domingo, 28 de outubro de 2012

Olha a moça

A gente numa passagem estreita. Única passagem – estreita. Iam dois rapazes à frente, conversando com calma de passeio, passeando com pachorra de conversa e, em consequência, trollando nossa impaciência atrasada. Tem pressa não, viu, moço – eu mastigava por-dentromente minha ironia. Chocada com a incapacidade de meio mundo perceber o que vai além (e não tão além) de seu próprio mundo inteiro. Não queria reclamar em voz alta, não via nem jeito de pedir licença, não queria perder esperanças de ser notada com expressão infeliz e ouvir de algum dos rodas-presas: “Bora logo, cara, olha aí a moça”.

Não queria admitir que delicadeza, nos atualmentes, não é acessório que pertença ao pacote standard.

No meu antigamente, era. Nos idos da minha e doutras infâncias, Mãe e Vó – nossas inteligências emprestadas – corriam os olhos no ambiente e sabiam, sempre sabiam, se estávamos ou não transbordando o espaço. Se estávamos com a perna demasiado aberta, intimidando portanto os limites do companheiro de assento. Se estávamos autorizados a tomar assento: só não havendo senhorinha ou senhorzito algum nas adjacências, senão era colo e olhe lá. Se nosso cabelo botava cócegas em alguém sentado perto. Se nosso movimento botava apreensão no atendente da loja. Se nosso barulho franzia levemente a testa do colega de arredores. Se era necessário à paz alheia um “tira o pé”, “tira a mochila”, “vê com os olhos”, “cala a boca”, “engole o choro”, “não mexe”, “não gri-ta!”, “não leva a bolsa assim que machuca as pessoas”, “não pisa na cadeira que os outros vão usar”, “não anda de bloco na calçada que os outros querem passar”. Te traumatizou, leitor? a mim tampouco. Creio firmemente – ainda que guardasse raiva, no íntimo da época, aos tais outros em nome dos quais nos forçavam tantas renúncias – que bicho mui mais selvagem estaria hoje residindo em mim, não fosse pela obrigação, desde cedo implantada, de dar um 360º por sobre os ombros para prever/ prevenir amofinações coletivas.   

Disso precisam os pais: quase nada do DVD do Topetão – e muitissíssimo da capacidade de pôr os filhos em condição de, ante a autoridade, baixar o topete. Quase nada de uma viagem por ano aos mais estrelinhados resorts – e essencialmente da insistência em fazer, da meninada, promotores do conforto alheio. Quase nada do ingresso para o mais recente show do One Direction – e crucialmente do dom de direcionar a gurizada para a gentileza-mor do silêncio. Quase nada desses tudos que os pequenos recebem; quase totalmente desses pequenos nadas que compõem e que (se ausentes) azedam a coexistência. Educar não é plantar pequenos príncipes para disputar manada com tantos milhares de pequenos príncipes. Educar não é forrar a bolha com algodão egípcio para o coiso-mirim pretender achar no mundo tantos milhares de bolhas forradas com algodão egípcio. Educar não é ampliar excessivamente, aos olhos do herdeiro, o quadro de seus direitos e importâncias, a ponto de lhe vender a falta de seus deveres e insignificâncias. Educar não é lamber. Educar não é corromper. Educar não é distrair. Educar não é recrear. Educar não é adoçar até a diabete. Educar não é agradar até a temeridade.

Educar é mandar olhar aí a moça – e convencer o filho a convidá-la para o mesmo planeta.

Nenhum comentário: