segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Álibi

Domingos atrás, o espaço do psicanalista Alberto Goldin na Revista dO Globo recebeu o dilema de uma Gabriela, estudante de 23 anos que, embora moradora do subúrbio carioca, reserva a vida social para a Zona Sul. “Amo meus pais, mas não consigo apresentá-los [aos namorados sofistiquês] sem morrer de apreensão sobre o que vão falar, como vão se comportar”, lamentava-se a consulente. “Estou infeliz, pois perdi mais uma vez alguém que amava muito. Neguei até o fim que ele conhecesse minha família, e ele se decepcionou.” Goldin não afagou a cabecinha, respondeu na veia: “Gabriela não é exceção. Seu conflito mais grave não é que sua família seja pobre. É por ela se sentir pobre e, como defesa, assumir atitudes perdedoras”. Isto é, cambada: Gabriela somos nós. 

Muito infelizmente, não somos Gabriela de Amado, recém-transformada em Juliana cravo & canela. Essa outra Gabriela perguntadora é que tão constantemente somos – a derrotada por preguiça. Porque não há entre nós, em nós, tantos fãs da vitória como seria conveniente. Excessivas vezes, não é vencer que queremos; queremos encontrar o álibi mais adequado para sentar num canto comendo Passatempo e perdendo em paz.

Não nos achegamos nem em pensamento ao gato ou à mina mais inacreditável do recinto, já que temos feiura ou desengonço bastante para alegar batalha perdida. Não nos acercamos nem em pretensão do anúncio de emprego impossivelmente porreta, visto que – é óbvio – nossa formação e experiência não pagam a passagem de metrô para a entrevista. Não nos avizinhamos nem em projeto do piano ou violão ambicionado, dado que, definitivamente (todos dizem), nosso ouvido era o menos aproveitável da escolinha. Não fazemos inscrição nem imaginada para a faculdade top de linha, porque, raios, estudamos em colégio público, ai de nós que não vamos passar mesmo (aliás é discurso absorvidíssimo em colégio público, o nenzismo: há uma resistência orgânica a qualquer desejo de prestígio, e nem se tenta – nem se sofre – nem se sonha –, acomodados todos ao bebezamento coletivo praticado pelo governo).   

E quando ensaiamos um desencantar; quando fingimos um sacudir de asas; quando simulamos abordar, concorrer, nos inscrever, nos projetar – pomos tão microscópico tesão no processo que é como não fizéssemos, não entrássemos, não estivéssemos. Tentamos a tentativa protocolar, para os autos e álbuns. Tentamos para inglês, professor e chefe verem, para a mãe lembrar, para a assistente social anotar, para o psiquiatra absorver. Não tentamos com o ímpeto que desembainha a espada, que sequestra o momento, que cava alternativas, que bota pra picotar na máquina uns preconceitos, que revoluciona autoideias, que supera inseridos traumas, que corre, que briga, que desafia – que tece a hora sem esperar acontecer. Não tentamos porque queremos; “tentamos” apesar de não querermos. Como passaporte definitivo, carimbado, de visto permanente para a autoindulgência maciinha: tentei, pronto; felizes? agora parem de me azucrinar incentivos e me deixem dormir. No santo conforto dos que repousam à sombra de expediente alheio.

Tentar, de verdade, é tomar de si mesmo e hipotecar-se. O resto é “volto já” pendurado em nossa mesa enquanto fugimos pela porta dos fundos.

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