quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Perfeitinhos demais

Foi em Lado a lado, há alguns capítulos. No núcleo teatral da novela, Isabel (Camila Pitanga), camareira da estrelona Diva Celeste (Maria Padilha), esperava a chefa sair do palco: robe em punho, braços abertos, seda pronta para envolver a atriz banhada no suor do pós-peça. Esperava com a satisfação calminha de quem cumpre o dever com capricho desafetado. Esperava sob o olhar ruminante de Neusinha (Maria Clara Gueiros), que – ela mesma ex-camareira da diva – cobria a ajudante com suspeita viscosa: “A mim você não engana, garota. Fica aí toda noite só fazendo seu trabalho... Nunca atrasa, nunca reclama... Qual é a sua, hein? Você não tem ambição?” (favor não acharem que me dei ao luxo de reescutar o diálogo; se não foi essa a forma, foi esse o teor). Isabel impávida, toda indiferença e doçura. Jurou, com elegantíssimo desprezo, que não, não tinha ambição sem ser a do trabalho benfeito. Neusinha inconformou-se no cúmulo da casmurrice: “Você, sabe? é perfeitinha demais. Odeio gente perfeitinha demais!...”.   

Não admira. É coletivo. Quase toda criatura (humana) odeia os seres (humanos) perfeitinhos demais. Nisso não deixa de haver, sejamos justos, alguma racionalidade experiente: melhor disfarce não existe que a imitação histérica das qualidades menos tidas e mais amadas – estão aí políticos e carminhas que não nos permitem exagerar na boa-fé. Uma parte gigante dos perfeitinhos demais é, sim, composta dos abutres da virtude: gente que abusa do realismo na fantasia de cordeiro, para com mais conforto, mais de perto, mais segura e longamente rapinar a carniça alheia. Não discuto. Mas vamos que – como ocorre sinceramente com Isabel – estejamos contemplando de fato os quase perfeitos, aquele povo correto por natureza, dedicado por gênio, honesto por índole, sereno por talento, alegre por vocação. Vamos que a colega de seção seja uma certinha autêntica, das que vazam ética, bom gosto e delicadeza pelos poros. Vamos que o vereador recém-eleito seja um impecável típico, dos que almoçam e jantam responsabilidade, têm hálito de menta e incapacidade crônica de dizer não ao despertador. Entendendo que assim seja: ainda nesse caso (ou especialmente nesse caso) o perfeitinho será zombado, receado e espinafrado como inimigo, cogitado como X-9, lido como bomba-relógio. A não ser, claro, que tenha se embrenhado em carreira na qual toleramos santidade – medicina, terapia, sacerdócio. A não ser que tenha se isolado no monte aonde só chegaremos levando-lhe nossas dores, vez em quando, sem precisarmos ser afrontados dia a dia por sua superioridade perniciosa.

Porque só invejamos a bondade que nos chama direto pro ringue. Não a dos Gandhis e Madres Teresas, que essa não nos vem humilhar no barzinho que frequentamos, nem nos ameaça na promoção que perdemos. Não nos ressentimos dos distantes – como quem não se vê autorizado a sonhar em trocar o Rio de Janeiro pela Atlântida. O que nos irrita são as perfeições possíveis. As eficiências que se esfregam em nossa cara, demolindo tão maldosamente os álibis de fraqueza que passamos tanto tempo tijolando. As incorrupções que ousam não aceitar propina, chantageando-nos sem voz, mas com a paranoia da comparação. As ternuras que não sustentamos, as pontualidades que não mantemos, as paciências que não conservamos, as belezas que não imitamos, as gentilezas que não fazemos, as persistências que não atingimos: eis, no horror da esquina em frente ou da mesa ao lado, nossas bruxas.

(Em falta de autocura, a gente de repente só dorme se – espelho, espelho meu – tudo num raio de 200 km for a mesma porcaria que eu.)

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