terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Para todo mal

Sim, eu me drogo: confesso. Me drogo de coisa lícita que não leva álcool ou nicotina, já que odeio com horror tanto a fumaça como o amargo. Coisa lícita que vive além do chocolate, que supera a cafeína, que não acaba em gole, teco ou mordida, que paira acima do gosto, que flutua sobre fomes e vontades, que não se contraindica nem dá suadouro de abstinência, que ainda apetece em hora de enjoo e febre, que não envergonha quando flagrada à luz do dia e do metrô, que não nos bota DST, mau hálito ou má fama, mas que (delícia: ninguém olha, ninguém suspeita) nos vai moldando numa sem-vergonhice intensa, num despudor de lucidez sem limites.
 
Me drogo com livros.
 
Para suportar os prosaísmos que xingam, furam fila, poluem de realidade porca o ideal caprichado, mancham de graxa o mundo maciamente sonhado – eu cheiro histórias. Para empurrar com ar pacato a rotina que revolta as entranhas, atropela os desejos, fere a naturalidade dos impulsos – eu fumo novelas. Para tolerar sem depressão aguda os deveres obtusos, as situações inequiláteras, os aborrecimentos compulsórios, os rame-rames involuntários, as horas imastigáveis, cheias e suadas e calorentas – eu bebo enredos. O tempo todo. Todo o tempo. Contos, romances, tudo é vício e almoço. Mas é safra específica: tem de ser leitura do século XIX (para trás), com exceções honrosas. Por quê? Porque são palavras bordadas com aquela exata delicadeza das toaletes. Porque havia as toaletes: mais do que se vestiam, os personagens compunham-se para o contexto, sempre com graça e demora incompatíveis com as nossas praticidades. Porque havia serões passados a folhetim e piano. Havia bairros longínquos dando ar de viagem a percursos que hoje fazemos sem cheiro de mato nem espiada pela janela. Havia idas a cavalo ao Centro. Havia raparigas laboriosas que costuravam sob o lampião. Havia bailes. Havia morgados. Havia cartas gordas de teor e de adjetivos – e havia as respectivas esperas, saudades, impaciências. Havia aljôfares e coisas alcatifadas. Aldeias. Tranças. Nácar. Modistas. Flores no peito.
 
Havia, sobretudo, esta segunda pessoa do singular tão fresca e tão linda, limpamente conjugada com todos os devidos esses; o tu sempre da intimidade caseira, mas tão cuidado, tão observado que fica parecendo música biscoito-fina no ouvido habituado ao português só-lâmina. Eu me drogo de tus. Preciso aspirar o livro em que amas, fazes, queres, dá-me teus beijos, que tens? Preciso do pronome oblíquo que dança entre verbos, da língua florida, da língua que a gente masca coloridamente na boca, contente da poesia de dizê-la. Preciso da trama onde tudo dá certo – para que felicidades alheias me sorriam comuns e possíveis – e algumas vezes daquela onde tudo dá errado – a fim de que o mundo de fora surja comparativamente seguro. Preciso estudar por dentro os seres de papel e neles conseguir amar os de pele. Preciso receber doses diárias da vida como foi, como era, como devia/podia ser, para abraçar com repugnância menor (talvez esperança) aquela que é.
 
Livro é vacina. Injetamos n'alma um tanto quanto de nossos germes. O que embebeda sem causar rejeição – pode curar.

Um comentário:

Tarlei disse...

Fernanda, Fernanda,
que alegria te descobrir nesse imenso nadifúndio que é a rede. Menina, como você escreve bem!! Quero ler mais, quero ler tudo... É pena que eu não seja bom "teleitor" (teleitor = leitor de tela). Mas vou lendo devagar -- e sempre. Soube de você por um link que o Fábio Flora compartilhou no Face. Não sei o que mais dizer. Gostei, gostei e gostei.
Abs,
Tarlei