domingo, 9 de junho de 2013

O passado de presente

Toca-me o falado por Marina Colasanti numa sua crônica, “Cada vida é um romance”: “Uma pintora me conta que o passado começou a refluir na sua alma. E ela decidiu dá-lo de presente aos filhos. Está escrevendo, em vez de pintar. Não apenas o passado dela, mas o da família, fatos que presenciou, histórias que a mãe lhe contou, que os avós e os tios lhe contavam quando ainda menina. E porque sabem que está escrevendo, os parentes lhe contam mais. E quanto mais escreve, mais o passado cresce, mais se torna o documento de uma época, mais ela tem a sensação de que pode vir a interessar a alguém além dos filhos”.
 
Dar o passado de presente: eis uma beleza que nunca me ocorreu, eu que de presentes tanto gosto. Já croniquei o quanto me encantam o ato da escolha carinhosa e o do embalamento colorido, se bem que sejam processos coroadinhos de angústia: é do tamanho, é da cor certa? será do agrado? será repassado? será repetido? Só nunca me dei conta, suficientemente, da necessidade tão linda de embrulhar o que talvez mais importa, além de nosso amor e tempo mesmo; da necessidade de empacotar, a certa altura, o que fomos e vivemos, o mais fielmente possível à narrativa original. A cada momento nos relatamos pela boca, pelo Face, por orgulho – por ancestral orgulho de nos ver enxergados –, e nem sempre sem a photoshopada básica no fim de semana real, na ideia crua de terra batida. Nos contamos muito ao sabor do vento, muito no lá-e-cá das novas opiniões se erodindo e se brigando, muito no meio do som e da fúria. Nos contamos de fora, no ímpeto, com enfeite; pouco paramos para nos narrar de dentro. Pouco paramos para nos entregar como álbum de fotos verbal a quem interessar possa.
 
É raro confessarmos com nudez o quanto, de nosso pequenino ponto de vista, foi dolorosíssimo o voltar à escola após o corte de cabelo; o quanto de ciúme havia naquele riso pelo tropeço do primo; o quanto de ressentimento, naquela proibição de correr no recreio. É raro dizermos mais que – “tudo bem” – quando Mãe nos pergunta sobre o dia, é raro vencermos a preguiça emocional de expor a confusa ansiedade do trabalho de grupo, de admitir a tentativa de ingresso no grupo da garota bonita (ou do guapo mancebo), só para ter a discreta alegria de roçar-lhe os pelitos do braço não mais que de vez em quando. É tão preciosamente raro deixarmos cair o mistério enfim, ao menos no fim; ao menos então revelarmos que legamos diários e cartas, recortes e agendas, papelões e envelopes cheinhos das velhas respostas, cheinhos de nossa velha pessoa. Assumirmos então que, na falta de anterior competência ou coragem, nos colocamos em testamento. Nos estampamos ali como realmente éramos, com os pensamentos insuspeitos, com as simpatias inconfessas, com as esquisitas manias dos intervalos de convivência, com os falares e cantares sozinhos, com as dores que não comentávamos para não nos apontarem hipocondria, com as cismas adolescentes de nos dissecar em listas, com os gaps de indefinição de existência, com os imensos remorsos de atos minúsculos, com os desesperos minuciosos do trabalho, com as impaciências sociais, com os instantes absolutamente apolíticos, com os preconceitos que tentávamos extirpar a canhão, com os sofreres miúdos que escondemos dos pais para não ouvirmos deles sobre a fome na Somália, com os sorrisos que distribuímos amarelamente para só pedirmos solidão. Tão desejável e impossível: o documento definitivo que nos permita (dar a) conhecer afinal, jogar luz na biografia autêntica que tanto morre sem escrita e leitura. O raio-X. O portal. O Graal. A paparazzice última. O gabarito comentado. O roteiro do enigma, cena a cena.
 
O passaporte para a insustentável leveza do ter sido.


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