terça-feira, 4 de junho de 2013

Alma na janela

Minha diretora é também fã de escrita, mas admite não estar praticando quanto gostaria porque tem necessidade, para essas ocasiões, de botar a alma na janela. Expressão sua, que sorvi encantadamente e sem pergunta. Botar a alma na janela; como não entender? se é trecho de frescor autoexplicativo, se é uma ideia que venta na gente, grávida de poesice e urgência. Nada, nada de necessariamente belo no mundo é nascido de alma que não tenha se postado a namorar na janela, mão no queixo, afeto pensativo no olho, atenção triste ou venturosa ao sol e às demais estrelarias. Precisa nem de abertura no recinto: pode-se, deve-se botar a alma na janela enquanto o pulmão aspira cafofos mofadíssimos, enquanto se trabalha no fundão da loja centenária de ferragens, enquanto se dá plantão como recepcionista de consultório que sabe só pelo paciente se andou chovendo nas 18 horas últimas. Deve-se botar a alma na janela principalmente em instâncias mais abafadas; com especial presteza nos momentos mais fechados à chave. Deve-se aí mesmo com mais pressa, mais ênfase, até mais saudável desespero botar a alma para fazer fotossíntese, antes que morra de bolor irremediável. Mais janela para quem mais estiver com anemia de janela.

E como é que se pendura alma em janela? Soprando nela qualquer alegria – ou dor escolhidamente delicada – que lhe espane a camada de hábito mais ou menos grossa. Alma nenhuma inventa bulhufas soterrada de hábito. Há que dar um susto na alma, revolver-lhe alguma casca, abrir duto de ventilação. Coisa batata para isso é livro, de preferência não o mesmozito de sempre: livro de outras mãos, com outras falas e outros cheiros, que de repente ponha ares inesperados no pensamento engordurado de limo. Esbarrar em outras cabeças é, aliás, remédio certo. Entrevista com que se tope na Globonews, matéria de revista que inaugure opinião inesperada, poesia de cair o queixo pintada no muro, comentário surpreendentemente inflado de coragem no jornal – são algos que lustram, que desembotam, que denunciam mundo vivo penetrando pela fresta. Se o mundo penetra com o que tem de melhor, também fecunda; pessoa fecundada de possibilidades tende a ser aquela que não negará carona, que arriscará paquera, que mandará o manuscrito, que trará criatividades para o manifesto, que se limitará à mala pequena, que organizará o grupo voluntário. Pessoa com alma janeleira se deixa bafejar de pólen, se permite fragilizar por mudanças, se abre à humildade das desculpas que brotam de recém-opiniões. Pessoa de coração janeleiro, ainda que sofra, não fica manzanzando no quarto até atrofiar de câimbra: encosta-se em silêncio à beira do mundo nem que seja pra ver a banda passar, tocando coisas de amor. Nunca apodrece na justificativa da pena de si mesma. Nunca resseca. Nunca se esgota.

Botar a alma na janela é morar em estado de véspera. Gostar de se amanhecer – mesmo doendo.

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