domingo, 31 de outubro de 2021

Versos para um dia de susto (com licença de Augusto)


Vês! Ninguém deu bola ao inominável
Nos círculos da gente que lidera;
Somente a solidão da besta-fera
Foi sua companheira inseparável.

Acostume-se à lama que o espera!
A História o chamará de miserável;
A queda há de ser feia, inevitável;
A infâmia o seguirá por toda a esfera.

É pária de que todos tiram sarro!
Eis pois, amigo, a amostra do bizarro
Proscrito que ele quer que o Brasil seja.

Se alguém toma inda as dores dessa praga,
Que vá, no mesmo barco que naufraga,
Fundar no inferno pátria que o eleja!

sábado, 30 de outubro de 2021

Aquilo que desespera


É um soco de consciência a fala do aniversariante de (redondinhos) 150 anos, Paul Valéry: "A definição de belo é fácil: é aquilo que desespera".

Certo, definitivamente nem tudo que desespera é belo – está aí nosso indigníssimo chefe de Estado nos enlouquecendo 27 horas por dia e não me deixando mentir –, mas o oposto é, de fato, o puro suco da verdade; tudo que é legitimamente belo nos leva a um desespero delicioso. Ver alguém que encarna o auge da boniteza, por exemplo (ao menos segundo nossos apetites estéticos), nos empurra para uma espécie de fome canibal; queremos enlouquecer de tanto olhar a criatura, morder-lhe os traços, comer-lhe as bochechas, engolir-lhe as covinhas, ouriçar-lhe os cabelos, sentir com as costas da mão se o rosto é macio como promete. Não me refiro a atração sexual, absolutamente – apenas, e de modo específico, aos encantamentos de forma que nos acometem, às paixões que temos por aparências que parecem um atropelo sensorial, de tão perfeitas. Vocês sentem? eu sim, sem nenhum atrelamento de gênero ou impulso romântico; sinto a beleza e a fofura humanas (fofura é uma categoria de beleza, até me convencerem do contrário) como algo inebriante em si, bebível, comestível, e portanto compreendo quase perfeitamente o frisson de um pintor, escultor, fotógrafo ao tentar capturar uma exatidão que o apaixona.

Paisagens, roupas, animais, casas, quadros: somos igualmente capazes de nos estontear de alumbramento à só visão dum contexto ou dum objeto suficientemente justo para as circunstâncias. E alumbrar-se é jeito de entrar em desespero, sem dúvida; alumbrar-se implica quedar perplexo ante a coisa e não querer ir embora da coisa, ou não se conformar que a coisa vá embora por si – aflição que contraria decisivamente a necessidade de o trânsito andar, de o expediente evoluir, de o passeio no shopping chegar a bom termo, de o ônibus da excursão partir, de o avião decolar, de a festa transcorrer. O tempo urge, ó dor; o tempo urge mesmo quando há tempo, já que a cronologia psicológica nem sempre se sacia fácil; o tempo é a turma do deixa-disso nos empurrando para longe da beleza perecível, breve, incabível na agenda. Para tão longo amor, tão curta a vida.

Aproveitando Camões, aliás: e o belo literário? Aaaah, esse nos desespera de arrepios com que substituímos, na visão interna, a paisagem que não vemos pelas letras que esperam fazê-la vista. Se a literatura não conta com os recursos da luz, da cor, da curva, em compensação recomenda-se às sinapses por trás dos olhos, recita-se como feitiço, como mantra, cantarola e sussurra; por dentro – direto para dentro. Não há como evitar um calafrio de pegada na nuca ao ler "Tuba de alto clangor, lira singela/ Que tens o trom e o silvo da procela"; ou "Tem sangue eterno a asa ritmada"; ou "E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas"; é também uma modalidade de exasperação, essa de sentir o papel murmurando termos tão certos e tão encantatórios direto no ouvido d'alma, quando menos se está preparado para o confronto e quando se costuma, inclusive, estar sozinho, no ápice da vulnerabilidade. O belo literário é o Fantasma da Ópera abraçando pela cintura e cantando "Point of no return" na base do pescoço: chance nenhuma de não se deixar levar à rendição.

Belezas desesperam por serem exatamente o ponto de onde não há retorno – por serem a lua da maré em que nosso sossego transborda.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Os tortos


"Nem tudo que é torto/ é errado/ veja as pernas do Garrincha/ e as árvores do Cerrado". É de Nicolas Behr, me lembrando carinhosamente do quanto meu coração bate pelos tortos, a turma adorável dos gauches na vida; para eles me volto em quase todas as histórias, para eles guardo normalmente os nacos de simpatia mais gordos, as compreensões mais ternas. Não falo de bad boys nem nada assim, ao menos não os que o são por convicção, vocação, vaidade; falo dos rejeitados, dos escanteados, inquilinos da sombra – que até podem cair no bad-boysmo devido a um atropelo de circunstâncias, mas que se configuram fundamentalmente como vítimas e jamais perdem seu quê de luminosidade oculta.

Em verdade é isso que adoro nos da sombra, nos da sobra: a marca da vítima, a vulnerabilidade. Ninguém há de me ver morrendo de amores pelos personagens alfa, a não ser que se construam sobre alguma fragilidade bem destacada; quem se esquece de que meu querido Capitão América, por exemplo, era antes do soro o soldado franzino que podia apanhar "o dia todo"? e como negar a certa inocência que perdurou no moço mesmo após a transformação? Ainda assim, o bom Steve Rogers fica para mim no camarote das simpatias, fora daquele que abriga os quase-amores e os amores declaradíssimos: Loki, o monstrinho carente e ambíguo, meu favorito Marvel de todos os tempos; o Fantasma desfigurado da Ópera, tão amargamente solitário que degringolou em homicida; Arthur Fleck, o mais recente Coringa, maltratado socialmente em todos os âmbitos possíveis; Ben Solo/Kylo Ren, vilãozinho dos últimos Star Wars que quase mergulhou na escuridão da Força antes de finalmente ceder ao amor de Rey... anfã, uma galeria respeitável de gente desacertada, desparafusada, fora da caixinha e da casinha, mas nunca totalmente má e sim vulnerável até a medula; sou louca por esses doidos. Não contem comigo para formar entourage dos muito resolvidos e muito amados, com quem o trabalho já está feito.

Desnecessário, entretanto, que meus tortos preferidos tenham qualquer componente vilanesco, e a prova é minha torcida calorosa e apaixonada pelo Nélio da novela das seis – aquele pacotinho de fofura cada vez mais fofo. Se não se trata de alfa male, alfa girl, podiscrê que é com esse ou essa que vou me ligar inoxidável: nerds como o ultragênio Spencer Reid, de Criminal minds; criaturas (aparentemente) fracas, delicadas, suscetíveis, como o Shun dos Cavaleiros do Zodíaco; gurias nada default, nem um pouco exuberantes ou seguras ou populares, a exemplo da tímida Amélie Poulain do filme que não preciso especificar. Posso admirar algumas forças – algumas –, porém só a fraqueza e a gaucherie me enternecem ao ponto do vínculo; ou é um corporativismo d'alma, irmandade de perfil, ou uma natureza esquerdizante e socialista até no psicológico: não há por que desperdiçar aconchego, penso, com quem o recebe em abundância diária.

Amor também precisa de reforma agrária.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Antivazio


Acredito que a gente só possa escrever, compor ou gerar qualquer possibilidade de arte, e até de não arte, quando cheio. Ou seja: virtualmente sempre.

Sim, produzimos também na presença do vazio, mas somente do vazio que é verdadeiramente a incerteza ou a languidez que não sabe o que fazer de si: sensação falsamente oca, na realidade apenas preguiçosa de escolha, exausta de lida, sonolenta de indecisão; com um upzinho de estímulo, açúcar, travesseiro, leitura, filme, cafeína, com um passeio de ver planta ou gente, com uns versos capturantes, com um programa de debates, com uma polêmica que faça girarem os radares – o pseudovazio emprenha e se evola. Não se evola o vazio autêntico, patológico, pesado demais para ventos e argumentos: o da depressão, geralmente; com este não há persuadir, há tratar. Existe também o intenso nada do luto fechado, que usualmente só amanhece com o tempo, e se o tempo não dá conta foi porque a tristeza garrou chumbo e evoluiu para a alternativa anterior. Se for tédio ainda criança, ligeiro, varre-se o danado após alguma ou muita insistência; o que não se pode deixar (qualquer que seja a origem) é que a oquidão improdutiva finque raízes eternas.

Por "produtivas" não se entenda "geradoras de lucro", please; não me passo para lógicas capitalistas que abomino. Digo apenas que autorizar indefinidamente a escalada do vazio n'alma é ser cúmplice duma nossa desertificação progressiva. Não nascemos nem para o pasmo que não vira o ócio fértil, nem muito menos para a dor que só semeia sal por se ter feito árida de vida; nascemos para que o terreno, mesmo com seus intervalos e invernos, brote em verde e flor e polpa, a seu tempo; para que ele gere o que pode gerar, mas que se abra em viço próprio e não se isole – se ecossistemize. Que se danem de verde e amarelo os dólares, os mercados, as Bolsas, ninguém (relevante para a harmonia das nações) liga; que se salvem, porém, nossas produções recíprocas, nossos talentos que são mútuas estendidas de mão, nossas capacidades de encher mundos específicos, suprir necessidades amigas, alumiar existências no entorno. O que parece vazio é também cheiume de si, de dotes intransferíveis, habilidades em estado de natureza – e, assim sendo, toda esterilidade de ação individual se torna uma perda coletiva; toda vontade que se extingue configura um braço a menos na obra.

E gente nunca sobra.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Encher os dias de não querer mais deles


Não sei (ninguém sabe) como podia caber tanta beleza num Ricardo Reis que disse: "Quero ignorado, e calmo/ Por ignorado, e próprio/ Por calmo, encher meus dias/ De não querer mais deles.// Aos que a riqueza toca/ O ouro irrita a pele./ Aos que a fama bafeja/ Embacia-se a vida.// Aos que a felicidade/ É sol, virá a noite./ Mas ao que nada 'spera/ Tudo que vem é grato".

Discordo de que se deva encher os dias exclusivamente de não querer mais deles; é noção conformista em excesso para quem – ao menos no que envolve o coletivo – tem gostos revolucionários, e se assemelha perigosamente demais àquela velhíssima ladainha do "você é pobre por vontade de Deus". Ninguém é pobre por vontade de Deus, é pobre porque não faltam ultrarricos desequilibrando com requintes a balança; qualquer parecença com essa manipulação medieval para manter as gentes resignadas me dá horrores e engulhos. Mas entendo que não é desse tipo de aceitação pasmada que fala o poeta com tanta lindeza: não é do abraço passivo à própria sorte quando ainda pesam carências grossas, e sim do abraço na sorte que não carece de inventar carências. Apela ao nosso bom senso o eu lírico ricardiano, não desrecomendando que se deseje – mas que se fuja, com força, de forjar o desejo inútil.

"[...] ao que nada 'spera/ Tudo que vem é grato" são versos de desabonar ganâncias, sem com isso desapoiar lutas. Que haja sonhos, que os haja a rodo; esperanças, sempre e muitas; porém exageros de querência, sobras, extravagâncias não. Delírios, não. "Embacia-se a vida" dos eternos ambiciosos pela impossibilidade de não se irritarem com o próprio enervamento, atinjam ou não atinjam a meta estipulada: se inalcançada, ela aperta a glote de seu portador com frustrações, e se alcançada ela o sufoca lentamente de necessidades novas. Trata-se duma escravidão de Midas – uma vontade que por curiosidade não sossega, e que por vício, por natureza, não se interrompe; com ou sem pretensão, acaba reduzindo o entorno do desejante a recompensas duras demais para saciá-lo a fundo. Qual a saída? Uma única: se não há focinheira que chegue para as ambições que se cachoeiram, negócio é enjaular o rio antes que se precipite. Negócio é deter o capricho antes que se godzille, enquanto ainda é frágil, ainda é ovo, ainda é pouco; cortar alimento ao projeto de monstro enquanto não vira avalanche que mal escolhe o que devora.

Ter saúde para possuir inclui deixar ir embora.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

O que me ajuda a escrever


A música de abertura de Nos tempos do imperador. Não que seja uma velha favorita ou algo assim; somente, abraçando muito redondamente a novela, simboliza para mim os dias que vêm sendo vividos ao lado da história – da História. Também tem o mérito musicalmente raríssimo de tocar dentro da cabeça sem embrulhar as sinapses.

A cadência da fala de Letícia Sabatella e Giulia Gayoso (a princesa Isabel), na mesma novela; que mui comumente é isto: vozes específicas me diapasam.

Madrugada, por mais que não necessariamente.

Silêncio. Obrigatório.

(Silêncio exterior, gente. As muletas sonoras acontecem na bagunça interna, que não consigo desligar.)

Silêncio também visual, motor, luzístico, ambiental: tevê ligada no meu campo d'olhos atrapalha horrores, mesmo no mute.

O texto da Martha. O texto da Lícia.

Goles de achocolatado sem lactose seguidos de água gelada; dão, para corpo e alma, uma sustanciazinha.

A sensação pós-refeiçãomente adquirida das infinitas possibilidades.

Embarcamento em emoções que passam de arrastão.

Os horários livres da obra que anda roubando a paciência do prédio.

Os horários em que arrefecem as dores de cabeça (amofinantes e literais).

Livros próximos, sujeitos a consultas, cheiradas, cutuques.

Francês escrito.

(Certas) estampas coloridas, essas lindas – compêndios açucarados de criatividade e harmonia.

Teimosia.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

(L)ira camoniana

Às armas e aos ladrões degenerados
Que, nas esquinas desta terra insana,
Os lares nunca dantes tão marcados
Marcaram, muito além da dor humana,
Em cobiças e guerras empenhados,
Mais do que prometia a selva urbana,
E entre gente inocente provocaram
Desesperos que nem se imaginaram;

E também às riquezas tenebrosas
Daqueles reis que foram devastando
A paz, a vida, as terras preciosas
Do povo escravizado a seu comando;
E àqueles que por tramas ardilosas
Se vão de corretivos esquivando:
Cantando mandarei rancor que farte,
Por não poder mandar todos pra Marte.

domingo, 24 de outubro de 2021

No controle


Li um tweet fabuloso do perfil Dr. Jessica Taylor – @DrJessTaylor – que dizia em inglês, do qual arrisco uma tradução aproximada (apoiadíssima naquela feita por Lorena LaGattara, compartilhadora do texto no Facebook):

"Homens violentos não 'perdem o controle'. Nunca. Na verdade, eles jamais perderam o controle. Nem uma única vez.

Sabem como eu sei?

Porque eles não 'perderam o controle' com o chefe. Ou com alguém maior do que eles. Eles não 'perdem o controle' em público. Ou na frente da sua família.

Eles estão totalmente no controle."

Análise simples, direta, espetacular. É uma verdade que a coitadização de machos pseudomente arrependidos tem de engolir: a não ser que sofram de doenças psíquicas que levam de fato ao embaralhamento de ideias, como esquizofrenias não medicadas ou afins, homens NÃO perdem o domínio de atos e decisões. Podem perder a vergonha, o pudor, o receio de demonstrarem quem são; podem sentir que a conquista já foi registrada em cartório e perder, nessa crença, o senso de urgência em manter a farsa; mas a capacidade lucidíssima de escolha – ah, essa não se esvai tão facilmente em criaturas que não usam dinheiro para acender fogueirinha (e mesmo assim há queimadores de dinheiro, como o Coringa de Heath Ledger, que não provam com isso ser inaptos para raciocinar a frio, apenas se mostram inclinados a pirotecnias psicopáticas). Perceba-se: fazer coisas ruins, até muito ruins, absurdamente ruins, não tem relação direta com a condição de se estar ou não consciente; se houvesse essa necessária relação não se encontrariam pessoas más – somente drogadas, insanas, psicologicamente dissociadas, hipnotizadas, sonâmbulas, lá o que seja. Seria um mundo lindíssimo este no qual humanos em plena posse de suas faculdades são todos bons. Mas estar no controle não é exclusivamente decidir bem; é tão simplesmente decidir.

"Ah, mas esses caras violentos também atacam mulheres na rua, no trabalho, à luz do dia!" É verdade, atacam; batem, esfaqueiam, fazem o diabo. Perderam o controle? Não. Em primeiro lugar, controle não implica grande inteligência – pode-se resolver chafurdar numa rematada burrice, planejar mal ou não planejar at all, confiar descaradamente na impunidade e f***-se. Em segundo lugar, chegar ao ápice da ação temerária (aquilo a que normalmente não se chega no dia a dia com o chefe, em praça pública, na frente da polícia etc.) é ainda tomar uma decisão, por mais que seja conscientemente a última: se o potencial assassino deliberou consigo que vai acabar com tudo, que vai matar a mulher e quem mais for e matar-se em seguida – ou praticar suicide by cops, como dizem os americanos –, por que se preocuparia com o detalhe de ser visto? Para ele é um ato extremo e de fato autodestrutivo, porém still resultante de uma escolha. Uma escolha alicerçada em séculos de machismo estrutural, de romantização da posse e do ciúme, de demonização da sexualidade feminina, de permissividade e condescendência com as vontades masculinas – o combão do horror; uma escolha provavelmente resultante de péssima educação familiar, de exemplos terríveis, de um entorno doentio; uma ES-CO-LHA mesmo assim. Aqui não falamos de crimes perpetrados por semicrianças, nem por defesa própria, nem sob influência da fome: que o agressor de mulheres seja (se existe essa possibilidade) reeducado e reprogramado psicologicamente, OK, mas coitadizado não. Compreendido como um "ultrarromântico em descontrole", JAMAIS. Bora parar de decantar paixão onde há o mais baixo egoísmo racional.

Um homem violento é apenas banal.

sábado, 23 de outubro de 2021

Sete sinopses pré-halloweenas que não sei se há, mas poderia haver


Um morceguinho passa a vir todas as noites recostar-se (por fora) na janela do quarto de um homem, que se surpreende mas não se preocupa, e após uma semana até se afeiçoa ao bichinho. O problema é que a cada noite, depois dessa semana, o morcego passa a levar um número crescente de morcegos – de início mais um, em seguida mais dois, mais três... Na trigésima primeira madrugada, o homem percebe que o vidro da janela está levemente rachado.

Um pequeno escoteiro que acaba de aprender o código Morse brinca de transformar em mensagem os rangidos de seu armário. No entanto, desacredita da própria tradução ao ler uma transcrição no caderno: "Não vá lá, ou você também vai acabar naquela caixa".

