sexta-feira, 31 de julho de 2020

Substantivários

Wall Ao Vivo Planta - Foto gratuita no Pixabay

Adorei milhões a brincadeira substantiva feita por John Koenig, de que ontem falei – e adorei tão muito que me vi tentada a também elaborar meus nomes de tristezas (e demais emoções) obscuras, mesmo correndo o risco de batizar o que alguém já haverá talvez batizado. Se eu por acaso incorrer nessa apropriação involuntária de terreno verbalmente d(en)ominado, perdoem, e considerem seja apenas a versão em outro idioma de um qualquer sentimento em comum.

Por exemplo: proponho musicaminhância para nomear aquela espécie sonora de bovarismo que todos os amantes de cinema e televisão carregamos. Toooodos. Ou não é verdade que, desde que começamos a ser expostos a cenas de ficção embaladas por determinada trilha, passamos a projetar naturalmente nossas cenas da vida real como takes de dramaturgia, cada vez que a canção ideal toca nos fones, no rádio do carro, no provador da loja? Confessem. Ao som do tema de Superman, somos mais corajosos e andamos mais rápido pela rua; observamos o voo das aves de outro jeitinho se na cabeça estão os acordes de Jurassic Park; a chuva fininha que vemos da janela fica muito mais nevada e natalina se lembramos ou escutamos a melancolia sonora de Edward Mãos de Tesoura; todos parecem mais beijáveis e enternecedores caso toque Marisa Monte, Ed Sheeran, Colbie Caillat. É muito humano, é muito nosso que nos tornemos etéreos e cinematográficos ao aperto de um play – e, na maior parte das vezes, que bom que assim é; alguma saudável embriaguez precisa arrancar a rotina da excessiva denotação, mudar a rotação, ajustar a rota, enfunar as velas. Abrir janelas.

Tem também (ou poderia ter) a obscura tristeza da platonicria, da qual aliás sofro. Que vem a ser? A extrema ternura pelas coisas viventes e fofinhas – plantinhas floridas, bichinhos adoráveis, bebês bochechudos –, que por um lado desperta o intenso desejo de tê-las crescendo e enfofando por perto, mas por outro não deixa a gente esquecer que essas coisinhas encantadoras dão trabalho e despesa. Eis-me aqui, que não minto: metade de mim gostaria de ter a varanda coberta de flores, buganvílias enroscadas nas grades, um cenário de balcão de Julieta; metade de mim amaria ter, ao alcance permanente das mãos, um porquinho-da-índia altamente amassável, que tudo mastigasse com seus dentitos vorazes; metade mim adoraria ter... não, crianças não, filhotes humanos já são uma excentricidade até para a vontade fantasiosa. Mas enfim. O caso é que a outra metade, poderosissimamente preguiçosa e inimiga de trazer QUALQUER complicação para dentro de casa, tem a palavra final, e se recusa com assustadora veemência a gastar um real que seja com ração, ou a passar dois segundos que sejam limpando pegadinhas, consertando móveis roidinhos. Realmente não é para mim nada que tome tempo ou grana além do que já está no pacote básico dos cuidados com a casa, a família (a família que nasceu sem que a paríssemos, evidentemente) e a gente mesma; tudo o mais continua, por aqui, só platonicriado e representado por bonequitos e vídeos fofos. 

Há de haver outros substantivários blowing in the wind, vagando na nuvem dourada e gorda de possibilidades linguísticas; mas por enquanto foram esses tais que cá aportaram neste dia de chuva, neste dia mais preguicento que os platonicriadores convictos. Aceito ideias, garrei gosto na coisa. Se nomes de cores, flores, frutas, bichos nunca me pareceram suficientes pra dar conta dessa estufa de sustos que é a Terra, muito mais insaciável eu sou de palavras para nossas entrelinhas, nossos moods, paradoxos, doideiras, cismas, esquisitices. Sempre fui do partido dos vegetaizinhos que brotam nas frestas, nos rejuntes: os verbetes já disponíveis não me contemplam. Não me bastam. Sou dos que vão chatear até aproveitarem o sumo e a essência da coluna do meio.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Kairosclerosis

Banco de imagens : mar, pessoa, menina, mulher, cabelo, fotografia ...

Já em criança eu curtia nomes e seus significados; tinha um livro cheio de uns e de outros (provavelmente herdado de meus pais ou irmã, e em estado avançado de despencância), ficava ali horas banhada de substantivos, curiosa de sons e origens. Quem hoje tem a desventura de ser meu aluno conhece bem meu amor pelos nomes, digamos, pitorescos – já que não sou daquelas de fazer frase com "João" e "Maria", não, senhores; meto logo um "Godofreda", um "Dagoberta", um "Asclépio" e iguais maravilhas da nomenclatura, senão não vejo suficiente graça. (Fique dito, claro, que jamais faria isso com um pobre filho inocente, apesar das apreensões de meus alunos a respeito do bem-estar de meu suposto herdeiro. Não tenho a menor dificuldade em dar ao personagem o que é do personagem e à vida real o que é da vida real, e se tivesse um rebento batizaria a criaturinha da maneira mais simples; mesmo perguntas como "é com um n ou dois?", "é com s ou com z?", "tem acento?" seriam desde o início desarmadas, antes que explodissem na cara da criança desde as primeiras alfabetizações.)

Dado esse amor de décadas pelos substantivos, era natural que eu me pegasse totalmente deslumbrada ao descobrir a criação de uma joia chamada Dicionário das tristezas obscuras (The dictionary of obscure sorrows), pela qual estou arriada dos quatro pneus já no título. A lindeza existe há pelo menos quatro anos e foi inventada pelo designer gráfico norte-americano John Koenig, que simplesmente decidiu conceber nomes para sentimentos muito frequentantes de nossa psiquê, porém difíceis o bastante de ser verbalizados, tanto assim que até então – ou até onde se sabe – ninguém tentara providenciar um batismo. Koenig saiu misturando prefixos, radicais, etimologias e veio com uma coleção fascinante de termos que poderiam estar num livro escolar de Harry Potter: adronitis (frustração com a quantidade de tempo necessária para se conhecer alguém verdadeiramente), lethobenthos (tendência de esquecer o quanto uma pessoa é importante para nós até que o reencontro com ela nos relembre), occhiolism (constatação desanimadora da grande limitação de nossa própria perspectiva), nodus tollens (sensação de que o roteiro de vida que estamos seguindo já não faz sentido algum) e outros semelhantes feitiços, prontos para serem gritados com a varinha em riste. Adorei os verbetes todos e vou certamente tornar a eles, mas gostaria sobretudo de dar um primeiro abraço na melancólica e doce kairosclerosis – que parece nome de doença sem ser, e sem, no entanto, deixar de beliscar o coração com empenho.

