segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Descasados


Curto montão as irmãs Brontë – Charlotte, Emily e Anne. Desta última, menos conhecida que as respectivas autoras de Jane Eyre e O Morro dos Ventos Uivantes, já li A preceptora e, agora, ando às voltas com o interessante A moradora de Wildfell Hall. É história, avançadíssima para a época, de uma Helen que precisou escapulir do marido narcisista, moralmente assediador, libertino e alcoólatra a fim de proteger a integridade própria e do filhito. Feito um Dormindo com o inimigo com mais espartilhos, bochechas de bebê e sofisticação emocional.

Helen casou-se apaixonada até a borda da medula, entre as fagulhas do primeiro amor e o nojo de seus outros pretendentes – um maçante, o outro velhamente devasso. Ficou, pois, cega às já manifestas inconveniências do caráter de Arthur, ou antes: dormiu na fantasia de que ela sozinha teria pureza pelos dois. Lascou-se, é óbvio. Lá pelas tantas do livro, derramou em seu diário as agonias do casamento unilateral: “Ainda o amo; e ele me ama, de seu próprio jeito – mas, oh!, quão diferente é o amor que eu poderia ter dado e que, uma vez, esperei receber! Quão pouca real simpatia existe entre nós dois; quantos dos meus pensamentos e sentimentos são tristemente enclausurados em minha mente; quanto do melhor e do mais superior de mim está, de fato, descasada [...]!”.

Descasados somos todos, quando a festa acaba depois dos bem-casados. Quando o casal existe socialmente, combina socialmente, brilha socialmente, substitui a necessária intimidade pelo entendimento físico (que, aliás, não seria difícil manter com um milhão de diferentes membros do sexo oposto), e entretanto permanece como que virgem um do outro. São absolutamente solteiros os indivíduos impermeáveis ao interesse alheio, incapazes de mergulho em outra psiquê e mesmo incapazes do reconhecimento de outra psiquê. São absurdamente incasáveis as criaturas que, em dupla, conservam-se ainda na antiga unidade; que se enamoram de nascença pela beleza das próprias vontades e a elas fidelizam-se, infinito adentro. São insomáveis as pessoas que já perfazem mentalmente um inteiro; que tendem a transbordar esse inteiro – perfeito que é – em cima de pobres seres não habitados, potenciais colônias suas. São inexpugnáveis, para efeitos de casamento, os que em si se saciaram de toda chance de deslumbre, os que em si se embebedaram de toda existente personalidade, os que em si se descobriram fonte de toda ciência. Solteiros, viúvos, divorciados, celibatários definitivos independem de estado civil: moram em todo coração onde só tem um prato na pia. Que nem sempre lavam. 

São vazios de possibilidade conjugal os que só em primeira pessoa de excessivo singular se conjugam.

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