Vinte e cinco anos após o famoso assassinato de uma mulher grávida, o padeiro idoso e bonachão dum bairro pacatíssimo começa a receber visitas de duas moças gêmeas, que alegam ser filhas da assassinada, juram lembrar-se de ter ouvido (ainda na barriga) sua mãe gritar o nome do padeiro e o acusam do crime. Até onde se sabe, entretanto, somente um dos bebês da vítima chegou a ser salvo do ataque, e tanto ele quanto seu irmão eram meninos. Mesmo assim, o senhorzinho se apavora com a perseguição das gêmeas e não é capaz de denunciá-las à polícia, já que não consegue entender como farejaram seu segredo: ele foi apaixonado pela suposta mãe das jovens, porém não era seu namorado oficial e nunca teve certeza, inclusive, sobre a paternidade das crianças.

Só uma garotinha, numa família de cinco pessoas, parece notar que o olhar de um dos quadros da casa está diferente; todos andam exclusiva e nervosamente concentrados no desaparecimento do caçula.

A história de determinado livro se modifica a cada leitor que pega emprestado o exemplar – e não se modifica aleatória: arruma-se de tal jeito que acaba empurrando o usuário a autodestruir-se da maneira que mais teme.

Um (aparentemente) jovem vampiro quase se deixa consumir pelo sol, mas um rapaz desconhecido, assustado com as queimaduras que se formam no moço, impede-o de concluir o sacrifício. O vampiro se pega então de amor e ódio pelo interventor, e decide que o tal desavisado, por não lhe ter permitido libertar-se em definitivo da mulher pela qual "morria", ficará preso por sua vez à traidora, independentemente de amar outra jovem. Vem o twistão: acontece que a outra jovem não é tão outra, é a mesmíssima que levou ao desespero o pobre vampiro – e este se esgarça de dúvida entre unir ou separar o casal.

Três garotos debocham do feitio duma dessas lanternabóboras decoradas para a época, sem saber que o dono é um feiticeiro gargamelicamente mal-humorado e ressentido. Aí lascou para os guris, que passam a enxergar todas as coisas e pessoas (inclusive a si mesmos) em formato de abóbora, e assim continuarão enquanto não pagarem o preço que o ofendido achar justo.

Ou morrerem de susto.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Fora do tempo


Amo profundamente que Doris Lessing (escritora britânica nobelizada, nascida no Curdistão iraniano em 22 de outubro de 1919) tenha dito a respeito da leitura: "Há apenas uma maneira de ler, que é pesquisar em bibliotecas e livrarias, pegando livros que te atraem [...], largando-os quando eles te aborrecem [...] – e nunca, nunca lendo nada porque você sente que deveria, ou porque faz parte de uma tendência ou um movimento. Lembre-se de que os livros que te aborrecem quando você tem vinte ou trinta anos abrem-lhe portas quando você tem quarenta ou cinquenta – e vice-versa. Não leia um livro fora do tempo certo para você" (a tradução, aqui, foi libérrima, e proposital a bagunça de pronomes por motivos de naturalidade linguística). Apenas genial: não há que ler um livro fora de seu tempo certo. Essas gracinhas têm almas próprias como os amores, com a sólida diferença de livros não se magoarem ao romper-se o vínculo, e de a oscilação da maturidade morar exclusivamente do nosso lado.

Sou prova; inventei de ler Dom Casmurro com parcos 12 ou 13 anos e até hoje me assombra impressão semelhante à daquelas coisas que ninguém sabe se reais ou se delírios coletivos. Não foi um romance, foi uma névoa; apaixonei-me francamente pela descrição dos olhos de Capitu, isso lembro com firmeza (aliás foi influência decisiva em redações), porém não lembro mais do que isso – um não mais do que isso que não é de agora, corridas décadas, e sim daquele mesmo ano ou do posterior. Eu lia muito, muito e sempre, tinha sem dúvida a maturidade leitora bem servida para a idade, mas o que não podia ter – nem deveria, de qualquer forma – era o amadurecimento de vida e devido para esquadrinhar as percepções de Bentinho de igual para igual. Como eu penetraria em todas as intenções dum narrador adulto ressentido, ardiloso, covarde, boy lixo com fartos interesses de não se deixar perceber boy lixo, se minha bagagem era uma psiquê menina iniciando uma adolescência pré-internet, desconhecedora de estudos sobre o livro e de discussões que ainda mal se faziam a respeito da masculinidade frágil e tóxica? Sem instrumentos; sem condições. Anyway, não digo como Doris Lessing que o clássico não devesse de todo ser lido naquele momento: foi um marco, um portal, um empurrão porta afora da literatura infantojuvenil, em especial por ter ocorrido espontâneo e sem determinações externas. Apesar dos naturais desajustes de iniciante, fico feliz que tenha sido com o Machado queridão minha primeira vez na literatura adulta.

Dom Casmurro se revelou um despreparo mais aproveitante; outra machadice precoce não teve o mesmo efeito e virou uma lembrança sextilhões de vezes mais nebulosa. Também não li O alienista (em idade próxima à da experiência com o glorioso Doncas) porque me pediram; li porque estava de cama com alguma virose ou assemelhanças, o minilivrinho tinha vindo de brinde numa compra qualquer e ficou no quarto dando sopa. Peguei a novelita, parti pro ataque, entendi um total de menos três bulhufas. OK, recorro a atenuantes: além dos anos ainda frágeis, havia a doença botando o entendimento indisposto e havia o fato de o enredo não conter amor, ausência que constantemente me desinteressa (sim, no presente); mui arriscada estava de ir convalescer num quartinho da Casa Verde, se o doutor Bacamarte me pilhasse tentando me autoimpor a obra nesse contexto deplorável. E meus amados, idolatrados poetas românticos? bem o oposto: se na adolescência já rija e verã eu os carregava para cima, para baixo, deglutindo e decorando e copiando e reproduzindo versos – hoje os amo com o mesmo amor de velha amiga e a mesma veneração aos gênios, mas sem quase nenhuma paciência para lê-los. Por quê? Em grande parte porque não posso citá-los aproximadamente nunca, já que os muitos suspiros e estufamentos de coração tornam dificultosa a extração filosófica. Que se há de fazer; meu lado poético desverdeou, ficou mais prático, mais cerebral, faminto de pérolas resumíveis e de belezas limpas de interjeições.

Temos fases (como a lua, diria Cecília) – fases de roupa, série, novela, música, paladar; fases para umas verdades, umas conversas e não outras, para umas companhias e não outras, para uns trabalhos e não outros. Alguma dúvida de que leituras iriam se acomodar tal-qualmente em nossas demandas intransferíveis? Falo, claro, dos que JÁ SÃO leitores e carecem de conhecer e respeitar as próprias marés; com os neonavegantes o leme gira diferente, existem persuasões necessárias a qualquer educação que principia. Marinheiro velho já sabe, saca, percebe, sente e escolhe, tem as manhas, tem nada que ir na onda de modinha que não apetece.

Pra não apetecer precisa, no mínimo, valer (uma) nota.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Versenkung


É aquilo de que eu adoraria ser dotada (além de 50 milhões de dólares, naturalmente). Versenkung é um termo alemão significante duma intensa capacidade de contemplação, de afundamento no que se faz, de imersão completa na atividade realizada; ou seja: um dom mui pouco acessível a borboleteadores. Eu tento, juro que tento – OK, não juro; nunca tentei tanto assim por não ter a justa paciência –, porém me confesso ralamente capacitada para largos e longos empregos de atenção, embora meu aparente sossego exterior engane bem os incautos e me coloque muuuuuuito aquém da fronteira de algum TDAH. Não tenho a atenção deficitária e organicamente incontrolável, de modo algum; mas tenho a bichinha rebelde e entediada crônica, brincona e escapante, pouco adulta e inimiga de levar a cabo tarefices que não lhe interessam.

"Ooooh, mas até aí qualquer um!" É verdade, especialmente agora que vivemos tempos dispersos e multimídios; note-se, entretanto, que sou apenas seminativa digital, só uso internet no computador e não tenho smartphone. Já era borboleteadora mental muito antes de ser modinha. Nunca me atrapalhou na escola, fui aluna de nove e dez, entanto não o fui por amor e sim por brio: sabia o que tinha de fazer, fazia, rindo ou chorando internamente quando os estereotipadores declaravam que eu gostava de estudar. Eu O-DI-A-VA estudar, já o disse mil vezes e insisto; nada me horrorizava mais do que engolir fórmulas e climas que detestava, e em geral eu passava a maior parte do tempo de teórico estudo daydreaming bobagens e lendo livros de meu gosto (graças aos céus que não vim a este planeta com a vocação da medicina, o que tornaria o período vestibulando ainda mais insuportável). No final saía o trabalho, saía a prova, porque TINHA DE sair – e aí também me aplicava inteira a que saísse o mais perfeitamente; não era educada a fazer de qualquer jeito –, mas só Deus sabe quanto me custava renunciar à permanente brincadeira mental em prol dum foco que jamais me veio espontâneo.