A palavra, segundo John Koenig, vem do grego kairos ("momento oportuno") + sclerosis ("endurecimento"), e nomeia uma emoção pontual e complexa: aquela percepção que temos, em determinado instante, de estarmos sendo perfeitamente felizes; o consequente e consciente desejo de aproveitar essa sensação; a contextualização e intelectualização do momento de felicidade, de modo que a felicidade em si, purinha e legítima, acaba se dissolvendo num tipo de retrogosto. Impossível não rolar identificação. Apesar de enamorada de aves, flores, estrelas, Romantismos literários, doçuras em geral, sou raramente capaz de me entregar ao entusiasmo da experiência sem que a racionalidade esteja sussurrando em off: olhe, guarde isso, é tão rápido, vai acabar. Gostaria às vezes de desligar por segundos a chavinha superegoica, a praticidade muito forte e inerente, e por alguns segundos ser só a imersão e a imensidão sensorial da felicidade, a plenitude sem tensão, sem lamento, sem preocupação cerebral de fazer fotos e álbuns eternos do nirvana. Gostaria de mergulhar em sebos e bibliotecas num mundo privado de relógios, de horários de abertura e fechamento, de gente que atende, observa, espera. Gostaria de assistir a musicais muito amados ou passear em cidades muito amadas sem a responsabilidade de estar realizando o sonho de toda uma vida. Gostaria de só contar, durante um milionésimo de existência, com o extremo abandono a essa inocência de tudo, a fruição sem o peso filosófico do carpe diem, o descompromisso com roteiros, a ausência completa de expectativas – especialmente alheias –, a brincadeira apenas: a brincadeira autenticamente infantil, tão centrada em si que se isenta de tudo o mais. Esse brincar interior tão íntegro que não me lembro de tê-lo vivido sem qualquer grau de kairosclerosis nem mesmo na infância.

Não quer dizer que não tenha sido feliz. Ao contrário: fui feliz ao longo de bem mais que 90% do tempo, e sempre o soube. Ainda assim devo sublinhar, em causa própria, que constantemente nossos instantes favoritos – mesmo nos dias marcados para efemérides – são aqueles em que nem a gente está olhando.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Deixem-me quieta

Figura Da Boneca, Figura, Menina, Sentar Se, Descanso

Que lindos os versos de Conceição Evaristo (a poeta que DEVERIA estar na ABL) ao dizerem: "Quando meus pés/ abrandarem na marcha,/ por favor,/ não me forcem./ Caminhar para quê?/ Deixem-me quedar,/ deixem-me quieta,/ na aparente inércia./ Nem todo viandante/ anda estradas,/ há mundos submersos,/ que só o silêncio/ da poesia penetra". Identifico-me tanto que nem sei. Sou lenta nas coisas por motivos de borboleteamento mental crônico – e, mesmo ao parecer eventualmente ligeira, só engato a ligeira em regime de desespero e não de feitio. Faço todo o necessário, todo, mas não me enviem em mil maratonas e projetos; vou cumpri-los realmente inteiros, e talvez bem ou de jeito razoável – porém aos trancos certamente, e abstrata de vontade sem dúvida. Digo que vou e voo. Parece que estou e destoo. Normalmente não estou ali, se for obrigação estar, e me evolo por toda fresta que abrirem ou me deixarem. Verdade que isso não tem sido raro no mundo, mas não sou arredia nem distraída por questões de smartphone, que nem tenho; a tela é por dentro. Como também diz o amado Manoel de Barros, "prezo a velocidade/ das tartarugas mais que a dos mísseis", e o planeta tem ido em andar frenético de míssil doido, desatento porque não foca, não porque contempla. Embora eu não exatamente contemple: sou mais de apanhar desperdícios (acho que nada supera essa imagem de Manoel). Apanhando-os tanto, acabo tecendo-os numa grande colcha de desperdício temporal, numa grande coleção de nadas perfeitamente infeitos.

Sei que é hora de botar o almoço, de lavar a roupa, de arrumar a bolsa, de corrigir o trabalho, eu sei, já vou – mas, pela duração variável de um bocado, deixem-me quieta. Deem-me o mínimo possível de agendamentos, não me matriculem em novos compromissos, não me tragam necessidades saídas do forno. As coisas emergenciais se irão fazendo em sua cadência, conforme a carência, conforme a demanda; ajeita-se tudo, não há de faltar nadinha, e principalmente não pode faltar o sossego cerebral, o espaço de recreação e recriação do pensamento. Não, não fico nunca sem ter o que fazer, não existe vazio porque não existe ausência, está tudo constantemente preenchido de agires e não agires, como a maior parte dos ambientes fica preenchida do ar que não vemos. Pareço estar desocupada? Deixem-me quieta. O ócio é quase que total mentira, a cabeça arde em fogo eterno, "tem sangue eterno a asa ritmada" (terceira poeta, eita!: isto é Cecília). E nem o fazer, quando visível, precisa ser o da obrigação: se estou lendo, zapeando a TV, palavra-cruzadeando, não há inércia – há estímulos, estímulos. Referências. Repertórios. Sinapses. Não tenho necessidade alguma de, para pensar, estar em modo "ganhadora de salário" ou "melhoradora de currículo"; se ando operando em outra vibe, por favor, não me forcem.

Não, não quero acompanhar toooooda a tecnologia; ela é que é feita para mim, ela que me acompanhe. Não, não quero filhos, não importa a quantidade de amigas que os tiveram; no estilo "não perturbe" em que passeio, sou talvez a pessoa menos indicada da Via Láctea para lidar com urgências infantis. Não, não quero mestrado nem as demais continuações acadêmicas; seria muitíssimo mais custoso do que benéfico empenhar tempo, alma, coração no que não me enche os dois últimos e me roubaria o primeiro. Não quero criar mais solicitações externas porque todos têm, porque todos fazem, porque todos gostam, porque todos esperam, porque todos sonham; nem todo viandante anda estradas, ao menos não as mesmas – seria engarrafamento monstro –, e o mundo em si próprio é já um Mefistófeles talentosíssimo, voraz. Há sempre a militância a ser feita, a realidade a ser acompanhada e digerida, a alternativa a ser pensada, a casa a ser repensada, a ajuda a ser providenciada, a campanha a ser divulgada, o filme a ser visto, o romance a ser lido, o amigo a ser ouvido, a viagem a ser projetada, o amor a ser exercido. Como pode haver sequer a sombra da inércia atiçando a culpa humana, se existe uma infinitude de mundos (às vezes nem tão) submersos para além das estradas mais badaladas, "obrigatórias"? Abrandar a marcha, estar ou parecer em situação qualquer de quietude, é ainda caminhar léguas se o cérebro prossegue reservadamente em combustão. 

Me viram com ares de "fechada para balanço"? Deixem-me quieta. A cabeça não está parada, está parida, trabalhando em atualizações do sistema. Algumas informações podem ser perdidas durante o processo, mas é quase certo que pululem links novos na página principal.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Médicos e monstros

Climáticas, Mudança, Global, Aquecimento, Seca, Deserto

Interessantíssimo o artigo escrito por Humberto Maia Júnior para o TAB, uma das seções do portal UOL. No texto intitulado "Como a aceitação de que o ser humano não é bom pode nos tornar melhores", o autor basicamente demole a ideia rousseaumântica de que nossa gente nasceu linda e fabulosa, sempre teve uma relação de total broderagem com a natureza e deveria voltar a esses tempos edênicos, a esse ideal saltitante do "bom selvagem", para tomar conserto na vida. Eu concordaria feliz com Rousseau, por quem tenho simpatia, se esse ideal fofucho se baseasse no real – mas nada: "A história do Homo sapiens foi marcada por violência e destruição. A conquista dos outros continentes depois de nossa espécie deixar a África [gerou] a extinção de dezenas de aves e mamíferos. Segundo o historiador Yuval Harari [...], há 70 mil anos, 200 espécies de mamíferos com mais de 50 quilos povoavam a Terra. Em pouco mais de 50 mil anos, o número caiu pela metade. [...] O desaparecimento desses animais ocorria sempre após a chegada do homem ao habitat deles, como Austrália e Américas do Norte e do Sul". Desde o início, em suma, fomos tragédias ambulantes que arrasaram todos os quarteirões disponíveis – o que não quer dizer, é claro, que nunca tenha havido sociedades menos nocivas, mas quer dizer que de modo geral não tivemos origens nada idílicas e não adiantaria muita coisa retornarmos a um passado remotíssimo em busca de uma realidade menos predatória.

