quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Não é conversa de botequim


 (E que Noel me permita cantar assim:)

Ô justiça, faz favor de reagir depressa,
Gente da suástica é pra ser encarcerada
Um ser decente, quando bebe à beça,
Não diz "heil" e só vomita a cervejada

Bota essa extrema-direita pra ver sol quadrado
Leva lá pro esgoto e deixa a gente aqui no sol
Vai o nazista e quem 'tiver do lado,
Que se ficou do lado é do mesmo rol

Se permanecer na mesma mesa
Também é cúmplice, até por fraqueza
Não se inclui a exclusão
Nem em papo de banheiro,
Nem em bom-dia no portão

Não precisa estar gritando "mito"
Pra ser fascista já de gabarito,
Nem rosnar o tempo inteiro:
Basta ver algum nazista
E achar corriqueiro

Ô justiça, faz favor de reagir depressa,
Gente da suástica é pra ser encarcerada
Um ser decente, quando bebe à beça,
Não diz "heil" e só vomita a cervejada

Bota essa extrema-direita pra ver sol quadrado
Leva lá pro esgoto e deixa a gente aqui no sol
Vai o nazista e quem 'tiver do lado,
Que se ficou do lado é do mesmo rol

Bora pôr pra jogo as nossas leis,
Como a querida sete-sete-um-seis
Não é só palavrório
Tem artigo feito luva
Contra o bando de finório

Ô, justiça, mete em cativeiro
O malfeitor que se diz galhofeiro
Não convém ser transigente:
Quem assiste a essa torpeza
E se cala – consente.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A torre de cavalos azuis


Opa, níver de 142 anos do expressionista alemão Franz Marc, fãzaço de cores vivíssimas e de animais, especialmente cavalos. Como há cavalos na obra do pintor! Cavalos vermelhos, cavalos azuis em abundância – aliás é o exatinho espírito da tela acima, The tower of blue horses (1913), em que o autor agrupa logo quatro equinos de enfiada. A pintura não tem como ser mais alegórica e mítica, com seu título que daria romance grandalhudo, seus animais fabulosos quase que feitos de céu (talvez literalmente, já que a criatura exibida em primeiro plano traz no corpo uma lua crescente e uma cruz sugestiva de estrela), seu arco-íris alternativo ao fundo, tinto apenas de verde, amarelo e laranja. Tão épico parece, tão talhado para sagas, que não tenho como não imaginar uma qualquer lenda escocesa, élfica, românica, nibelunga relacionada ao quadro – dessas histórias de muito espectro, muita cavalgada noturna com som e sem imagem, ou com imagem e sem matéria, ou com famílias milenares de cavaleiros encantados que pipocam das molduras.

Em minha lenda imaginária (com o perdão da redundância), há sim um clã ultradicional daqueles tempos sem tempo, no qual nasceu um jovem notavelmente rebelde e discrepante chamado Yaloth. Não é que não quisesse adequar-se à rotina de cavaleiro que todas as gerações pregressas haviam encarado; era, entretanto, incapaz de dominar um cavalo sem sofrer horrivelmente com o sofrimento que julgava infligir ao animal, e ao mesmo tempo tinha um apetite tão furioso pelo mar que era invariavelmente encontrado correndo junto às ondas, correndo, correndo, correndo com ganas iguais de quem busca e de quem foge. Quando a família procurou casá-lo, como uma tentativa antiquíssima de curá-lo da loucura, Yaloth a princípio desesperou-se; amava o mar e só ele, não queria comprometer seu coração oceânico com ninguém que não fosse aquela vastidão. Não imaginavam, porém – nem ele, que temia uma influência ameaçadora, nem os parentes, que esperavam uma decisiva –, o tipo de reação apaixonada da noiva Zandess ao conhecê-lo: como nada escapava a seu olhar de feiticeira secreta, e como ao primeiro relance ela compreendeu que jamais seria correspondida, decidiu consigo mesma torná-lo feliz a fim de tê-lo de alguma forma. Se era o mar que o moço desejava, assim fosse; Zandess esgotou toda a sua generosa magia transformando Yaloth em ondas sem que ele perdesse sua individualidade, algo possível porque ela lhe atribuiu um formato específico, apesar de fluido: fez do noivo um cavalo todo de mar, em homenagem ao enorme respeito do jovem por esses animais e em alusão a suas corridas extremas, mais parecidas com galopes solitários.