Porque algumas pessoas o têm, sim, espontâneo, quando se trata de coisas amadas e prazerosas: são capazes de mergulhar hoooooooras num game até zerá-lo, estudar hooooooooras de piano ou violino, treinar hooooooooras de balé ou ginástica artística sem que essa peleja se torne enfadonha. Pessoas meditam, quedam em êxtase religioso, maratonam séries parando só para ir ao banheiro, curtem legitimamente suas conversas, resolvem o que precisam resolver de burocrático e se livram. Quisera eu! não sei se um dia serei dessas, nem remotamente; sou capaz de pôr na geladeira, me arrastando, uma das duas garrafinhas d'água que levo para o trabalho – e pensar com tédio que aaaah, depois busco e ponho a outra. Dificilmente me deixo levar por papos a ponto de esquecer da vida; meu sentimento mais autêntico é o de estar ali tentando, em verdade, escapar deles, mesmo que adore com toda a alma o interlocutor. O máximo que consigo de devoção à série mais amada das amadas são dois episódios seguidos, cada um de até uma hora e OLHE LÁ. Em praticamente qualquer lugar e circunstância, estarei menos enternecida do que deveria pelo momento: os olhos sempre correndo em torno, analisando o ambiente, ajeitando a roupa, segurando a bolsa (a neurose em que o Rio de Janeiro nos cria deve ter muito a ver com isso), principalmente se houver filmagem; ah, como ODEIO filmagens – e às vezes fotos. Se já me é dureza desapegar de mim para garrar apego no instante, com câmera então todo traço de entrega, diversão e naturalidade vai para as solenes cucuias; meu orgulho de bicho do mato não relaxa, confesso, ante olhares alheios. Tenho plena consciência do problema, da solução não – porém acredito que só venho ou venha a atingir algo semelhante ao Versenkung nas situações de liberdade e privacidade mais absoluta.

"Você quer o impossível." Todos queremos, e ser impossível ou improvável não costuma nos impedir de querê-lo; viver como uma antiversenkungada renitente, aliás, já me choveu ocasiões de sonhar impossíveis, notadamente quando eu deveria estar fazendo coisas bastante prováveis e inclusive obrigatórias. "Mas como o impossível ajuda?" Não ajuda e atrapalha consideravelmente; sou desfocada, mas prática. "Então...?" Então não há saída – ou entrada em meu próprio centro – que me pouse com plenitude, e o mais próximo do jeito é (sempre foi) andar como aquela personagem involuntariamente flutuante do Orfanato da Srta. Peregrine que usa pesos incríveis nos sapatos para fincá-la ao chão.

(Claro: 50 milhões de dólares me permitiriam descalçar os sapatos eternamente nos trabalhos e burocracias. Rima não seria, mas era uma boa parte da solução.)

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Limites


Acho engraçado e tocante – ainda mais isto que aquilo – quando o querido João Vicente conta, no Papo de segunda, que em plena infância/adolescência se sentia desconcertado ao ver que não lhe proibiam coisas; tão desconcertado que, na direção exatamente oposta ao costume dos pequenos, chegava a interromper longas ligações telefônicas ou deixar de ir a algum lugar INVENTANDO que a mãe "estava em cima" e não permitira. Claro, não é que o lindo fosse nenhum largado na vida, longe disso (e pelo homem que se tornou podemos constatar que sempre foi muito amado), porém certamente se ressentia um tanto de uma gestão que talvez se mostrasse "democrática" demais para suas necessidades e inseguranças; por sinal, podemos dizer que é a praxe: filhos, filhas ADORAM limites, ainda que em geral de maneira bem mais inconfessa. Adoram limites mui igualmente ao modo como gatinhos adoram caixas – com a mesma gana de proteção e abraço, a mesma carência dum certo aperto; e se a proverbial rebeldia dos gatos necessita duns espaços fechados para se acomodar seguramente em casa, que dirá a dos humaninhos, que ao contrário dos irmãos felinos não nasceram com o instinto poderoso do que devem, podem, são.

É a lógica do aconchego. Se alguém, sob pretexto de tornar a casa mais aconchegante, cobre-lhe a área INTEIRA de colchões e almofadas e futons, acaba criando um espaço que é uma maçada, por não permitir brincadeiras e correrias que pedem chão liso, por não sustentar direito os pesadumes da vida prática – armários e mesas, por exemplo –, por ser imolhável no banheiro e na cozinha, e por isso mesmo inutilizável ou (o que é mil nojentas vezes pior) um imenso criadouro de mofos mil. Para ser útil, uma vivência não pode ser toda acolchoada; o que começa até divertido perde a diversão em uma semana para os mais renitentes, e em no máximo um dia para os seres típicos. É preciso delimitar o aconchego. É preciso que os colchões, as almofadas, os futons fiquem restritos a cantinhos específicos de estar enrolado e quente e macio, e mesmo assim com superfícies duras o suficiente no entorno para apoiar copos, xícaras, livros, notebooks. Aconchegar é isto: não disponibilizar colos infinitos em todos os cantos, já que assim se transformam em nenhuns, e sim conter o protegido num colo demarcadamente protetor, que só é protetor porque contém.

Vimos ao mundo com um manual de instruções bem ridículo, com pouquíssimas funções programadas: mamar, chorar, balbuciar, alcançar, mais uma meia dúzia de ações. Mas são instintos que não nos servem por muito tempo nem são substituídos automaticamente por atualizações do sistema; é o preço da racionalidade – ter de aprender, ou antes ter de ser ensinado a. Famílias, os pais sobretudo, são nossos "instintos terceirizados"; elas, eles nos socializam, fazem do balbucio uma fala, colocam o egoísmo bruto sob polimento, lapidam a percepção do eu em autoestima saudável, garantem que não nos alimentaremos do que não é alimentício, que não invadiremos a área de outros eus, que estaremos abrigados de frio ou calor (especialmente do frio: levar um casaquinho é obrigatório), que seremos imunizados contra doenças evitáveis, que não viraremos a noite assistindo a porcarias se na manhã seguinte temos de ir a diferentes espaços de aprendizado e socialização. Cuidadores são o abraço essencial – o afeto que também é restrição; se não apertam, abraços não transmitem calor e segurança, e se apertam excessivamente viram violência, cortam a circulação e o ar.

Amor aos que cuidam: também precisam ser cuidados quanto aos limites de limitar.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Destempo


"Saudade de um tempo?" (palavras de Mia Couto); "Tenho saudade é de não haver tempo".

Assim, assim mesmo: não tenho saudade de tempo nenhum específico, nenhum encadeamento particular de rotinas e feitos, principalmente considerando que na maior parte das épocas idas eu era aluna – e, céus, por coisa alguma deste mundo gostaria de me ver novamente aluna, debaixo das obrigações respectivas; nada de estudos forçados, trabalhos, provas, alunice agora somente por diversão. "Mas você não sente falta de dias, acontecimentos?" Eu lembro dias e acontecimentos, o que não significa dizer que sinta falta deles; sentir falta me parece, necessariamente, ter uma implicação de querer de volta, e querer de volta tem todas as implicações do pacote completo: aceitar no combão as antigas idades, os velhos medos, incapacidades, micos, as não-sabenças do futuro onde já moro. Eeeeeeu, heeeeeein, pois se vou cair nessa esparrela! jamais, jamaisito; talvez felizmente, sou dotada de impressões que coexistem num abraço paradoxal – o encantamento pelo que é romântico e a inaptidão para romantizar as etapas vividas, cujos perrengues recordo que é uma beleza. "Então você nunca foi feliz?" Ao contrário: sempre fui, de maneira geral; tanto que sempre tendi a acreditar nos melhoramentos e na desnecessidade de repetições. Se tudo foi válido, nada honra mais o que foi válido do que colher e mastigar em paz suas consequências.

Porém sim: tenho a saudade impossível do não tempo, a gula eterna de não pertencer a nenhuma realidade com prazos e horários. Não quero o que já houve, quero o muito improvável de haver – a liberdade dos pequenos contentamentos que não se encerram, dos compromissos que não pressionam; quero as férias desacorrentadas da contagem regressiva, os fins de semana sempre infinitos até a musiquinha final do Fantástico, as viagens isentas de passeios agendados e gentes apressantes, de guias possessivos e excursões cronômetras. Quero o destempo, o intempo; quero o adentramento pelo pitoresco de uma cidade sem ninguém esperando, sem encontro marcado, sem combinação feita; quero a flânerie sem grupo, sem chamadas alheias que não pertençam também ao atempo, sem lojas que se fecham, sem restaurantes que não servem antes ou não servem depois (não, não desejo que funcionários trabalhem indefinidamente, desejo o oposto – que brinquem, valsem e passem períodos incontáveis com as famílias; dentro da atemporalidade mágica, lojas e restaurantes funcionam por si mesmos e pessoa alguma bate ponto, ou bate na hora que melhor lhe convier). Que não é coisa para este mundo, desconfio, mas posso por causa disso deixar de querer? Assim é que desde o princípio sou ou fui estruturada: sonhando com a paz cronológica – aquele estado de felicidade de quem boia no que ama, entregue, dono único do momento, liberto de qualquer risco de invocação ou insolação.

(Bem por isso o céu há de ser mesmo integralmente livre do tempo: nele é que todos os focos do amor estão.)