Nem poupamos jamais os semelhantes nessas nossas ganas de predador, aliás; mais adiante no texto, Maia Júnior cita o uso de estudos arqueológicos pelo psicólogo Steven Pinker, que reuniu evidências para comprovar que nossos ancestrais das cavernas não eram exatamente monges tibetanos brincando de ciranda com coleguinhas: "Os dados coletados em 21 sítios arqueológicos pré-históricos revelaram que, em média, 15% das pessoas morriam em decorrência de agressões provocadas por outros humanos. Já no século 20, que muitos consideram o período mais violento da história humana, o índice de mortes violentas não ultrapassa 3%, segundo estudos citados por Pinker. Detalhe: ele diz que os primeiros dados são subestimados. Como eles foram colhidos a partir de marcas de violência provocada por outros humanos em ossadas encontradas nos sítios, não é possível computar, por exemplo, mortes por envenenamento". Sim, eu também fiquei surpresa com a robustez numérica e científica desse mergulho em nossa ascendência de feras, porém não posso alegar ter-me surpreendido com a conclusão em si. Por mais que os saudosistas do Paleolítico (o literal e o figurado) adorem evocar os outroras como épocas de ouro, ai-que-saudades-que-tenho, naquele tempo é que era bom – eu nunca tive a mais longínqua dúvida de que, apesar de tudo, estamos melhores do que quer que já tenhamos sido, e continuamos melhorando.

OK, somos lamentáveis, mas a boa e a má notícia é que estamos no auge em relação ao que fomos. Nem precisamos ir longe na história ou buscar situações de se chegar às vias de fato. Agora há pouquinho mesmo ressurgiu, nas redes, uma reportagem feita para um telejornal da Globo no início dos anos 90, a respeito da participação de pessoas comuns – que não fossem superaltas, supermagras, superbelas etc. – em comerciais e afins. A linguagem, a postura, é tudo absolutamente podre; o repórter pergunta a uma transeunte se ela acha que "aquela gordinha ali", sentada à mesa de um shopping, poderia estrelar uma campanha publicitária, e a entrevistada denota tanta perplexidade como se lhe houvessem pedido para explicar em uma frase a física quântica: claro que não, nem pensar, que ideia. Em seguida o rapaz vai até a própria "gordinha" e revela ao espectador que ela encontrou inspiração na própria "feiura" (!! trata-se de uma LINDA mulher, por sinal – não que isso faça diferença) para criar uma agência de modelos fora do padrão etc. etc. Estou até agora de queixo desabado com a coleção assombrosa de desrespeitos e preconceitos reunidos em tão poucos segundos de matéria. E isso foi ontem, foi há 30 anos, o que é historicamente ali na esquina. Se dermos um rolê por canais como o Viva, a fauna de aberrações vai na mesma linha: racismo explícito nos Trapalhões, machismo afrontoso em velhas novelas e humorísticos, homofobia nojenta em quase todos os programas dos dois mil e tantos para trás. É chocante e assustador, mas de certa forma também acalenta, porque materializa e escancara por contraste a nossa (rápida) evolução. 

Ninguém conceberia, right now, um quadro como o do Nazareno de Chico Anysio (lembram? aquele que tratava a esposa feito lixo – "Ca-la-da!" – para se engraçar com alguma boazuda que trabalhasse em sua casa), ninguém mais colocaria um "Cala a boca, Magda!" na voz de um personagem, ninguém cogitaria criar uma interação como a de Jorge Dória e Lúcio Mauro Filho no Zorra total de priscas eras, em que ainda era considerado engraçado um pai se envergonhar da orientação sexual de seu filho e perguntar-se em bordão: "Mas onde foi que eu errei?!". Erramos hoje ainda muito, muitíssimo, porém também é evidente onde acertamos. Em coisa de duas ou três décadas, entendemos finalmente que humor bom é aquele que ri do opressor e não do oprimido, aprendemos a exaltar e valorizar todo tipo de beleza (work in progress, mas já avançadíssimo em comparação com as barbaridades que cometíamos), temos uma quantidade infinitamente maior de casais LGBTQIA+ na ficção e na propaganda, educamo-nos para varrer da linguagem termos pejorativos dos quais recentemente nem tínhamos consciência, estamos cada vez mais paramentados para reconhecer e denunciar relacionamentos abusivos, incluímos na educação regular e em outros espaços sociais um número crescente de pessoas autistas, com síndrome de Down etc. – pessoas estas que, no fim recentíssimo do século passado, ainda permaneciam tão afastadas das possibilidades de convívio. Para saber o quanto somos problemáticos, rixentos, treteiros, discutíveis, conturbados, é facílimo: basta dar uma chegadinha à janela do Face, do Twitter ou qualquer outra aberta para suspirar de desgosto. Mas, para escaparmos às manhas do desânimo que enreda, convém espiar sobre os ombros, olhar de revestrés para a estrada percorrida, chocar-nos docemente com a montanha de absurdos superados. Apesar do refluxo inevitável, o fluxo é evidentíssimo e depõe a favor do futuro.

Quanto a este, ao menos, Maia Júnior concorda que Rousseau mandou bem na leitura: "Se ele errou na ideia de que somos naturalmente bons, acertou em cheio ao apontar uma característica que distingue os humanos dos outros animais: a perfectibilidade, ou seja, a capacidade de se aperfeiçoar ao longo da vida". Não só capacidade, digamos; temos mesmo a vocação e a tarefa coletiva de melhorar, em honra ao material único de que somos feitos, inimitável demais para ser fadado à mera devoração recíproca. E temos também a dívida longa e ferozmente contraída com o planetinha que vem aturando, há milênios, a selvageria destes seus inquilinos – dívida a ser parcelada em pouquíssimos séculos e paga com empenho, ciência, juros e correção humanitária.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

O padrão

Balão, Coração, Amor, Romance, Reino Unido

Outro dia, entre zapeamentos, peguei no canal Viva um trechinho do programa Donos da história, que se dedica aos famosos autores de novela globais. O episódio em questão era com Ricardo Linhares, e lá pelas tantas o escritor recordou a reação negativa de uma parte do público ao casal Teresa e Estela, vividas por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg na novela Babilônia. Na realidade – especificou Linhares –, a rejeição não era direcionada exatamente à existência do casal (o que seria, de fato, o cúmulo dos cúmulos em pleno ano de 2015 d.C.), e sim ao beijo trocado pelas personagens no primeiro capítulo, como aliás fariam quaisquer pessoas que vivessem juntas e se amassem. A partir do grupo de discussão que é frequentemente organizado para testar a recepção de cada trama, o autor acabou percebendo que alguns espectadores simplesmente não queriam "ter" de lidar com as reações e perguntas dos filhos, em vez de, como sublinhou o entrevistado, aproveitarem as deixas dadas pela ficção para falar com honestidade e abertura sobre homoafetividade, corrupção, violência e qualquer outro assunto que faz parte do dia a dia. (Com o adendo de que, e aqui mais ou menos parafraseio Linhares, as pessoas parecem achar mais fácil explicar uma briga do que "explicar" o amor.)

