sábado, 21 de janeiro de 2017

Importante o suficiente

Li em algum lugar que as últimas palavras de Sir Arthur Conan Doyle, ao morrer, foram dirigidas à esposa Jean Elizabeth: “Você é maravilhosa”. Nem posso dizer o quanto fiquei tomada de ternura. Era o pai de Sherlock Holmes que se ia, e podia muito bem ter cunhado e guardado alguma literatice para a posteridade, algum “saio da vida para entrar na História”, algum “a morte é a coisa mais elementar, meu caro Watson” (eu sei, eu sei que essa expressão não é dos livros de Sir Arthur, mas vai que?), um troço qualquer que lhe dourasse o epitáfio de escritor. Conan Doyle, porém, tinha morrido segundos antes, e naquele momento do ataque cardíaco foi apenas Arthur, e o último eixo do homem resumiu-se em amor, gratidão e saudade. O essencial de nós é o que parte mais no fim.

Pois então, já que temos em nós aquilo que sabe o que diríamos na morte, não podemos acessar mais sempremente o arquivo durante a vida? Se é certo que nosso último “ai” não será – “O senhor viu, Doutor Peçanha, as cotações de hoje?” –, por que topamos conviver com a mania dos cifrões 87 horas por dia? Se acharíamos ridículo que nossa declaração final fosse – “Menina do céu, você não adivinha quem o Gustavo Lima tá pegando!” –, por que boiamos tanto tempo precioso nesse marzão besta, besta de informações nulas? Se os filhos são mesmo a alegria mais linda e não prisão domiciliar, se o trabalho se limita a uma fonte de renda e não virou ração de um orgulho doido, se as selfies são brincadeirinha dispensável e não alimento de uma vaidade ensandecida, se o amor é a pérola querida e não o ser que intimamente se empurra e despreza, que estamos nós fazendo aqui, jogando esse tantão de vida fora – na ausência de casa, no expediente infinito, no correr solitário da infância dos pequenos, nas partidas intermináveis no celular, nas milhares de poses coreografadas no espelho – com o que não desejamos que nos represente e nos sobreviva?

Conan Doyle só dirigiu as últimas palavras à esposa porque estava com a esposa. Não somente diante dos olhos: mais junto, mais perto, mais fundo, mais sempre. Jean estava no altar do que é importante o suficiente para ser nossa urna, para nos receber como ideia e lembrança quando deixamos de ser corpo. Últimas palavras são restos mortais do que escolhemos, cinzas da motivação que tivemos, semente caçula das crenças que levamos. Aos nossos césares o que é desses césares, e ainda em plena vida, para que a linha final do script não seja senão um (bom) arremate do que já lhes é mui visto e sabido. “Você é maravilhosa”: uma fofura – mas, eu espero, não uma novidade. “Você é maravilhosa”, digam os olhos na contemplação diária. “Você é maravilhoso”, digam as mãos ao desenformarem o doce preferido, just because. “Vocês são maravilhosos”, diga o sorriso de quem alerta com paciência para os erros no dever de casa. Sem agenda, sem limite, sem voz até: o você-é-maravilhosa de Conan Doyle tanto nos acompanhe e se manifeste que, no último capítulo, nada mais tenha a fazer do que nos acompanhar e manifestar-se, fechando todas as questões sobre os quês que mais nos importam.

E os quens – elementar, meu maravilhoso Watson.

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