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Incompreensões naturais


Acho bonitinho que Henri Bergson – filósofo francês nascido há 162 aninhos exatos – tenha dito que "a inteligência é caracterizada por uma incompreensão natural da vida". Sei que Bergson era um intuicionista, ou seja, muito mais propenso a valorizar a apreensão do real pela intuição do que pela intelectualidade que analisa e esquadrinha conceitos; assim sendo, é provável que na frase em questão (cujo contexto infelizmente ignoro) o autor estivesse DE FATO criticando a inteligência em sua forma racional, de fato apontando a coitada como sozinhamente incapaz de compreender o mundo. Embora eu concorde com o filósofo e acredite que somos, mesmo, muito mais atravessados pela intuição do que nos sentimos confortáveis em admitir, permitam-me encarar a fala do escritor como um elogio – ainda que descontextualizado e involuntário – à inteligência, digamos, tradicional; afinal, dizê-la naturalmente tapada diante da vida que vê não exclui considerá-la dotada de voz para fazer perguntas. Milhares, trilhardares, milquinquilhares de perguntas. Se a inteligência mencionada por Bergson é aquela analítica que, não entendendo friamente, ali empaca e ali fica batendo cabeça, sem dúvida não passa duma idiota; mas se a vemos como aquela que constantemente tropeça e constantemente se desvia, mudando de rumo para continuar tateando sem sossego, aí não há de se ofender das acusações de incompreensão: ela já se sabe assim e pretende seguir assim às apalpadelas, brincando de aprender com humildade sedenta.

Inteligências legítimas têm plena consciência do quanto são insuficientes. Estão perenemente pasmadas, reconhecedoras de que hipóteses formuladas num dia podem ser desmentidas no seguinte, e nem por isso se sentem desencorajadas da andança, pelo contrário; são apegadas ao caminhar, não necessariamente ao caminho, do qual se veem capazes de abrir mão sem resistência significativa. Dói, claro, desembarcar de mala e frasqueira dum trajeto já tão comodozinho, mas é o que é, paciência: inteligências que não envergonhariam Bergson são pacientes. Têm mais fascínio pela chance de um dia estarem certas do que receio de irem errando – e irem incorporando os erros ao diário de bordo. Têm mais ternura pelo que podem vir a saber do que vergonha de soltar-se do que achavam que sabiam. Fazem exames, fazem cálculos, porém vivem mente-abertas para serem igualmente traspassadas pela intuição que lampeja conhecimentos novos; basicamente não se negam ao novo, se ele justifica a confiança.

Não me parece que, para inteligências merecedoras do nome, haja ideias insubmetíveis ao novo – a não ser as que têm relação com direitos humanos, inquestionáveis, e com questões religiosas, que operam no âmbito da fé e são trabalhadas em outra instância; fora isso, cabeças inteligentes estão prontas para remoldagens sociais, científicas, artísticas, técnicas, históricas; abrem a boca de bom espanto ante evidências recém-colhidas e se deixam, molinhas, permear por elas, num processo ávido e interminável que faria Piaget orgulhoso. Não se trata de não ter os próprios pensamentos, trata-se de não mantê-los petrificados e, consequentemente, quebradiços, sujeitos à erosão violenta do mundo; trata-se de, conservando a raiz, curvar-se também ao vento. Inteligências não lutam contra provas, flexionam-se; não pretendem por cisma mudar o lado do sol, crescem estendendo-se para ele. Aprendem, buscam, tentam, adaptam-se, e bem cedo se convencem de não haver futuro numa individualidade excessiva que não sai de esvoaçar-se contra uma mesma, inexorável vidraça.

Os tempos passam e a inteligência não fica – e é por isso que também não passa.

domingo, 17 de outubro de 2021

O banco alto


Como disse um tweet certeiríssimo do perfil Diferentona, "A pessoa adulta que pega ônibus e não escolhe o banco alto ela já matou a criança que mora em seu interior". É verdade e dou fé; não há motivo aceitável – a não ser, talvez, com atestado médico desrecomendando instalar-se sobre o movimento mais ativo das rodas – para não acorrer ao banco alto prioritariamente, e de lá ter a melhor das visões da rua e do ônibus mesmo; quanto mais não seja, é diferenciado, e espíritos ainda moços tendem a amar coisas diferenciadas em detrimento das repetices. Espíritos ainda e permanentemente moços são por natureza curiosos, o que os faz abordar a diferença com encanto, receptividade, interesse: é dessa perspectiva de destaque, é dessa plataforma de exceção que pipocam ideias despercebidas aos que preferem atar o olhar à rotina térrea.

Artes nascem do banco alto: porque alguém se evola do rés-do-ônibus, achando que a janela para a vida de sempre não basta, é que as pinturas abrem janelas alternativas, não raro impossíveis; e as esculturas inauguram formas apenas cogitadas; e a música voa muito acima das sonoridades do expediente; e as literaturas escancaram cortinas para novos mundos inteiros, para o interior de pessoas jamais encontradas, jamais encontráveis, habitantes de tudo quanto não se suspeita do banco baixo. E ciências? só há, também, porque mentalidades trepadoras de banco não se conformam à praxe do que se vê; é FUNDAMENTAL que se veja mais amplo, que se considere um tudão para muito além do só espaço onde se pisa, que se flagrem soluções muito fora do lugar batido, dos recursos constantes e encarcerados. Existem robôs, computadores, vacinas, pen drives, transplantes de órgãos, videogames, batedeiras por ter havido – e haver – os corações tomados de eros e de erês que subiram com paixão ao banco alto, posto de espiar o mundo com avidez gulosa.

Vocês lembram Sociedade dos poetas mortos, claro, e sabem perfeitamente que não poderia ser mais bem traduzido o banco alto way of life do que NAQUELA cena ilustradora da altura como metonímia; porém (arte que é) a cena vai mesmo mais longe: às vezes não se captam caminhos bastantes a partir dos bancos que, embora incomuns, já estão ali previamente colocados; às vezes é necessário também INVENTAR plataformas imprevistas, desbravar mais ainda as possibilidades dentro de impossibilidades aparentes. Ver púlpitos ou observatórios subíveis onde a rotina só vê mesas. Enxergar câmeras no que o hábito diz serem caixas, instrumentos no que a lógica acusa de copos d'água ou panelas. Viajar no banco alto é pouco: urge desenhar janelas, meu capitão.

O essencial é visível só sob condições anormais de temperatura e pressão.

sábado, 16 de outubro de 2021

Não combinam


Calo e tamanco; criança e sofá branco; solavanco e coluna; duna e olho descoberto. Marrom (não a Alcione) e Roberto. Pássaro e drone. Aula e fone. Hermione e Malfoy, regras e anti-herói, cobiça e leis. Em boca inglesa, o erre francês.

Sala de casa e sapato de rua, merenda que se quer crua e a que se quer na brasa; asa e gaiola, cabelo e cola, verão e gola, mar e viola. Escola e ditadura. Celular e a sagrada, SAGRADA sala escura. Gastura e acerola.

Cólica e friagem, poste e garagem, balança e bagagem, grilagem e vizinhança, trança e preguinho de cadeira. Madeira e água; mágoa e confiança.

Poeira e rinite, ladeira e bronquite; hits e paciência; inocência e fascismos. Os pés e os abismos; as mãos e o alheio. As mães e o repouso. O pouso e o espinho. O ninho e a borrasca. A casca e a certeza, a clareza, o acerto, o acesso; o sucesso e o anseio.

Salário e Natal (e Estante Virtual). Jornal e milionário, bilionário, grande empresário. Silêncio e vizinho. Remédio e vinho. Leitura e tédio; preguiça e ensino médio. Molho e colarinho.

Macacão e banheiro; relógio e brasileiro; faísca e celeiro; Ocidente e odalisca. Quem belisca e quem sente. Quem mente e quem paga; a praga e o Egito. (O) mito e (a) gente.

A tonelada e o braço, hospital e buzinaço; cupim e escada; estrada e jardim. Feijoada e alecrim. Estopim e despreparo; disparo e sorte. Bolsonaro e Aparecida.