Fico igualmente perplexa com a perplexidade dessa fatia do público, que provavelmente nunca se sentiu desconfortável ao prestigiar, mesmo junto aos filhos pequenos, desenhos como Tom & Jerry, Branca de Neve ou Cavaleiros do Zodíaco, em que os personagens se perseguem, agridem, achatam, socam, enganam, envenenam, explodem, esmurram, assassinam, furam o olho e outras tantas doçuras; ou então filmes suaves como os da Marvel e DC, em que metade das cidades é destruída no processo de salvar a outra, e heróis e anti-heróis fulminam, traem, cortam cabeças, metralham, arrancam membros, tudo de boinha. Gente criando teias (não estou falando das do Peter) para dominar o mundo, gente eliminando 50% do universo, gente tentando matar o irmão e a irmã, espalhando monstros, extraindo retinas, promovendo genocídios – tudo superlúdico, pra matar o tempo comendo pipoca. Mas amor, não; amor é complicado e perigoso demais da conta. Vai que a criança que nunca tentou imitar o Loki e atirar o maninho do alto do prédio acaba logo sendo influenciada por um gesto de carinho entre dois homens?...

Por favor, por favor, não sou NEM UM POUCO a tia chata que fica patrulhando animações e heróis, bem ao contrário: vi tudo que havia a ser visto, sempre adorei os Cavaleiros (tenho bonequinho e revista até hoje), passo o rodo em todas as produções Marvel e DC e amo especialmente o Loki e o Coringa – o que já indica que, né? pois é. Mas justamente por isso, por saber que crianças e adolescentes criados em ambiente saudável e providos de amor por seus cuidadores são perfeitamente capazes de compreender que o ser humano (ou criaturas feitas para representá-lo) tem muitas questões, muitas facetas, muitos sentimentos, muitos comportamentos, é que me pergunto por que pais e mães acreditam serem os pequenos tão incompetentes para entender nosso lado mais bonito. Como é que crianças tão cedo expostas – apenas na ficção, esperamos – à ganância, à inveja, à raiva, à vingança podem não ter "maturidade" para presenciar a ternura? Se veem socos, por que estranhariam beijos? Se os pais não lhes ocultam os tapas na cara dados na tela, por que lhes ocultariam as mãos dadas vistas na rua?

Há de ser unicamente por preguiça ou ignorância que os responsáveis se sentirão ameaçados pela realidade que deveria ser a mais natural aos pequeninos. "Ah, mas você precisa entender, eles são de outra geração..." Não preciso entender nada; quem nasceu em outro tempo, se continua vivo hoje, recebe as influências e informações de hoje: está aí na mesma internet, usando as mesmas redes sociais, com os mesmos especialistas falando na mesma TV. Compreende-se (embora obviamente não se aprove) que nasça preconceito onde há má distribuição de conhecimento e falta de acesso; porém, uma vez havendo oferta e acesso, calam-se as justificativas, emudecem as fugas. "Ah, mas é a religião da pessoa." A religião o caramba: NENHUMA religião que faça jus ao nome prega qualquer espécie de exclusão, ao contraríssimo, toda religião é fundamentada em acolhimento e amor – ou NÃO É religião at all. E não digo isso de orelhada; digo-o como católica que sempre fui, alguém que sabe que Jesus nunca dedicou uma linha a condenar demonstrações de afeto entre adultos conscientes. O que crianças podem testemunhar entre casais heteroafetivos é igualzinho ao que podem testemunhar entre os homoafetivos: carinho, ternura, companheirismo, cafuné, beijinho, cumplicidade. Elas são rápidas e extremamente eficientes em abraçar o amor, em reconhecê-lo e compreendê-lo, já que nada se parece mais com o estado original infantil de aceitação, de olhos limpos e abertos para a beleza do mundo, de predisposição para ouvir, apoiar, proteger. Perceber. Pensar.

Para jovens seres humanos que podem contar com a base forte, atenta e esclarecida de seus tutores, o amor é o padrão. O preconceito, sim, é a aberração e a verdadeira violência.

domingo, 26 de julho de 2020

Vontade cafeinada

Página 59 | Fotos flores multicolores libres de regalías | Pxfuel

Ser inspirado por algo é um bicho doido: não basta ser coisa de que se goste, embora esteja naturalmente atrelado. É preciso bater o olho, o ouvido, o olfato e sentir qualquer vontade esvoaçante e nova, uma crença interessante em meios e finais felizes, uma semente de catapulta sendo aprofundada no chão. Não é tão fácil, tanto mais que absolutamente espontâneo: pode-se ler uma genialidade inteira sem ter cócegas de motivação, apenas uma admiração intelectual, analítica, reflexiva, reverente, mas sem faísca. Reconhecer a perfeição é sobretudo cerebral; inspirar-se é maré de alma, uma hipnose, um enamoramento. Inspirar-se é de algum jeito, por causa de algum elemento, apaixonar-se pelo futuro. 

São fatores vários, quase randômicos: o contato se faz e uma lampadazinha acende. Há certas estampas, por exemplo – normalmente coloridas, mas de resto feitas de traços aleatórios; floridas ou listradas, temáticas ou genéricas, folk ou pop, românticas ou roqueiras –, que caem sob os olhos e badalam os sinos, just like that. Há blusas e saias que me põem mais criativa sem razão aparente; não são as mais caras (aliás, quais das minhas são caras?), não são especificamente as mais bonitas, só trazem alguma combinação específica de tons, algum toque artesanal, algum desenho de libélula e voilà, mistura-se uma cafeína nas ideias e ações. Há paisagens que deixam os neurônios salivando: não praias, cuja beleza demasiado solar me fala pouco ao apetite, mas imagens com cheiro e som de verde, verde sobre as pedras, verde abraçando ruínas, pedras abraçando flores, flores abraçando janelas, musgo, limo, mistérios, árvores choronas, florestas outonais. Paisagens com promessa de história medieval, com jeito úmido de bosque, com trepadeira grená se entrelaçando em balcões de outros séculos. 

