terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Um brinde aos corações que sofrem

Quem já assistiu ao doce La la land vai reconhecer, aqui no título, um dos versos cantados pela protagonista Mia em seu teste de elenco mais importante. A música da audição, fofa e melancólica, é a completa celebração da arte: um viva aos tolos que sonham, aos malucos-beleza que se entregam, aos que amam a ponto de esfacelar-se, aos que nadam no Sena mesmo à custa de alguns espirros. Sobretudo, comoveu-me esse brinde aos corações que se partem – não porque seja bonito e necessário sofrer, muito menos porque haja qualquer alegria em festejar a dor alheia, mas apenas porque a canção sugere, carinhosamente, que os capazes de se deixar fragilizar são os que mais íntimos estão de sua própria humanidade.

Um brinde, então, aos que se sentem fracassados em conviver com o mundo, por não compreenderem que um grama de papel possa valer mais que oitenta quilos de pessoa. Um brinde aos que dissolvem por dentro toda vez que passa reportagem falando de quem perdeu tudo na enchente. Um brinde aos que morrem da mesma flecha que dispara preconceito no vizinho. Um brinde aos que não digerem a ofensa a eles não dirigida, aos que ficam órfãos do filho de outros pais, aos que gemem sob o fardo de outro povo, aos que gritam da injustiça a outra vítima. Um brinde aos que lançam fora o escudo e se permitem crivar das tragédias que não são suas.

Saúde aos tão desencouraçados que sucumbem ao primeiro baque das próprias tragédias. Saúde aos frágeis e pequenos, aos suscetíveis e permeáveis, aos impressionáveis pela inocência, aos escandalizáveis pela pureza, aos transparentes como fada, aos etéreos, aos poetas, aos delicados. Saúde aos que se chocam, aos que choram, aos que se espantam, aos que não se encaixam; saúde aos que duvidam da sanidade coletiva, aos que têm fome excessiva de ternura, aos que compõem escondidamente de madrugada, aos que soluçam de dó e saudade ao verem o que era colorido ser coberto de cinza. Saúde, tim-tim e vida longa aos que serão sempre muito jovens, aos que enfartam com a lógica do mercado, aos que se enternecem pensando como dura pouco uma borboleta, aos que se arrepiam com certos acordes, aos que se arrepiam com certos acordos, aos que pensam com cândido horror numa rotina milionária. Um brinde aos que são turistas da realidade louca. Santé aos que são imigrantes de um éden paralelo. Cheers aos proscritos, aos viúvos de seres mais humanos, aos exilados de paraísos futuros, aos hóspedes de uma dimensão que os aterroriza. Tim-tim aos que dia a dia se rasgam, se esvaem, se medicam, se perdem, se atormentam, se questionam, se assombram, porque não pertencem.

Eu vos saúdo, abraço e amo! irmãos que perdoam e recebem, ainda que rotulados de pamonhas; irmãos que preferem encolher-se no quarto a retaliar com um só peteleco; irmãos que se afligem mas não julgam, se amarguram mas não condenam. Bato convosco um hi-five de coração a coração. Sem os que se apelidam otários não resta beleza, pois que é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não; sem os tolos não há a delícia sutil, há apenas causa e efeito. Sem os tontos que gemem, não existe som de viola, nem soneto, nem rap, nem concurso de fotografia, nem tango. Sem os que suam sob a própria pele, não há fantasia. Sem os que se estafam de fumaça, não há jardins botânicos. Sem os deslocados, não há observadores gentis; sem observadores gentis, não existem empáticos; sem empatia, Homo sapiens é cronicamente inviável.

Um brinde eterno ao amor que mora no que é triste; só no coração traspassado se lavra a portinha para o outro entrar.

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