sábado, 14 de julho de 2012

Comove-me

Comove-me o olhar cabisbaixo dos que não se sentem merecedores. Comove-me a insistência dos que não sabem senão teimar pela vida de quem lhe resta. Comove-me a objetividade das florinhas de fresta. Comovem-me as sinceras desculpas. Os eternos e inquestionáveis casais. Os sinais e nomes particulares usados no evento crítico. A casa da infância. O quintal da infância. As memórias desimportantes da infância. As aceitações inesperadas. As reações (boamente) subestimadas. As conclusões descomplicadas. As solidões resignadas à velhice. As desatenções calcadas em alheia fragilidade. Os corais. Os violinos. As músicas precisas na letra. Os arco-íris.

Comove-me o pré-adeus à viagem. O esvaziamento do quarto de hotel. O último café. As últimas fotos. Comove-me qualquer criatura que não receba visitas. Comovem-me estraçalhantemente as criaturas que não recebem visitas – mais que as que adoecem, mais que as que morrem; não receber visitas é ser prematuramente rebobinado de toda existência. Comovem-me as adoções improváveis. As epifanias que botam frio na medula. Os olhos cor de mel. Os olhos úmidos. Os olhos imensos e úmidos. As bonecas esquecidas pela dona já mocinha. O apoio inoxidável da irmã. O tempo passando nos pais. A mãe falando amorosamente do avô. A avó já pensando nos colares herdáveis pelas netas. O instantezinho das decepções (sou incapaz de presenciar qualquer decepção, em especial as intransmissíveis). Um viúvo ou viúva depois de 67 anos de união. A hora em que a gente repete “na alegria e na tristeza”. Os que chamaram pra festa e não veio ninguém. Os finais de novela. As famílias do Extreme makeover. As acácias. As cerejeiras.

Comovem-me as crônicas de Martha, Clarice, Rubem Braga, Rubem Alves, Paulo Mendes Campos. Comovem-me as ternuras de Guimarães Rosa. Comovem-me os patinhos que interrompem o trânsito de São Paulo para atravessar a rua. Comove-me a declaração dos que não queriam declarar-se. O êxito dos que não queriam arriscar-se. Comove-me a lua muito, muito cheia; o céu muito, muito limpo. O anjinho muuuuito, muito simples (sorridente) que colocávamos sobre a manjedoura no Natal. Comovem-me os solitários do Natal. A lembrança do pudim de Vó comido nas últimas do ano, diante da São Silvestre. Comovem-me as crianças brincando igual com o colega diferente. Os sinos chamando para a missa. Os jovens indo buscar a senhorinha no meio do vagão para ceder lugar. Os donos de comércio local cumprimentando na rua como em cidade pequena. As vítimas recomeçando do comecíssimo. Os pinguins órfãos de filho tentando adotar o filho alheio. As cartas – que são cartas – na caixa do correio. A floração da dama-da-noite. As corujas. Os jumentinhos. Os vaga-lumes. Os beija-flores. As borboletas.

Comovem-me poderosamente os que perderam transplante ou casamento de filho por causa do atraso no voo. Comovem-me os que pensaram ter o aniversário esquecido. Os que sentam sozinhos no recreio. Os que não são escolhidos para o time. Comove-me a alegria tão inteira que não acha jeito de palavra. Comovem-me as lojas infinitas que abrem falência. Comove-me o tempo empregado elogiando. Comove-me a manutenção da vida com sacrifício de si mesmo. A manutenção dos princípios de si mesmo com martírio da vida. Comove-me a umidade das matas. O cheiro da umidade das matas. Comove-me o ato de doar uma medalha. De doar uma medula. Sangue. Órgão. Tempo. De ler para cegos, cantar para tristes. Fazer biscoito caseiro para tristes. Comove-me a coincidência enregeladora. A quermesse ou bingo para levantar fundos. Meninos fazendo literal malabarismo de fogo, rapazes tocando violino na esquina. Marido dormindo em sossego quente. Marido. Madrugada. Lírio. Cisne. Piano. Serenata. Soneto.

Comove-me o que entra nos medos maiores: ter ou perder.

Um comentário:

Unknown disse...

O mais sincero e bonito do mundo é a capacidade de comoção. emorcionar-se junto, mesmo não sendo a sua própria emoção. sentir a emoção e outrem e ama-la. quando foi que perdemos isso?

um abraço, lindo texto.