Me inspiram também fatalmente: poemas de Cecília e de Manoel de Barros. Paredes de tijolos. Lojas de antiguidades. Brechós. Rendas. Colares. Sebos. Caleidoscópios. Violinos. Crônicas da Martha. Novelas da Lícia Manzo. Telas do Monet. Móveis de madeira pintados de amarelo, vermelho, azul. Dentes-de-leão. Marisa Monte. Amélie Poulain. Bebidas cremosas. Biscoitos amanteigados. Shampoos do Boticário. Grafites de rua. Pães fresquentinhos. Pães na chapa. Envelopes coloridos. Azulejos portugueses. Tecidos indianos. Os terracinhos róseo-morenos da Itália. As plaquinhas de rua de Paris. Os pintores de rua de Paris. As tudices de Paris. O cheiro de entrar no Starbucks. A música de começar Cold case. A cor turquesa. O perfume dos livros vovôs. Os cantinhos de aconchego e leitura. As bibliotecas. As delicatessens. Boa parte do que, no planeta, é ensolarado para a contemplação e confortavelmente sombreado para a permanência; boa parte do que tem alma sutil, modernidade com ascendente em fofura, uma pegada entre vinho e café – meio antiquário, meio papelaria. Coisas, gentes, lugares que me atiçam uma estranha fome de fabricação.

O que há no que inspira? A natureza do que há no que apaixona; um segredo com genoma personalizado, uma chave moldada tão parecidamente com encomenda. Mas se o sapatinho serve e não machuca, pronto, bora lá, que tem muito baile pela frente – e o que traz vontade e saúde para a dança é magia bem-vinda.

sábado, 25 de julho de 2020

As perguntas ingênuas

Lego, Blocos De Lego, Legosammlung, Jogar

"Como viver – me perguntou alguém numa carta,/ a quem eu pretendia fazer/ a mesma pergunta.// De novo e como sempre,/ como se vê acima,/ não há perguntas mais urgentes/ do que as perguntas ingênuas." São os versos finais de "Ocaso do século", da poeta polonesa Wislawa Szymborska (infelizmente não sei dizer quem fez a tradução). E como discordar? Não apenas concordo, mas a partir de agora me agarro nessas estrofes para toda ocasião em que me sentir tola tola tola de fazer perguntas tolamente ingênuas, as grandes, as gerais, as que muito me interessam. Gosto dos assuntos assim diretos e desvendados, puros, nus, e se doravante me acusarem da velha ausência de complexidade – "as coisas não são tão simples, nada é tão fácil, é tudo muito mais complicado que isso" – vou meter o avesso da carteirada: não é minha meríssima pessoa que está dizendo, é uma Nobel de Literatura formada, melhor do que eu. 

Se na vida e contra a morte só há urgência do que é realmente básico (ar, água, alimento, sangue, cura, calor, amor), assim também é nos temas e nas questões. As coisas são tão simples sim; os embolamentos adjacentes são labirintos mentais que criamos para esconder nossos Minotauros. As excessivas complexidades que enfiamos na trama sofisticam a peça e distraem a vista, mas "a base é uma só", como no samba do Tom: a base é termos passado milêêêênios pisando uns nos outros em vez de sabiamente trabalharmos em equipe. Por quê? (pergunta sumamente ingênua que já demandou infinitas toneladas de psicologia, sociologia, psiquiatria, economia e todas as demais ciências disponíveis, e a que talvez, em resumo, uma suprema ingenuidade respondesse:) porque recebemos, com o raciocínio, a consciência do eu, e pelo tempo de autoconvívio acabamos achando muito especial esse eu – tão especial que os outros eus nos parecem indignos de ser equiparados a ele. Desse desvirtuamento original do pensamento começa toda a mixórdia. 

É uma síntese porca, admito, porém bate como uma luva em cada um dos questionamentos que nos fazemos com pureza d'alma, quando estamos em modo de inocência: por que não existe uma renda mínima universal, se todo humano nasce humano e já mereceria ter o indispensável garantido pelo simples fato de ter nascido humano? Por que uma Declaração de Direitos não se tornou uma lei óbvia para todo o planeta? Por que a contemplação a um sagrado direito de sobrevivência alheia soa como ameaça ao nosso supérfluo? Como nossos olhos podem achar plausível que alguém ganhe 19 bilhões num único dia, apenas porque vários alguéns confiam e investem números em seu valor abstrato, enquanto há outros tantos milhões na rua morrendo de fome concreta? Como pode parecer razoável POR UM SEGUNDO que uma pessoa tenha 37 imóveis e outra durma sob o viaduto? Por que é relevante, na divisão social, que nossa pele esteja mais ou menos preparada para o sol? e, nesse caso, por que justamente os menos preparados são há tanto tempo considerados "superiores"? De onde surgiu a ideia cretina de avaliar a capacidade profissional (ou qualquer outra coletiva) de uma pessoa a partir de quem ela beija? Por que os maiores defensores da "meritocracia" costumam ser precisamente os últimos que abdicariam de uma herança? Por que alguém considera normal que um suposto seguidor de religião baseada no amor pregue ódio, preconceito, destruição e morte?

Como? de onde? por quê? – pergunta nossa cristalina lógica que olha tudo pasmada, perplexa, sem crer que se possa distorcer a razão com a vaidade e a verdade com a opinião. Well: distorce-se. E os eus incapazes de arcar com o fato de que estão no mesmo patamar dos demais, de que não pesam um miligrama a mais ou a menos na balança do planeta (que destroem), de que não têm absolutamente nenhuma prioridade conferida pela natureza, de que vivem dos mesmos elementos e morrerão da mesma morte – esses eus irrealizados, toscos, inseguros, infelizes multiplicam balelas para mascarar sua desimportância, fabricam gritos e incoerências para maquiar sua fuga do racional. Gostaria de lhes ter alguma pena, mas guardo para suas vítimas. Ando sem possibilidade de lidar com quem latifundeia o mundo de absurdos e escapa galopando das perguntas fáceis.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Erosões

Amor Buracos Coração - Foto gratuita no Pixabay

Em sua coluna de ontem no blog hospedado no site do UOL, o psicólogo Dan Josua ilustrava sua ideia central com o caso (real ou hipotético, importa pouco) de uma mulher que, tendo carregado sempre a impressão sofrida da inadequação, era confrontada pelo terapeuta/palestrante com a possibilidade de ter sua dor "retirada". Mas: "Só tem um detalhe. Um dia seu filho vai chegar em casa com uma dor parecida. É um ser humano e em algum momento a vida ainda vai bater nele. E ele vai se perguntar por que foi rejeitado, por que é burro ou por que não é digno de amor. Se eu tirar a sua dor agora, você não vai entender nada do que ele estará falando. Vai sorrir e pedir para ele não pensar nisso. Sentindo-se ainda mais solitário, ele irá para o quarto. Vai fechar a porta para sofrer sozinho. Exatamente como você, seu filho esconderá a dor e a carregará pela vida inteira. Vai se casar e ter filhos e sorrir para a foto – como você. Mas, por dentro, sempre haverá uma luta e uma vergonha de quem se imagina a única pessoa a se sentir desse jeito".

Como podem supor, a mulher da história passou a recusar a renúncia, ainda que imaginária, a seu fardo emocional, e diante dos argumentos do terapeuta é provável que fizéssemos o mesmo. Não se confunda isso, evidentemente, com deixar de tratar uma depressão, um transtorno borderline ou qualquer outro mal similar, que DEVEM ser cuidados com o mesmo empenho de uma diabete ou uma hipertensão, por exemplo. Falamos aqui apenas das dores de alma que não são clínicas nem incapacitantes – e mesmo para essas cabe sempre um acompanhamento psicológico, uma análise profissional; cabe constantemente um retrabalho, uma desopressão, um alívio; o que não cabe é a expectativa de um total desaparecimento. Até porque as dores devidamente controladas, seladas, domesticadas, que sob essa atenta vigilância perdem o potencial de destruir-nos, passam a ser também as dores que nos constroem.

