domingo, 29 de janeiro de 2017

Ilusão de ótica

Acho no mínimo hilário quando qualquer mente generosa manifesta sua esperança em igualdade e dignidade, aí vem outro ser com ar de PhD em mundologia aplicada e decreta: “Ah! Você está muito iludida(o), querida(o). Isso nunca vai acontecer, é uma utopia cor-de-rosa, tem sido do jeito que é desde o início dos tempos, desde a descoberta do fogo”. Quanto a vocês não sei, mas a mim parece absolutamente estapafúrdio que haja um certo consenso sobre como as coisas deveriam ser (todos com casa e acolhida, alimento e família, medicina e roupa lavada), uma geral concordância a respeito do básico que se deveria ter, uma Declaração Universal dos Direitos Humanos louvada e replicada em verso e prosa – e mesmo assim se considere ilusão tudo que aponta para o coletivamente aceito, enquanto a “dura realidade” dos experientes seria composta pelo exato erro que nos repugna. Me internem se for o caso, me avisem se perdi o bonde, mas antes recapitulemos juntos: o correto, apesar de 90% do planeta admitirem publicamente que é o correto, não passa de fantasia, e especificamente o que esses 90% classificam como ruim/tosco/injusto/indesejável formam a parte prática e efetiva de nossa existência – confere, produção? Ah, tá, era só para confirmar que não sou a única insana in tha house.

Andamos, de fato, terrivelmente iludidos; mas por excesso de utopia é que não é. Andamos iludidos com a ideia de que um sistema que faz muito mais escravos do que faraós possa se sustentar para sempre. Andamos desvairados pela crença de que um mundo que tende a produzir mais mulheres do que homens (somos mais resistentes à dor, precisamos de menos comida, nos viramos melhor, nos cuidamos mais, vivemos mais) vai concordar em permanecer ad aeternum na mão dos machistas. Andamos falsamente persuadidos de que bilhões de Homo sapiens cada vez mais aperfeiçoados vão achar sempre normalíssimo matar alguém a pauladas por não se gostar de sua cor, credo ou vida amorosa. Andamos – para mostrar que somos sabiamente amargos na medida certa – orgulhosos da impressão de que iremos emendar um apocalipse no outro, como se não soubéssemos que a ciência já conseguiu reverter extinções, erradicar doenças, fazer carros voarem e mais um trilhão de belezas impossíveis há cem anos. Andamos doidos, sei lá por quê, para provar que seremos idiotas permanentes, carrascos inevitáveis, agressores, exploradores, torturadores, racistas e misóginos, negando as evidências de nossa própria evolução.

Não há lógica em esperar o pior de nós: fomos projetados para crescer como espécie, curar, inventar, criar estratégias. O fato de alguns terem estacionado mentalmente em 1270 não impede os demais de seguirem seu 2017 compulsório, progredindo com recém-descobertas consciências, tecnologias e informações; não impede sequer uma ou outra cabeça iluminada de já frequentar os insights de 7210. Na média, pois, estamos bem – e os incrédulos que catem propagandas nojentamente preconceituosas de décadas atrás e comprovem que seguimos, sim, sempre adiante, embora dez passinhos à frente venham às vezes com um de recuo. Só não se pode crer que, contra a nossa mais estomacal natureza, retrocedemos; não se pode defender que o destino da caminhada seja lenda e os pântanos de onde viemos, a meta. Não se pode supor que, eternamente, os mais numerosos se deixarão espezinhar para cobrir oito ou nove de luxo. Não se pode raciocinar que o ilusório seja a vontade de milhões – e que o pé-no-chão seja o capricho de dois ou três meninos mimados. Fosse assim, estaria ainda a monarquia em plena posse do mundo. Mas impérios não duram. Potestades humanas tropeçam. O futuro é espontaneamente igualitário e republicano.

Da próxima vez que alguém o chamar de sonhador, pode inflar: sou mesmo. É voando que melhor se nivelam as mesquinharias do chão e se enxerga o todo. 

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