Quando os familiares descobriram a traição da moça que deveria trazer Yaloth a seus supostos deveres, em vez de libertá-lo, acusaram-na de bruxaria e a aprisionaram numa torre inacessível, de onde a exaustão de seus poderes não lhe permitia fugir. Mas o rapaz metamorfoseado revoltou-se contra essa violência e, em dívida de gratidão, foi adentrando as terras feito tsunami equina, tudo derrubando e tudo varrendo até chegar à torre em que estava a noiva encarcerada. Quem sobreviveu ao formidável maremoto contou ter visto cavalos e mais cavalos líquidos, azuis, marítimos se empilhando para atingir a janela de Zandess, que fugiu da prisão montada no cavalíder e usou suas últimas forças mágicas para fundir-se ao amado: gravou-se para sempre ao corpo deste em forma de lua e estrela, símbolos de casamento em sua cultura. Tempos afora, sempre que um prisioneiro injustiçado desaparecia do cativeiro, alguém inevitavelmente dizia ter visto uma torre de cavalos azuis e uma tempestade de ondas enfurecidas no entorno – e, ainda que ninguém dissesse, eram visíveis os efeitos duma tormenta marinha até em regiões muito distantes da costa. Sustenta-se tenha sido (e continue sendo) parte da luta dos incompreendidos Yaloth e Zandess para libertar todos os acusados de cometer liberdade urgente.

(Se por acaso sentir cheiro de mar onde não cabe: já sabe.)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Good-vibeísmo


Claro, ninguém quer ou merece ficar na órbita de gente ranzinzeira, que arranja três torós pra cada nesga de céu azul – gente que faz campeonato de sofrimento, que gruda feito dementador nas conversas, que manda a energia pras cucuias, que desoxigena qualquer ambiente com sua insistência em desencorajar iniciativas e azedar resoluções. Vade retro, eu, hein; carrapatize outro. Agora: por acaso tem coisa mais enervante que a versão oposta, o good-vibeísmo que GALOPA sobre o sagrado direito de não estar bem? Chega a haver plaquinhas absurdas de decoração que determinam "Good vibes only" para os que adentram o recinto, algo provavelmente escolhido com inocência individual, mas promovido por uma neurose coletiva detestável. "Good vibes only" é o teu nariz, plaquinha mocreia; não há ser humano possível que se sustente de boas com uma frequência tão comprida, e, mesmo que sustente a aparência, não pode responder pela vibe que emana, a não ser que tenha alcançado frieza de androide ou elevação de monge do Tibete.

Convenhamos, um Homo sapiens com um mínimo de informação e taxa zerada de psicopatia não haverá de andar good-vibing no Brasil atual, este epicentro de horror que nos suga a alma como um guarda de Azkaban. A consciência de que 'stamos em pleno mar ainda e sempre, embora já tenhamos mudado algumas vezes de século; a exaustão no trato com pessoas doidas, desvairadas, alucicrazy que veem o diabo em tudo, menos onde (e em quem) ele mora; o cansaço de variante emendada em variante, antivax atrás de antivax, disparate sobre disparate, inflação puxando inflação, fake news and more fake news – tudo se junta em complô para nos adoecer feio, para nos enlouquecer se bobear. Desconfio, inclusive, dos improvavelmente sãos, e desconfio em especial dos inalteravelmente felizes; NINGUÉM que tenha acesso a informações e viva nesta bagaça sem ser quaquilionário (se for quaquilionário não é desconfiança, é certeza) pode manter sorriso perene e sinceríssimo e, ao mesmo tempo, um caráter impoluto. Se é são e gente boa não há de estar alegre, se está sempre alegre e é gente boa não é são; se é são e está sempre alegre... lamento, mores, mas digamos seja no mínimo deslizante para um universo de indiferença onde nada coletivo sangra, nada dói, nada – além do perfilzito bombante no Insta – importa. Good-vibes-onlying é atividade que se indispõe com a menor faísca de vida (real).