A dor, com o perdão da comparação excessivamente prosaica, nos amolece como o martelinho de carne; uma força descabida aplicada ao martelinho pode despedaçar a substância, porém o peso normal e inevitável das pancadinhas cotidianas nos amacia. Não é que devamos buscar a dor (eu, pelo menos, vim isenta de dotes masoquistas) – mas, uma vez que chega teimosa e involuntária, o melhor que fazemos é refletir sobre o golpe e permitir que nos torne o ego mais tenro. Os nãos da infância, as ausências indesejadas, as perdas que não pedem licença, as lágrimas corridas na escola, os jovens amores não correspondidos, as solidões vividas em silêncio, as incompreensões familiares, as insatisfações corporais, as irrealizações de pequenos ou grandes sonhos: é tudo material do torno que nos molda, é tudo contingência que as almas mais orientadas vestem como experiência – vestem como o traje que não é o esperado vestido da Cinderela, mas que é ajustável a ponto de o portarmos com elegância. Sofrimentos nos escancaram os olhos filosóficos, nos contêm a natureza deslumbradamente egoísta, nos aparam as tendências de autoglorificação, nos aproximam de ser humanos e não criaturas irreais, flutuantes, irritantemente isoladas em torres de marfim.

Por doermos, entendemos o que doem. A dor que nos lanceia ao menos nos abençoa com o efeito colateral da empatia. Como abriríamos braços confiáveis aos outros, se fôssemos aqueles que, para desalento dos Álvaros de Campos que nos cercam, "nunca levaram porrada"? A experiência da dor nos enternece o coração e o colo, nos gradua para o acolhimento, nos diploma para a sinceridade, nos desliga a autossuficiência que afasta como escudo, nos sagra como iguais a serem abraçados e não estátuas a serem adoradas. Paixões certamente brotam da superfície estúpida, mas amores de todas as instâncias só nascem quando enraízam no que temos de muito íntimo, quando envolvem nossos momentos de vida subterrâneos, porções d'alma que pouco receberam (ou se mostraram à) luz. 

Somente as erosões que sofremos tornam únicos nossos relevos e convidam ao estudo, ao passeio, ao encanto. Viramos desbraváveis quando aceitamos lealmente colocar nossas feridas no mapa.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Venenos

Banco de imagens : campo, Chão, árido, flor, estéril, terra, seco ...

Definitivamente não sou fã de divulgar por aqui as notícias ruins que nos assaltam; prefiro os vaga-lumes metidos entre as rotinices que, para tantos, já têm sido tão nevoentas neste 2020 indescritível. Prefiro a multiplicação dos poemas, das pequenas fofuras que colorem o planeta, das artes, doçuras, curiosidades. Mas alguns noticiários nos socam tão na cara, nos levam de tal maneira o peito a nocaute, que não resta quase espaço para fugir do assunto, e a gente fica lamentavelmente forçado a repisá-lo no formato verbal depois de já tê-lo sentido doído e chorado. 

A monstruosidade da vez é: em Itapevi (SP), dois adultos em situação de rua (e um cão possivelmente relacionado a eles) morreram após ingerirem alimentos contaminados que um homem não identificado lhes ofereceu. Duas meninas de 11 e 17 anos – cujo pai passava pelo local onde a comida estava sendo distribuída, aceitou-a e levou-a para casa – estão internadas por também terem sido vítimas de provável envenenamento. E mesmo eu, que por sobrevivência emocional não duvido da capacidade evolutiva de nossa espécie, me vejo em pouquíssimas condições de defender, no momento, uma humanidade que gera algo tão inominável em tantos âmbitos. 

Se alguém cisma de exterminar animais de rua "incômodos" – cachorros, gatos, pombos ou o que mais a horrorosidade humana conseguir odiar – dando-lhes ração envenenada, é um ato que já automaticamente nos rasga por dentro. Se pessoas em situação de rua consomem algum alimento que não lhes foi dado estragado, mas que eventualmente foi encontrado assim, e por causa disso passam mal, é um fato que no mínimo já nos revira as vísceras. Combinar essas duas aberrações do mundo numa terceira megablasteraberração, no entanto, é de arrancar o coração com a mão, feito aquele sacrifício bizarro do segundo Indiana Jones – e o combinado dessas duas aberrações, contra tudo que nos define como humanos, é precisamente o que temos: pessoas pobres, desamparadas, vulneráveis, DELIBERADAMENTE envenenadas por alguém que as considera PRAGAS a serem combatidas. Pessoas que o sistema não se contenta em abandonar à margem, não está satisfeito em largar ao sabor do acaso; não! é preciso mais! é preciso manipular justamente seu ponto de maior vulnerabilidade – a fome –, atacar um segundo ponto de maior vulnerabilidade – a esperança – e executar essa sentença do inferno, essa sentença de exclusão realmente irreversível e absoluta, da maneira mais covarde, mais inqualificável, mais impossível de imaginar sem desespero e vômito.

Não estou apenas chocada, não estou apenas revoltada, estou dilacerada, destruída. Uma coisa é saber racionalmente que há seres isentos de empatia, é imaginá-los frios ante a dor alheia, e outra é VER (porque pensar uma notícia dessas é automaticamente vê-la) um so-called homem despejar toda a intenção de provocar dor no mesmo prato feito para chamar vida. Quanto horror por si mesmo é necessário para que alguém desconte em seus iguais todo o autodesprezo que sequer consegue encarar? Quanto fracasso na alma carrega alguém que, inapto para toda realização e toda luta, decide eliminar suas co-vítimas em vez de se reconhecer como fruto e engrenagem podre do mesmo sistema que as vitima? Quantos venenos exterior e interiormente fabricados tomam as entranhas de alguém antes que este resolva derramar em outrem sua repugnância de si? Quanta deserança de amor, quanta pobreza de vivência familiar, quanta ignorância de afeto próprio e compartilhado, quanta nulidade de educação, quanta inexistência de talento, quanto vazio de autoestima cabem em alguém que concebe essa ideia de ser humano – essa ideia de ser descartável, daninho, irrelevante, malquerido, inútil?...

Para continuar já me falta alento; e, apesar desses fossos dementadores que vez em quando se abrem na rotina, seguimos; sigamos. Que o ódio nos aflija, nos agrida, nos traspasse, mas nunca nos domine: em todas as instâncias ele nada pode, se a última palavra somos nós.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Afinadores de silêncios

Pôr Do Sol Pai Filho - Foto gratuita no Pixabay

É tão lindo quando, em "Eu, Mwanito, o afinador de silêncios", Mia Couto fala sobre essa suave vocação de aprimorar o sossego: "A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.

Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios."

Benditos sejam os afinadores de silêncios! Prestam o serviço essencial de desconstranger a ausência de fala. Nas imediações desses profissionais, se espalha a calma da desobrigação do contato. Porque tudo hoje é a compulsão do contato, e mesmo ao não ser realizado ele pesa sobre o ambiente, achata-o; estão aí os elevadores nos quais entramos com desconhecidos – ou pior: semiconhecidos – que não me deixam mentir. Em outros países não deve ser assim (o tempo em que estive neles foi insuficiente para maiores pesquisas), mas no Brasil o estar calado é quase grosseria, é perto de desacato social; e portanto, à força de precisarmos ter na língua o dito simpático, maiores são nossos alívios se o recinto não contém presenças antipáticas. Quais presenças antipáticas? Todas, quando só o que queremos é não sair de nossas faxinas ou brincadeiras internas para fazer sala sonora. 