Morte e vida.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Feliz dia do


Oi, meus amores, tudo bem? Vamos pegar a folh... Esqueceu, meu filho? DE NOVO, meu filho?? Eu não disse que o número estava contadinho? Tá, tá, toma esta aqui para acompanhar a leitura, mas escreve no caderno e depois me devolve a folhinha, certo? Então vamos lá, turma... Gente, cadê o texto que ainda ninguém pegou? Bora, meu povo, acorda! Enquanto vocês pegam, deixa eu ver quem está aí hoje... Ana Carol... a outra Ana Carol... as Camilas... Carlos Hen... ah, esse só no segundo tempo... pananã, pananã, João Pedro Albuquerque... João Pedro Felício... João Pedro Moreira... João Pedr... ah, foi transferido... Júlia... Júlia Peixoto... pananã, pananã... Matheus Amparo... Matheus Gonç... senta, João! DEIXA A MANUELA, JOÃO!... çalves... Matheus Honório... Matheus Lima... Matheus Swystakosky... Patri... JO-ÃO!!! pananã, pananã... Vitória faltou de novo?? Né possível, gente; alguém sabe dela? Bom, vamos lá... Todo mundo com o texto? Criatura de Nosso Senhor, ISSO É JEITO de tratar a folha? Caramba, falei tantas vezes, eu meeeeesma tirei cópia, tá contado... aaaaai, aaaaaaai... Vamos ler, vou ler com vocês... Quê, Matheus? Banheiro AGORA, Matheus? vocês subiram não tem quinze minutos! Ah, filhote, tenha a santa paciência, guenta aí mais um pouquinho pra gente fazer a leitura e a correção. É, pelo menos até o segundo tempo, isso. Então podemos? podemos? "Missa do Galo", Machado de Assis... "Nunca pude entender a conversação que tive (JÁ ESTOU LENDO, Joãããão!!) com uma senhora, há muitos anos (ô Swystakosky, algum problema? tão dando doce ali na mesa da Júlia?), contava eu dezessete, ela trint... (SEM OR AMADO. Posso continuar? posso?? Catarina, ajeita a máscara!) ela trinta." Júlia, eu sei que o Matheus é lindo, mas vamos focar um pouquinho aqui, querida. Não entendeu a número 1? Tudo bem, meu amor, vamos corrigir já, já, certo? Bora prestar atenção? "Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho..." Quê, Valentina? Sou, Valentina, sou casada; mas por que pitombas essa pergunta agora? Acompanhem o texto, criaaaaanças do meu Brasil! Só um tempo hoje, pelamor! Felício, guaaarda esse aparelhinho duzinferne! "... com um vizinho irmos à Missa do Galo, preferi não dormir..." É, eu sei, Rafael, que você também não dormiu; tô vendo. Isso tudo foi game até as 3h, né, meu filho? ai, meu santo, depois vocês não... SENTA, JOÃO! CARAMBA! Não, minhas coisas lindas, não marquei ainda a data da prova, falo pra vocês na próxima aula... Não, não tenho grampeador aqui, Catarina... grampeia depois, Catarina, acompanha e corrige primeiro, tá? EI, QUE QUE É ISSO AÍ? SALÃO DE BELEZA? GUARDA ISSO! Lindões, a gente poooooode continuar? heeeeeein? Então... onde eu tava?... "combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado..." Não, meu amor, é fôôôra mesmo, fechadinho; pretérito mais-que-perfeito, lembra? Não lembra? Isso, exatamente, é que a gente fala mais tinha sido, muito bem; mas na escrita ele aparece muito assim, reparem... MATHEUS E JÚLIA, posso PELO MENOS ser madrinha do casamento? Nada a ver? sei, sei, tô bem sacando... "que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas". Aí, até Machado concorda que vai dar casamento. "A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta..." Que que tem sua mãe, Marcelle? Ah, também é Conceição? "... e a mãe desta acolheram-me bem quando vim de Mangarat..." JOÃO, MISERICÓRDIA! Poxa, Matheus, você ainda não tá com cara de quem tá explodindo pra ir ao banheiro não. Tem certeza de que é tão urgente? já vai bater o sin... Aí, bateu. GENTE, GENTE, VAMOS ACABAR A LEITURA AMANHÃ, HEIN? Ôôôô filhote, tá esquecendo nada não? A folhinha, rapaz! Não, não acredito que você DESENHOU na folhinha!... Eu não disse que... bom, COLA essa no caderno que NÃO VAI ter outra, ouviu? Podem ir pra Educação Física sim; até amanhã, meus amores, não corram na esc... JOÃÃÃÃÃÃO!...

(Obs.: Nenhum aluno – e nenhum conto machadiano – foi ferido durante a realização deste texto; todos os personagens apresentados são fictícios e qualquer semelhança com pessoas ou situações reais é mero magistério.)

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Meu grande sonho é ser gente


Foi o desabafo dilacerante de Rosângela Sibele, a mulher de 41 anos que (quase) furtou alguns itenzinhos alimentícios e, por causa do (quase) furto equivalente a R$21,69, passou 18 dias na cadeia: "Meu grande sonho é ser gente. Eu ainda não sei o que é isso, não sei o que é ser mãe, filha, irmã". Se doeu estraçalhantemente ler a declaração dada por Rosângela em sua soltura, nem consigo imaginar a dor de VIVER essa declaração mesma – dormir, acordar, respirar, mover-se sob a acachapante impressão de não pertencer à espécie dos demais, de morar num exílio permanente sem distâncias, dentro de um só habitat coletivo. Causa vertigem só o pensar do pesadelo, a realização mental ligeiríssima do que é estar alijado de todos os menores componentes da rotina com-teto, do banho disponível, da mesa de refeição, do horário de refeição, do armário de roupas, do travesseiro, da chuva que não molha a cama; e causa um estranhamento tanto mais amargo concluir que os possuidores de seu próprio espaço isolado são, justamente, os únicos incluídos na coletividade, enquanto os que habitam espaços comunitários parecem ser automaticamente apartados numa bolha invisível.

Rosângela, dependente química, conta que está tomando medicação (provavelmente fornecida pelos Centros de Atenção Psicossocial que a acompanham) e indo aos Narcóticos Anônimos; quer ver os filhos, abraçar a família, pedir perdão, internar-se numa clínica – mas isso em geral não é informação que comova os que só perdoam aviões e helicópteros recheados de drogas, e falam com desprezo dos adictos pobres como "maconheiros", "noia", "cracudos". Rosângela, que ia saindo da loja somente com uma latinha de leite condensado e uma Coca gelada de 600ml, já estava até devolvendo os itens nas mãos da vendedora quando policiais a fizeram assustar-se e correr – mas isso tende a não justificá-la sob os olhos dos que, curiosamente, justificam com muita desenvoltura os donos de milhões em offshores que lucram enormidades IMORAIS com a desgraça de seu próprio país. Rosângela (pessoa como todas) "só estava com muita fome, queria muito comer um miojo, estava doida para tomar um leite condensado e um refrigerante gelado" – mas esses pequeninos, explicáveis desejos não adoçam o olhar dos que pagam pau para os que desejam NOSSAS empresas nacionais, NOSSOS recursos naturais, NOSSO dinheiro, NOSSAS florestas. A balancinha de humanidade tem uma propensão singular para pesar contra aqueles que ninguém gostaria de ser (embora não façam mal ou o façam com insignificância), e a favor daqueles que se temem mas invejam (ainda mesmo que devastem tudo no entorno). Não julgamos tão simplesmente nossos próximos, e sim nossos fantasmas.

É bem isto, admitamos: pessoas, talvez em triste maioria, empatizam radicalmente não com o que elas são ou parecem, mas com o que GOSTARIAM de ser – além de desempatizar, estremecendo, com o que temem tornar-se. Na tentativa de se recusarem ao horror de projetar-se numa situação muito mais aparentada de sua classe social, como a de precisar furtar alimentos ou buscar destroços deles em açougues, projetam-se em circunstâncias milhões de vezes mais impossíveis à sua realidade: acumular cifrões, colecionar objetos de luxo e ter sentimentos (?) de grande empresário, por exemplo. Rosângela, os habitantes de prédios oficialmente desocupados, os pedintes, os dependentes químicos que sufocam em sua dependência os reclames da pobreza – vivem universos de dor que também sufocamos sob fumos de superioridade moral, que criticamos para fingir uma distância que não existe, que fingimos não ver como crianças que fecham os olhos para não serem vistas. Deles, desses pequeninos do mundo, é que somos, entretanto, os irmãos mais chegados; a eles é que somos semelhantes; na realidade desses maiores esmagados é que podemos cair, enquanto não poderíamos "subir" nunca (Deus nos defenda, aliás) à dos maiores esmagadores. E num dia não muito demoroso, espero, havemos de nos ver unidos e reforçados por essa consciência luminosa.

Mas a gente ainda não sabe o que é isso.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

O que há num nome


Em 13 de outubro de 1992, Prince lançou aqueeeele álbum com um símbolo na capa que foi promovido a nome do artista. Não sei ao certo o que a criatura estava pensando; se era estratégia de marketing plana e simples, imagino tenha funcionado, já que era impossível os fãs não se irritarem com a impronunciabilidade e, consequentemente, não comentarem o assunto a rodo; mas se era muitíssimo da vontade e do coração que um som virasse um desenho, e que esse desenho finalmente captasse uma essência humana, negócio flopou de cara, porque Prince no máximo conseguiu se tornar aquele-cantor-anteriormente-conhecido-como-Prince. Não admira, nomes pedem fonemas – mesmo contando com gestos correspondentes em línguas de sinais, continuam a existir em simultâneo como um grupo de fonemas; nomes vibram o ar, vibram as cordas vocais, são estruturas chamáveis, gritáveis, sussurráveis, feitas para a citação e o vocativo, o amor e a bronca. Tem cabimento nenhum, ó Senhor, restringir à materialidade visual algo que é para estar em boca de Matilde, bombando na conhecidosfera.

Nomes são talhados, por exemplo, para a rima; sem o aspecto sonorável, como teríamos Vinicius de Moraes dizendo que "tem um cheirinho de murta/ E é suave como a pelúcia/ É acorde que nunca finda/ É coisa por demais linda/ Teu nome, Maria Lúcia..."? Cadê Castro Alves relatando que "a vez primeira que eu fitei Teresa,/ Como as plantas que arrasta a correnteza,/ A valsa nos levou nos giros seus..."? Nomes são talhados para os acrósticos que tias compõem no aniversário de sobrinhas; para títulos de romances, novelas, filmes; para canções apaixonadas de musicais ("Mariiiiiiia!/ I've just met a girl named Mariiiiia..."); para os alto-falantes de mercado/shopping que promovem reencontros de papais e mamães com crianças em pânico; para os alertas peremptórios e as zangas compridas ("Godofredo Henrique Matias de Albuquerque, pare com essa bagunça AGORA!"). Nomes carecem de ser repetidos, repetidos, repetidos mil vezes ao dia na mímica discreta dos lábios ou a pulmões pleníssimos, mascados com todas as entonações do amor e todo o entredentismo da raiva, toda a tristeza dilacerante da decepção e todos os cinquenta tons de orgulho. Assim não sendo, a individualidade fica como que suspensa: não se consegue levantar do papel a marca maior do eu, não se pode acordá-lo para a sangue-corrência efetivamente viva.

