quarta-feira, 5 de junho de 2013

Inimigos do rei

Acho uma graça, sabe? quando alguém ergue o cetro e declara que você é um traidor da pátria. Provavelmente por ter sido você o único cidadão que escarafunchou a sem-vergonheira oficial da União e tacou no ventilador. Você foi o único que se lembrou de avisar aos conterrâneos que eles estão tendo mails e ligações hackeados pelo governo – digamos hipoteticamente. Você, por consequência ultralógica, é o mais aguerrido e safado traidor da pátria. Afinal, feriu o contrato de confidencialidade. Desonrou os princípios do seu cargo (digamos hipoteticamente que você batia ponto na CIA). Arriscou a segurança da nação ao revelar estratégias de supervisão do governo. Que feio, que feio, que bobo: aiaiai.

Pois acho uma graça horrível ao constatar o quanto as palavras-apenas podem ser grudadas no dorso de qualquer sujeito que comete o despautério de ser mais pelo justo que pelo estabelecido, mais da ordem que do ordenado. Acho uma graça escabrosa ao ver que ainda não caiu de modinha condenar a criatura que questionou a divindade do faraó, que cuspiu no faraó para dar uma alertada básica nos escravos suentos. Acho uma graça mórbida ao considerar que ainda e sempre servimos a César; somos crucificados – agora em cruz verbal – se nos rotulam inimigos de César; somos fogueirados – agora em fogueira internauta – se fazemos fora do penico da Inquisição; somos marcados de letra escarlate se nos apontam adúlteros! adúlteros! da safadeza do reino. Acho uma graça azeda ao admitir que países ainda são presidentes. Povos ainda são seus governos. Nações ainda se acomodam pintinhamente debaixo de asas absoluto-populistas. Gente de bem ainda é somente assim considerada se não aborrece os planos de suas agências de inteligência, de sua Grande Mãe. L’état, desgraçadamente, ainda c’est moi. Le roi.

Recuso. Recuso a honraria de fiel da pátria se me querem a fidelidade falsa, prostituída, de bater palminha para a lindeza dos estádios e aparecer de blusa da seleção num bar do RJ-TV. Recuso-me a ser americana leal se I’m supposed to descobrir uma velhacaria interplanetária e fechar a boca, que senão o big boss fica mal na fita. Recuso-me a ganhar qualquer chave de cidade se para isso tiver de chamá-la linda, Maravilhosa, absoluta, a despeito do esgoto das vontades correndo a céu aberto, da podridão das obras sepultando muitas chances de libertação verdadeira, da lepra de saúde e educação enganando trouxas que se julgam tratados e felizes com a pomadinha paliativa. Ser patriota é estender bandeira na varanda enquanto o coração se hemorrage de nojo por uns e outros que votam o próprio aumento salarial? Ser patriota é defender que a revolta nas ruas não se deve estender à classe média capaz de pegar um táxi? Ser patriota é colocar pedra fria, monumento mudo, Bastilhas coroadas pelo hábito acima da real necessidade de grito, acima da urgência viva, quente, pela primeira vez (em tempos moderníssimos) lindamente sangrante? Se é – recuso. Recuso a chave, rasgo o título, piso o rótulo. Não quero a honra infeliz de cidadã exemplar, se o cidadão exemplar da cartilha deve se manter chapando de crack, balançando caxirola no estádio, fazendo campanha ensolarada de creche da família – qualquer coisa cúmplice e sossegada, que nos distraia caladitos no sofá enquanto papai, na sala, bajula a visita.

Abaixo a lealdade de filme e fórmula. Avante a lealdade suprema que berra, que denuncia, que incomoda, que ralha, que taca no ventilador, que não se dobra a conveniências de cargo mas a ditames de ética, que não vê a conjuntura mas o eterno, que não obedece a opiniões de Globo mas a valores globais. Abaixo as fronteiras inventadas, abaixo o muxoxo alheio que nos reprova por reprovar o lodo onde não escolhemos nascer, mas que ainda conseguimos escolher mudar. Avante a fidelidade a todos, não a quem já tem gordinho o cofre, não a quem está com o dedo no botão da bomba atômica, não a quem enverga a faixa presidencial. Mesmo porque quem enverga a faixa presidencial, não sendo de modo algum patrão, é o primeiro e mais humilde servidor – que contratamos a preço altíssimo de esperança para colocar o joelho no chão e ser o faxineiro-mor, maior responsável de todos por abrir a caixa de gordura e arrancar-lhe o ninho de barata pelas tripas. E, se ali no meio é ele que vira Gregor Samsa ou que cultiva baratas de estimação, temos nóóóóóós o dever patrioticíssimo de botar pra fora, mostrar a cara e arranjar outro que realmente saiba quem é que manda nessa joça.

Aiaiai.

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