Como é gentil essa gente que não só não nos aborda com barulhos, mas providencia mais: arranja para que o silêncio do lugar não desafine, emana qualquer coisa de sereno e confortável que nos embrulha na confiança de que está tudo bem assim mesmo, assim quieto, assim calado; está como deveria estar, dizem essas abençoadas auras de algodão. Sim, são auras de algodão, é a única explicação poeticamente plausível. São auras de algodão, são energias de travesseiro, naturalmente limpadoras do ambiente pela sua total ausência de demandas, ou pela percepção finíssima e quase sobrenatural de que não é o momento de fazê-las. São almas que nos dão não aquele sono de tédio, e sim o relaxamento que se tem na plena confiança de que não há tensões voando feito baratas nos arredores. Almas que operam em frequência macia, que geram às vezes um arrepiozinho na pele e nos ouvidos com sua delicadeza de pena, que têm o dom de compartilhar sua própria paz num abraço imaginário, virtual, sem sequer estarem disso conscientes. Como eu as amo! almas afinadoras de silêncios, almas conhecidas ou incidentais que são roteadoras de tranquilidade, almas que sem querer filtram o ruído do mundo, que matam as apreensões do ar com sua doçura intrínseca, com seu self de elfo que pisa levíssimo, de fada que nem pousa.

É isto talvez o que fabrica um bom afinador de silêncios: não pousa, não sai nunca do voo discreto e solitário – ou então vai direto para o ninho, sem esbarrar em ninguém, sem colocar nem um grama a mais sobre o chão. Coisa de gentes que, além das muito amadas (porque são muito amadas), são das poucas que conseguem ser melhores que sua ausência.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Ridi, pagliaccio

Coringa é o filme que dá calafrios sem precisar de sustos ou ...

Ainda em nossa cinequarentena, acabamos de rever o Coringa, a que em tempos tão recentes e tão remotos assistimos na sala de cinema. Não sou lá muito adepta de ficar revendo filmes, especialmente uns tão de ontem, porque, a não ser que haja algo muito enigmático a não ser entendido de primeira, em geral eu "esgoto" a obra logo após conhecê-la: ou não me interesso o suficiente para ler mais nada além de uma crítica – e, em consequência, não me interesso o suficiente para revisitar a produção anytime soon –, ou leio tanta coisa, busco tanta curiosidade, vejo tanto GIF, dou tanto repeat interno nas cenas, que certas falas chegam a estar quase decoradas e reassistir se torna redundante. Sim, eu fiz essa "ordenha" depois de ver o Coringa pela primeira vez, imergi em análises e comentários, praticamente memorizei trechos, mas mesmo assim fiz questão de prestigiar o lindo logo em sua estreia (não paga) na TV, na grade da HBO.

Não que o roteiro seja impecável; loooonge disso. Restam dúvidas razoáveis sobre o que realmente aconteceu ali – dúvidas que eu não tinha pretensão de ver sanadas neste segundo encontro. Compareci ao encontro, porém, por puríssima fascinação pelo personagem (por ESTA versão do personagem) e pela detalhada, excruciante construção feita por Joaquin Phoenix, um dos merecedores de Oscar mais indiscutíveis. Jamais fui fã do Palhaço do Crime, não pisei no cinema movida por nenhumíssima atração pessoal pelo vilão, cujas encarnações anteriores desprezo – apesar de aplaudir de pé, claro, as atuações de Jack Nicholson e Heath Ledger, em especial a deste último –, mas fui incapaz de resistir à dor que transborda de Arthur Fleck desde a primeira cena. Enquanto os Coringas antecessores são freaks psicopatas sem uma sólida história de origem e sem motivações palpáveis, o atual tem (não direi motivações, mas) motivos bastantes para gerar uma dezena de hóspedes do Sanatório Arkham. É isso que dói no peito, na garganta, no fígado, e ao mesmo tempo é isso que me seduz tão irremissivelmente para o filme, por mais que o roteiro seja falho e o aproveitamento da "mensagem", controverso: é ter sede de amparar o protagonista nos braços, dar-lhe o mínimo de compreensão, de apoio, de escuta, de ternura; é ter por ele não pena, que costuma ser permissiva e paralisante, mas uma dolorosa empatia; é saber que pouquinha coisa – um tantito só de olhar, carinho, abraço ao longo dos anos, mais uma dose básica de lealdade – talvez tivesse evitado toda a desgraça, talvez tivesse interrompido crucialmente o processo. 

Exatamente o processo estampado na tela é o que dá fogo e alma à obra, que NÃO se trata de uma costura bem-sucedida de enredo, e sim de um estudo de personagem. O filme é inteiramente Phoenix e sua precisão cirúrgica ao representar um trajeto de dissociação da personalidade: a linguagem corporal curvada e exausta de Arthur, que se contrapõe à atitude cada vez mais aberta e desafiadora de seu alter ego; a oscilação constante na lateralidade (Arthur é destro, o Coringa é canhoto); a gangorra minuciosa entre a doçura no olhar do "mocinho" e o crescente deboche e niilismo no do vilão – sem que este, embora muito mais seguro e badass, deixe de parecer ainda mais triste que o primeiro. Muito se teorizou a respeito de a produção fazer uma suposta glorificação do incel, mas não é fato: por mais que esses seres ressentidos da vida real possam vir a espelhar-se na espécie de violência adolescente do Coringa (também se espelham nos Cavaleiros Templários e outras criaturas de armadura, e nem por isso, né?...), o protagonista de modo algum culpabiliza mulheres em geral; quase todas as suas vítimas são homens – ninguém relacionado a pendências sexuais –, e sua raiva não é nada inexplicável nem delirante, ainda que ele mesmo o seja. O roteiro dá pano para mangas e smokings inteiros, porém o foco é simples: tem-se aqui, fundamentalmente, uma história de abandono e tortura em vários níveis, e a história de seus efeitos sobre corações que não foram ensinados a contar com quaisquer recursos.

Quase um ano se passou desde que, pela primeira vez, vi Arthur Fleck tentando sorrir diante do espelho, e fico feliz que a cena continue doendo – tanto quanto o replicar da cena com todos os coringas que se sentem cartas fora do baralho. Quanto menos nos doem as impossibilidades de sorriso no outro, maior a chance de fazermos parte do elenco que produziu a tragédia.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Iluminados

Nos bastidores do horror de 'O iluminado' - Jornal O Globo

De vez em quando aproveitamos o isolamento para, como diz o Fábio, embarcar na cinequarentena. Nossa mais recente sessão foi com O iluminado, que imperdoavelmente ainda não havíamos visto e que enfim pudemos constatar por que é um dos terrores mais icônicos da telona. A trilha agonienta, os ambientes sufocantes apesar de enormes, os carpetes e papéis de parede coloridões e sinistros, as garotinhas de mãos dadas e olhos estoicos, o "redrum, redrum, redrum" repetido com voz de robô empenado, o velocípede em plano-sequência, a banheira, o banheiro, a neve, o labirinto, o taco, o machado – poucas produções têm maior quantidade de pesadelo por metro kúbricko. Não que nos tenha causado pesadelo (afinal moramos no Brasil, quem é o hotel Overlook na fila do pão?), mas uma dorzinha de cabeça sempre vem quando o final só vai amarrar as pontas a posteriori e deixa a gente com cara de tacho. 

