rejeição, em plena hora de ser muda?

Que os promotores e os participantes do certame me perdoem, mas a mudez do amor é fundamental. A mudez, o tremor gelado, o pânico de articular duas sílabas minimamente sensatas, a gagueira mesmo na tela ou no papel: nada mais adorável e legítimo em termos de gente que anda possuída de amor, dominada de amor, habitada de amor em todos os cômodos, sem quase nem um quartinho de seu. O verdadeiro apaixonado dá anos de vida por ser entendido sem carecer de fala – até fala escrita, visto que mandar mensagem cria também uma febre louca de aguardar resposta. O verdadeiro apaixonado tudo faz para ter a resposta sem enviar pergunta, ou sem verbalizar pergunta; não sendo viável (dificilmente um entendimento apalavrado tem como ser evitado de todo), engasga-se miseravelmente com o medo de empreender O Diálogo, e implora com o dilatar indefectível das pupilas que algum sinal de aceitação o resgate da tortura. Sobre isso não sei a opinião de meus pares; eu, porém, acho duma beleza irresistível esse jeito de abandonar toda esperança, ó vós que entrais no inferno íntimo das declarações de amor: o autoabandono da insegurança é o que há de mais fino e mais doce, mais potente na homenagem e mais acolhível nos braços, caso o bem-querer seja evidentemente correspondido. Se não o tiver sido até então, já sai da empreitada com meio caminho andado.

Ridículos, mesmo, são os de palavras muito fartas, quando o amor só-ele vale todas as cartas.