Sei, Julieta suspirou em sua paixão e sua inocência sobre "o que há num nome? A rosa teria o mesmo perfume, se fosse chamada por outro nome" – com o que, a jovem Capuleto me desculpe, não posso concordar; já se imaginou se um espírito de porco que estivesse em dia de ovo virado houvesse resolvido, em represália, chamar a rosa de (sei lá) esglerovídia? Pode-se conceber que Santa Teresinha viesse a ser conhecida como a Santinha das Esglerovídias? ou que uma existência feliz e regalada fosse um mar-de-esglerovídias? Pois então; impossível atribuir a mesma poesia, a mesma doçura, e nem cabe dizer que seria a mesma flor ou cor (quero ver pintar um quarto infantil em tom esglerovídia-bebê), justamente porque camadas e camadas de beleza simbólica moram no véu de significante que embrulha o significado. Não é – nunca é – só um nome; é a música da pronúncia, é o efeito que faz encaixado numa cena, numa serenata; são as rimas que permite, a usabilidade em poesia, a desdobrabilidade em metáforas e comparações e aliterações e refrões. É o ícone, o fetiche, o efeito coraçãnico, o tremelique de alegria ou pavor que dá n'alma. Capuletinha que mais uma vez me perdoe – mas nós, que amamos Romeu e Julieta, amaríamos da mesma forma Odilermino e Pafúncia? Asclépio e Cunegundes? Glicérisson e Nonigleuda? Não creio, não creio.

Nossos amores poéticos têm um mar de frescuras no (nome do) meio.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Líder do Mercosul

(Pegando carona nas pirlimpimpices de Guilherme Arantes)


Eu vivo sempre torcendo pro Lula
Porque todo cientista
Quer que seu estudo exista,
É bem prático

Eu vivo sempre torcendo pro Lula
Sou nenhum capitalista
Se fartando num senhor
Transatlântico

Eu vivo sempre torcendo pro Lula
Quero o povo com dinheiro,
Retomando o seu espaço –
Que bonito!...

Eu vivo sempre torcendo pro Lula
Porque sou inteligente
E só quero presidente
Que puser comida no prato

Pôr o Brasil mais uma vez nesse planeta
Nos livrar da praga
Ficar bem na fita
Voltar a ter uma nação mais amorosa
Bombar lá fora como líder do Mercosul

Pôr o Brasil mais uma vez nesse planeta
Nos livrar da praga
Ficar bem na fita
Voltar a ter uma nação mais amorosa
Bombar lá fora como líder do Mercosul

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Meninastê


Neste 11 de outubro, Dia Internacional da Menina, quero abraçar minhas pequenas companheiras de gênero que, na escola, às vezes tinham ou têm de mandar os colegas irem na frente, porque no momento não dava/não dá para levantar da cadeira. Quero abraçar as pequenas que mal têm recursos materiais e morais para lidar com as mudanças em seu corpo, com os seios que passaram a inchar por vários dias, com as dores de cabeça que não raramente causam enjoos, com as cólicas que perturbam o entendimento da matéria; quero enviar minha amorosa solidariedade às tantas, tantas! que nem fazem ideia por que essa dolorosa metamorfose acontece, que tão recorrentemente não contam com quem lhes explique, com quem lhes compre o absorvente antialérgico o bastante para não deixá-las em carne viva, resistente o bastante para não se desfazer em montículos de algodão na primeira hora – ou apenas um absorvente que seja, não uma toalhinha mil vezes dobrada e lavada, não um improviso de papel higiênico, uma miolada de pão. Jovens senhoritas subitamente notificadas de que agora são mocinhas e não entendem, como entender?, o que isso significa e o que há a ser comemorado, já que há muito suas novas curvas atraem atenções nojentas e, parece, é uma tendência que caminha para a piora.

Quero, aliás, acolher com tanto afeto essas jovenzinhas assediadas quanto arrastar com a força do ódio, no asfalto quente, o nariz dos assediadores que violentam a liberdade, a naturalidade, o conforto das sobrinhas e filhas e vizinhas e enteadas – muito cedo "informadas" de que, mesmo na própria residência, não devem usar roupas curtas para não provocar. Quero apoiar as que nem em suas mães encontram crédito e apoio, as que são as meninas mais velhas e se submetem ao horror na esperança de proteger as mais novas, as que precisam tampar todas as fechaduras e planejar o dia de modo a nunca serem achadas sozinhas. Quero enviar minha solidariedade feminista às que crescem limpando casa, fazendo almoço, assumindo maninhos bebês como filhos enquanto irmãos com pernas e braços saudáveis jogam a louça na pia e videogame no sofá.

Quero aninhar em empatia todas as que foram educadas na crença de que namorado puxa mesmo o braço, homem ciumento é homem apaixonado, amiga que dá alerta é futriqueira invejosa. Quero reprogramar para a autoestima a cabecinha das que (como já vi escrito resignadamente em redação) ousam apenas sonhar em ter um companheiro "que não me bata"; das que se sentem lisonjeadas, em sua carência absoluta, com os claríssimos primórdios dum relacionamento abusivo; das que entabulam uma gravidez ainda quase na infância, não somente porque ignorantes dos meios de prevenção como porque seduzidas pela perspectiva de serem alguém – e terem alguém. Quero animar, amparar, desmentir as que atravessaram seus primeiros tempos desprezando os próprios corpos, considerando inadequados os próprios cabelos, crendo-se tristemente feias demais, gordas demais, magras demais, altas demais, baixas demais, sardentas demais, retas ou sinuosas demais, peitudas ou despeitadas demais para merecerem o básico de atenção, validação e amor.

Irmãzinhas minhas, daqui e do mundo: que a História caminhe – ou que seja, na marra, empurrada por nós – até o instante mágico em que terminam todos os assédios, todas as explorações, todos os preconceitos; que ainda dentro de nosso tempo nenhuma de vocês seja mais assediada, julgada, diminuída, inferiorizada pela aparência, pelo estilo, pela orientação; que nenhuma se veja conduzida a anorexias, bulimias, mutilações, adultizações precoces, desperspectivas. Que talentos científicos não se percam por ninguém se ter lembrado de estimulá-los; que a dependência financeira em relação a um homem seja diuturnamente desestimulada; que a maternidade e o casamento nunca sejam apresentados como compulsórios; que a cultura patriarcalmente cultivada de competição com outras gurias seja, em definitivo, trocada pela consciência sororíssima de que somos nós por nós, e de que mexeu com uma – mexeu com todas.

Meninastê: que a menina que em nós habita proteja meninas outras, onde quer que cada uma habite. We can do it.

domingo, 10 de outubro de 2021

Arte do absurdo


"A poesia não pode ser lógica", dizia José Luis Hidalgo, poeta e pintor espanhol que teria hoje completado 102 anos; "a raiz mesma da poesia reside precisamente no absurdo".

É fato. Romances e demais obras de ficção, em quaisquer mídias, estão atados à verossimilhança – à verossimilhança interna, sublinhe-se, não ao realismo documental; mas dentro em si, anyway, as ficções têm por princípio o compromisso de fazer sentido, e aliás todo desviozinho é imediatamente esquadrinhado entre seus leitores ou espectadores, que não perdoam nem podem perdoar escorregões de roteiro. Melodias seguem a própria lógica partituresca, são redondíssimas em suas matemáticas. Pinturas, querendo, conseguem parecer fotografias de tão casadas com o real, tanto como esculturas podem acontecer de sair fiéis a ponto de alguém lhes descer um catiripapo na cabeça dizendo: parla!...

Poesia não; não é capaz de se colar no andamento da realidade ainda que queira, ainda que seja tirada de uma notícia de jornal, até porque nessa circunstância a notícia de jornal caminhará também no absurdo. Mesmo em poemas aparentemente descritivos ou narrativos, que iludem a gente com seu ar circunspecto de denotação, olhem-se os olhos da fera de perto, atentamente: Mr. Hyde está ali manifestado na pausa que não é a de nosso natural, na inversão esdrúxula, às vezes no simples fato de se sacrificar a clareza à rima (ei, não é uma crítica: AMO rimas). Poemas suspiram exclamações inusitadas, serram sílabas para encaixar-se na métrica, vão buscar metáforas sabe-se lá em que criadouro de aproximações insólitas, repetem-se – quando cismam – à exaustão, debruçam-se sobre o detalhe do detalhe do detalhe se lhes apraz, "esquecendo" toda a guerra do entorno. Poemas não precisam concluir pensamento; se muito lhes agradar, desmentem no verso final tudo que vinham de construir; brincam com a aliteração pela brincadeira em si mesma, ou jogam no ar um amontoado de onomatopeias, caracteres alienígenas, termos randômicos sorteados no dicionário; divertem-se sem necessariamente um propósito redondo; assumem toda, absolutamente TODA forma que o poeta estiver na veneta de lhes dar. São crianças – vez ou outra vestidas com o terno sisudo do avô, porém crianças; criam seus próprios brinquedos e bagunças seja no quintal, no sítio, no terreno baldio, na sala do apê, no colégio interno. Tal-qualmente crianças, poemas podem até engravatar-se e recitar a tabuada por fora, mas são dadaístas, rebeldes, iconoclastas, delirantes, fantasiantes por dentro, em seu núcleo de lava absurda perenemente pronto para derramar-se aos borbotões.

