sábado, 20 de outubro de 2012

A doença de ser

Foi embora, ontem, um dos maiores folhetins ever escritos. Acompanhei com razoável constância; verdade que não segui muito lá pelo meio, quando a mocinha envilãzou, engoliu um soldado da SS e deu de torturar a vilã principal – ficou sádico demais envolver cortes de cabelo (o que são cortes de cabelo, mulheres? homicídios de personalidade) e outras humilhações do gênero. Mas depois Nina reassumiu o traje de fofinha e meu estômago pôde retornar à novela, contente de alívio. Problema é o luto que perdura tão logo o enredo cumpre sua função, tão logo nos esfregam o the-end no nariz, tão logo os comerciais da trama seguinte deixam de nos violentar a novela preferida para virar alternativa única. Comerciais da trama seguinte são todos carminhas; todos madrastas más, que anunciam a morte de nossa história de origem e a troca involuntária de família. Tanto faz se melhor ou pior nos virá o próximo enredo: somos inevitavelmente órfãos de lixão.  

Por falar em Carminha, houve quem duvidasse que a megera mais oioioi de todos os tempos pudesse redimir-se. Totalmente discordo. Carminha faz parte do exato grupo de megeras que podem redimir-se: as capazes de sentir. Note-se que não era nenhuma psicopata a ex-mulher de Tufão. A seu modo troncho, amava o filho Jorginho, não deixava completamente de se importar com a caçulinha Agatha e tinha lá seus esquisitos afetos pelo amante, cuja morte (por suas próprias mãos oxigenadas) parece ter-lhe sido o turning point da consciência. A ruindade que apresentou desde o primeiro capítulo não nasceu com ela, não era condição inerente e orgânica, não era a mutilação emocional que vem no pacote desses Kevins aí da vida. Carminha ficou Carminha. Adquiriu ao longo dos anos a doença que largamente a acometeu, que quase a inutilizou para tudo o mais. Adquiriu-a quando entendeu, aos mais ou menos seis anos, que um pai poderia matar uma mãe e jogar a culpa na vizinha que perdera a filha; que o mesmo pai poderia abusar de uma criança e depois fazê-la de traste a ser jogado no lixão; que a mesma criança poderia crescer catando lixo para um bêbado, mais tarde poderia ter de prostituir-se para garantir o almoço. Justifica? Não justifica. Mas explica. Explica como um coração – inicialmente tão potável quanto qualquer outro – conseguiu poluir-se o bastante para ser nublado dos sintomas básicos de humanidade. E explica como um golpe extremo pôde detonar o extremo cansaço. O cansaço dos doentes que se exaurem da revolta e simplesmente desistem de alimentar de raiva o monstro já feio pela própria natureza. Carminha se re-generou porque outra vez gerou-se, fez-se nova gênese; rebootou-se, reciclou-se, nadou para o ar após imergir em si mesma até a náusea. Manteve a grosseria e a arrogância, como quem mantém os óculos sem grau depois da cirurgia que corrige a visão. Muletas. Já que as curas que não são milagrosas deixam sempre um nicho do tumor extirpado.

Ser o que a gente é teve começo. Pode logicamente ter fim. Maldade adquirida também é coisa que dá e (na marra) passa.