Sim, eu me drogo: confesso. Me
drogo de coisa lícita que não leva álcool ou nicotina, já que odeio com horror
tanto a fumaça como o amargo. Coisa lícita que vive além do chocolate, que
supera a cafeína, que não acaba em gole, teco ou mordida, que paira acima do
gosto, que flutua sobre fomes e vontades, que não se contraindica nem dá
suadouro de abstinência, que ainda apetece em hora de enjoo e febre, que não
envergonha quando flagrada à luz do dia e do metrô, que não nos bota DST, mau
hálito ou má fama, mas que (delícia: ninguém olha, ninguém suspeita) nos vai
moldando numa sem-vergonhice intensa, num despudor de lucidez sem limites.
Me drogo com livros.
Para suportar os prosaísmos que xingam,
furam fila, poluem de realidade porca o ideal caprichado, mancham de graxa o
mundo maciamente sonhado – eu cheiro histórias. Para empurrar com ar pacato a
rotina que revolta as entranhas, atropela os desejos, fere a naturalidade dos
impulsos – eu fumo novelas. Para tolerar sem depressão aguda os deveres
obtusos, as situações inequiláteras, os aborrecimentos compulsórios, os
rame-rames involuntários, as horas imastigáveis, cheias e suadas e calorentas –
eu bebo enredos. O tempo todo. Todo o tempo. Contos, romances, tudo é vício e
almoço. Mas é safra específica: tem de ser leitura do século XIX (para trás),
com exceções honrosas. Por quê? Porque são palavras bordadas com aquela exata
delicadeza das toaletes. Porque havia as toaletes: mais do que se
vestiam, os personagens compunham-se para o contexto, sempre com graça e demora
incompatíveis com as nossas praticidades. Porque havia serões passados a
folhetim e piano. Havia bairros longínquos dando ar de viagem a percursos que
hoje fazemos sem cheiro de mato nem espiada pela janela. Havia idas a cavalo ao
Centro. Havia raparigas laboriosas que costuravam sob o lampião. Havia bailes.
Havia morgados. Havia cartas gordas de teor e de adjetivos – e havia as
respectivas esperas, saudades, impaciências. Havia aljôfares e coisas
alcatifadas. Aldeias. Tranças. Nácar. Modistas. Flores no peito.
Havia, sobretudo, esta segunda
pessoa do singular tão fresca e tão linda, limpamente conjugada com todos os
devidos esses; o tu sempre da intimidade caseira, mas tão
cuidado, tão observado que fica parecendo música biscoito-fina no ouvido
habituado ao português só-lâmina. Eu me drogo de tus. Preciso aspirar o
livro em que amas, fazes, queres, dá-me teus beijos,
que tens? Preciso do pronome oblíquo que dança entre verbos, da língua
florida, da língua que a gente masca coloridamente na boca, contente da poesia
de dizê-la. Preciso da trama onde tudo dá certo – para que felicidades alheias
me sorriam comuns e possíveis – e algumas vezes daquela onde tudo dá errado – a
fim de que o mundo de fora surja comparativamente seguro. Preciso estudar por
dentro os seres de papel e neles conseguir amar os de pele. Preciso receber
doses diárias da vida como foi, como era, como devia/podia ser, para abraçar
com repugnância menor (talvez esperança) aquela que é.
Livro é vacina. Injetamos n'alma um tanto quanto de nossos germes. O que embebeda sem causar rejeição – pode curar.
Um comentário:
Fernanda, Fernanda,
que alegria te descobrir nesse imenso nadifúndio que é a rede. Menina, como você escreve bem!! Quero ler mais, quero ler tudo... É pena que eu não seja bom "teleitor" (teleitor = leitor de tela). Mas vou lendo devagar -- e sempre. Soube de você por um link que o Fábio Flora compartilhou no Face. Não sei o que mais dizer. Gostei, gostei e gostei.
Abs,
Tarlei
Postar um comentário