O iluminado se ilumina sim, às vezes com holofote nas obviedades, porém em grande parte com faroizinhos espalhados – metáforas, metonímias salpicadas no recinto. Desde o "só trabalho e nenhuma diversão fazem Jack um bobão", passando pela bolinha jogada na parede e recuperada (jogada na parede e recuperada, jogada na parede e recuperada) até o perturbador zoom de encerramento, o que se sublinha e ressublinha é a força com que alguns seres se deixam condenar à repetição, tendo sido, não raramente, os primeiros a duvidar de sua própria entrega. Independentemente da presença de fantasminhas de vestidos gêmeos, muitos de nós já carregamos por todo lado nossas fantasmagorias gêmeas, multiplicadas, persistentes como um vício d'alma. Temos, com certa constância, uns salões aparentemente vazios nos quais basta um descuido e os fantasmas se divertem: medos que esnobamos mas não desinfetamos, e num estresse imprevisto voltam a infeccionar; traumas que não investigamos a fundo – por ignorantes ou autoconfiantes – e que eclodem no descontrole de algum aspecto da vida; mágoas de nós ou de outrem que mantemos soterradas, mas enraizadas ainda, e ao roçar de um botão explodem cobrando juros, cuspindo vespas, machadando portas. Não basta contarmos com espaços amplos se estivermos enjaulados em nosso potencial de eterno retorno. 

Podemos andar por aí exibindo um espírito contemporâneo e, numa falha de vigilância, tropeçarmos num preconceito não devidamente extirpado que frequenta na surdina nossos corredores. Podemos manter relações pacíficas que são, em verdade, vulcões vestidos de gelo, só esperando um isso para que Pompeia seja literalmente lavada do mapa. Podemos ter um amor indiscutível aos filhos e, por isso, negar a todo custo a existência de ressentimentos – que, não enfrentados com autoclareza, tendem a embalofar até ser impossível impedir que escapem pelos poros. Podemos jurar que sim, está tudo bem no emprego, no estudo, no casamento, na amizade, na vizinhança, na família, e ainda assim estarmos simplesmente overlookando (o nome do hotel assombrado do filme significa "negligenciar", "deixar passar", acreditam?) o que deveria em nós ser exumado e encarado com menos desatenção, conduzido com mais cabeça e menos barriga. Precisamos limpar e conservar operacionais e aquecidas nossas áreas visíveis, sociais, expostas, mas sem achar que todos os quartos se manterão saudáveis se trancados eternamente. Volta e meia a meditação, a leitura, a religião, a arte, a análise, a psicologia e outras chaves possíveis devem abri-los, examiná-los com cuidado, desembolorá-los, dedetizá-los, tratar na nascente a infestação. Ao menos por nós, nossos meandros precisam ser vistos. Observados. Acompanhados. Iluminados. 

Ou então não teremos, com relação a velhos pesadelos, uma digna festa de independência e um verdadeiro the end.

domingo, 19 de julho de 2020

Treino é treino (?)

Foto profissional gratuita de academia de ginástica, ação, aço

Assistindo a um episódio da série Diário de um confinado, constatei que não é só comigo: o protagonista Murilo, vivido por Bruno Mazzeo, também tem ranço do verbo treinar aplicado ao ato de fazer ginástica – ou "malhar", como observa o personagem, que pertence a uma geração adjacente à minha (e o batismo da novelinha Malhação, cujas primeiras temporadas nos 1990 foram ambientadas em academia, ainda está por aí de testemunho histórico). Não é que eu aprecie particularmente o "malhar", mas me soa muito mais coerente e menos antipático, em sua condição de gíria e sua parecença com a bate-estacação de sentar o malho numa chapa metálica, do que a pressuposição embutida no "treinar" de que se está ensaiando para alguma coisa. Malhar envolve esforço e repetição, um agir mecânico para moldar algo – o corpo, no caso; treinar, por sua vez, ruma a uma apresentação ainda maior no depois, uma apresentação a ser carimbada, avaliada, rotulada por júri ou placar.

Não sou purista de língua, juro, juro juradinho, vocês sabem; sou bem abusada inclusive, misturo e mexo segundo o que dá na traquitana, não dou nenhum exemplo de respeito sublime. Mas me reservo o direito, como qualquer falante/ usuário nativo, de me irritar com modas aparecidas sabe-se lá de qual Hades da inconsistência, manias que simplesmente não fazem sentido. É isto o que sobretudo me azucrina, junto com a repetição desordenada: não fazer sentido. Ora, se eu e vocês somos reles mortais que não treinamos para um jogo profissional, que não treinamos para as Olimpíadas, que não treinamos para figuração na abertura das Olimpíadas, que não treinamos para a São Silvestre, que não treinamos para o próximo GP, que não treinamos para um recital de música; se eu e vocês somos criaturas sem agenda cheia que não treinamos um discurso, nem um papel no teatro, nem uma declaração de amor, nem uma declamação de poema, nem uma escala no piano, nem respostas de entrevista, nem pronúncias de língua estrangeira – para o que CACETES treinamos ao fazer vinte minutos de bicicleta ergométrica, dez flexões ou duas séries de abdominais?? Quando e por que o treino perdeu seu status de preparação para uma avaliação ou embate, de aperfeiçoamento de habilidades para um qualquer evento?

Claro, as palavras se expandem, os sentidos engordam, as gírias nascem e eventualmente fixam residência (amo-as, adoro-as, nada tenho contra elas), o idioma é vivo e inquieto, rico e buliçoso. Não me parece, porém, que o caso do treino seja exatamente espontâneo – ao contrário, até: parece-me uma tentativa cafoníssima de endurecer, higienizar e "profissionalizar" o exercício físico que batemos no liquidificador com a rotina, meio aos trancos, sem a roupa mais "adequada" ou o ambiente "ideal". Não que esse exercício não deva ter orientação profissional, mas não é feito por profissionais, e me soa honestamente pretensioso que se busque projetar no dia a dia comum o peso e o impacto de dia a dias bem específicos. A diferença é crucialmente de objetivo; é aquela que mora entre o cumprir cotidiano de uma tarefa de saúde e o alimentar de ambições competitivas. Pronto, tudo acaba dando na ideia de competição e é provavelmente isso que me exaspera. Isso e aquele nojento falsear da realidade que vive na linguagem empresarial – same energy. Como se estivesse implícito no treino a necessidade de sermos "produtivos", focados numa linha de chegada, num case, num adversário, quando em verdade se deveria meramente tratar de equilíbrio, desestresse e manutenção. 

Vocês treinadores, treinistas, treineiros, treinantes, treinões, trainees que me desculpem, mas fico aqui com a minha humilde atividadezinha física mesmo. Sem nenhuma meta importante a não ser, talvez, adiar tanto quanto for possível a final.