Poesia é o vulcão das artes: nem toda a neve formal que venha a lhe cobrir o topo impede o magma das veias de estar. E jorrar.

sábado, 9 de outubro de 2021

Jardim do Éden

O que acho engraçado na obra do artista britânico Briton Rivière (1840-1920) é que sempre, sempre havia um jeitinho de enfiar imagens de animais na cena retratada – principalmente cães amorosos e fiéis, lindos, lindos. Uma das pouquíssimas pinturas em que isso não sucede é a acima reproduzida, Garden of Eden, que curiosamente (o próprio nome o sugere) seria uma das mais apetecíveis para bichinhos mil, de mil adorabilidades e perfeições. Há animais pressupostos sim, prováveis cavalos – ou um provável cavalo – em leve silhuetamento além da grade, no meio do fog que presumo ser londrino; mas de maneira tão incidental, tão oblíqua, que nem convém trazermos o(s) figurante(s) aos créditos. Gosto de imaginar que Rivière se divertiu burlando todas as expectativas dos conhecedores de seu portfólio e, de quebra, suspirou muito de ternura lá-consiga ao pintar essa que é certamente uma das mais tocantes odes ao amor, verbal e não verbalmente eloquentíssima.

Que se espera do Jardim do Éden? Viço, verdura, cores, flores, bichos em profusão vivendo como mostram aqueles folhetos religiosos que distribuem na rua: leões lambendo ovelhinhas, jacarés servindo de iate a patinhos, gaviões dando carona a ratinhos de parapente, só a mais absoluta alegria unicórnica. Além de um Adão e uma Eva, claro, fazendo as honras da melhor das casas. Pois nosso Briton meteu um – sabe do que mais? vou desfocar neste meu querido Éden tudo, tudo que é secundário àqueles que andam mergulhados no paraíso de amar com reciprocidade; que veem eles, que sabem eles? Por acaso lhes importa o ser dia ou o ser noite, verão ou inverno, tepidez ou congelamento, colorido de animação Disney (não creio que Briton tenha pensado essa parte da Disney) ou paleta de funeral? É nada; basta-lhes amarem-se, amarem-se de tal forma que nem a doçura incondicional dos pets fiéis precise estar em primeiro plano. Meu Éden vai ser a essência da essência: um Adão, uma Eva e – para não haver dúvida, é só olhar nos olhos da Eva em questão – a presença divina.

E pois as árvores estão todas nuas, sem o menor pedacinho de primavera, sem um fruto sequer de outono (tanto melhor; nenhum que possa ser expropriado e oferecido pela serpente); a neblina tudo cobre, tudo acinzenta, é quase tangível o frio desagradável e úmido; o chão está molhado, o dia é de guarda-chuva, ou pior: o chão é de escorregar rude e o dia é de guarda-chuva molhado, incômodo de portar, desconcertante de todos os movimentos. As roupas são de cotidiano, sóbrias até o cúmulo, escuras, sem adornos, sem detalhes alguns que deem à cena qualquer coisa de festa. Mas quem liga? quem liga?? O casal paradisíaco é que não; embora não possamos testemunhar o olhar do Adão para sua Eva, a completa unidade emocional de ambos faz supor que, por espelhamento, é idêntico ao da Eva para seu Adão – e vejam se existe imersão mais enamorada, encantamento mais vivo do que nessas pupilas enroladas nas dele! São dois e apenas um; Eva segura com as duas mãos a mão do companheiro, numa entrega e proteção que ele, por sua vez, mimetiza segurando com a outra mão os dois guarda-chuvas. Ali, muito ali e muito nesse momento, deixam o mundo inteiro e são uma só carne, no toró e na bonança.

Que o amor reconstrói o Éden à sua semelhança.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Outras (quase) dez dúvidas cruéis


Se o nome de alguém começa com uma letra e seu (mui utilizado) apelido com outra, qual das duas é sua letra-símbolo, sua letra-referência, dessas de bordar monograma ou usar em colar? Não bate uma crisezinha alfabético-existencial?

Same energy: se a pessoa vive de fazer/vive fazendo cover ou cosplay, enxerga efetivamente a si mesma ou sua identidade fica indissolúvel do personagem?

Por que se pergunta a uma criatura se ela está dizendo a verdade, considerando que não se sabe se ela dirá a verdade?

Por que se obriga o pobre usuário a atualizar produtos com os quais ele já está locus-amoenasmente feliz?

Tem cabimento esperar que, só porque um gêmeo nasceu às 23h59 do último dia de um signo e o outro gêmeo viu a luz à 0h01 do signo seguinte, eles venham a ter personalidades radicalmente distintas?

Tudo bem que uma caixa-preta seja em verdade laranjíssima, para chamar a atenção em meio aos escombros dum possível acidente; mas por que então, oh raios triplos!, se chama caixa-preta?

Gente canhota também acredita em sorte quando entra num local com o pé direito?

Qual é a CACETA da relação lógica entre "chinelo virado" e "morte da mãe"? De onde vem a crendice estapafúrdia numa punição para algo que não prejudica ninguém e não é crime? E, caso fosse crime, não seria mais eficaz uma ameaça genérica – perder alguma pessoa amada, por exemplo – em vez duma tão específica, que não desencorajaria os meliantes já órfãos?

Por que se diz que princesas como Branca de Neve e a Bela Adormecida foram resgatadas por Príncipes Encantados, se eram elas que estavam encantadas?

Aliás, por que chamar a substância dopadora de "Boa Noite, Cinderela", considerando que Cinderela NÃO foi uma das princesas dopadas por ninguém?

Se somos maioria – por que A GENTE é que é refém??

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Estranhos ao ninho


Passou por mim um vídeo adorável de construção de ninho dentro duma daquelas casinhas de madeira – espécie de Big Brother passaresco, com flagras do processo desde a análise me-ti-cu-lo-sa feita pelo bichinho, para ver se a localização presta, até o momento em que biquitos famintos já se escancaram para a refeição servida pela mãe. Um amor. Foi, porém, um movimento específico da pequena ave empreiteira que me seduziu the most, na licitação para o assentamento do ninho: ela estranhamente testa o bater de asas DENTRO da casinha antes de bater o martelo sobre o imóvel. Que exótico, pensei a princípio, mas logo se vê que burramente; algo na natureza é lá "exótico" pelo meríssimo gosto do exotismo, sem 1.438 motivações bastantemente sólidas? Com o avançar do Big Brother Bird, percebe-se enfim o motivo da ruflada pássara: é o movimento feito pelo miniconstrutor quando, em meio a todos os galhos e palhas e musgos trazidos para o aconchego do ninho, é preciso abrir espaço para deposição e acolhida dos ovos; são as asas rápidas do papai ou mamãe que afastam a montoeira de material e, no ninho, desenham um nicho, todo prontito para ser o quarto dos bebês. Fiquei só encantamento e fofura.

Além de fãzismo extremo pela sabedoria alada que acabara de testemunhar: crie ninhos unicamente onde há espaço para bater asas.

Não significa que se permanecerá na eterna prontidão da fuga, sempre a um passo (ou um voo) de mergulhar no mundo para nunca mais a cada iminente estreitamento de laços. Tudo que um pássaro montador de lar NÃO representa é descompromisso; ao contrário, o fofo é engajamento puro – e, justamente por saber que só renderá frutos no ambiente mais vizinho do ideal, atrela sua plena frutificação à plena liberdade das braçadas. De ser capaz de voar fora, já está ciente; o essencial é garantir-se capaz de voar dentro, de estender-se, de espraiar-se, de manter a própria envergadura no que quer que se meta, de não ver as capacidades espremidas por situações a que sua adesão foi voluntária, de não se permitir esmagado sob nenhum pretexto de "segurança" que se oferta. Podendo escolher (e pode), não tem cabimento que o pássaro se aceite onde não cabe, que se concorde preso na primeira das opções.

Se o trabalho massacra as asas a ponto de arriscá-las à quebra, e se ao redor há boas promessas de vagas em outros nichos, convém sacudir as penas antes que o futuro se emparede como aqueles heróis de filmes de ação, a quem a contração da sala vai progressivamente achatando. Se o relacionamento é uma sinuosa, insidiosa armadilha de Jogos mortais que tenta convencer de que há proteção e afeto onde moram somente posse e abuso, nem pensar uma vez, quanto mais duas: é esvoaçar-se em retirada rumo a amores espaçosos. Se na casa em que se vive na verdade não se vive, mas sim sufoca-se o eixo de quem se é num purgatório tenso e lento, bola para a frente – desde que na maioridade, claro: ninguém merece engaiolar eternamente sua essência e mendigar um amor pesado de condições, quando se pode garantir mais ar e maior leveza com maior afastamento. Se não há chance de sonho e riso, parta-se; se a individualidade é esganada pelas mãos da alheia, suma-se; se a parceria é violência constante, funde-se nova parceria sob nova lei.

Não se deixe trucidar, skyline pigeon: fly away.