O que quer dizer escondidamente a famigerada plaquinha exposta? Que: não venha me amolar com papo de política, não quero saber, acho mais macio considerá-los todos iguais; nada também de vibração de doença, somos jovens e vamos carpe-diar adoidado; também nadinha de suas noias de depressão, ansiedade e aparentadas, leva isso pra lá, aqui é zoeira na veia. Evidentemente não sou contra zoeira, sou além disso 100% a favor de fofura explícita e gratuita, e compartilho de umas e outras todos os dias – porém não compartilho nem entendo que se possa compartilhar ONLY. Only o engraçado, only o bonitinho, only o descompromissado e inconsequente sem indignações, sem preocupações, sem revoltas, sem inseguranças emocionais e financeiras, sem pulsação, como o cachorrinho do meme que sorri sua tranquilidade histérica no meio do incêndio. É hilário o meme? é hilário, mas não se o cachorrinho em questão é o amigo/parente gratiluz que não mantém olhos nos olhos porque NÃO quer ver o que você (pensa, sente, sofre,) faz.

Com o coração em serviço não há quem passe bem demais.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Os defeitos que por acaso não temos


Ugo Foscolo, autor que produziu uma espécie de Werther italiano (As últimas cartas de Jacopo Ortis) e que hoje aniversaria de 244 anitos, tem entre sua baciada de frases fabulosas uma que espicaça agudo: "Os homens que só pelo seu esforço não são capazes de ganhar a estima dos outros nem a de si próprios procuram elevar-se opondo, aos defeitos dos vizinhos, os defeitos que por acaso não têm". Nooooossa, como esse sapatinho encaixa nas Cinderelas de virtude performadas por nós nas redes sociais – aliás performadas fora das redes sociais, desde que gente é gente e desde que os elementos da espécie se agrupam. Do primeiro episódio de autofrustração humana nasceu, sem dúvida, a primeira comparação desabonadora para o coleguinha, a primeira maledicência encapotada de moralidade, a primeira indignação que nunca foi senão a euforia de não se ver tão solitário na própria miséria. Com a internet e seus ramos, cidadão pode tocar sua Inquisição particular em escala planetária, julgar/condenar no atacado, no varejo, aqui no quintal ou ali na Rússia: vai haver eterna fartura de bruxas caçáveis e apontáveis como o cúmulo da degradação por existirem indiferentemente a seus avaliadores.

Porém os defeitos ou "defeitos" que por acaso não temos – quão melhores nos tornam, se há um completo desesforço em não os termos? Eu, por exemplo (sei que a prática aqui criticada se apoia justamente em trazer o eu para conversas aonde ele não foi chamado, mas trago de fato como exemplo e não self-abono, prometo), com que autoridade poderia meter o dedo na cara dos que são vítimas do alcoolismo, uma vez que sinto uma repulsa natural pelo gosto amargo da bebida e, portanto, jamais tive de lutar contra exageros ou vícios? Que tipo de superioridade demonstro por não me engalfinhar com ninguém em briga de rua, se não se trata de nenhum autocontrole e sim duma obediência à minha índole preguiçosa e introspectiva? Que mérito tenho em não maltratar um filho, se antes de sequer haver essa possibilidade eu já tendia tão decisivamente para nunca ter filhos? Não há merecimento algum em prováveis 98% dos defeitos que não me couberam; não me couberam e acabou-se, sem que haja sido necessário nada além de adequação à minha própria conveniência. Seria dum cinismo vigoroso eu me dar tapinhas nas costas por cumprir exatamente o que me agrada, ou seguir o que foi transmitido por outrem, ou não apresentar determinadas necessidades e carências graças ao tipo de vida proporcionado por esses outrens. Caso não me tivessem embalado circunstâncias sociais e familiares que independeram de minha escolha, não haveria talvez desenvolvido fragilidades muito diferentes das atuais?

O indiscutível: não nos são nenhum salvo-conduto os defeitos que por acaso não temos, aqueles que sequer nos empenhamos em não ter. Se não os temos, temos outros claros e vários, que por sua vez jamais estiveram no radar de pessoas que censuramos por possuírem alguns opostos aos nossos. Que grande heroísmo existe em dar livre curso a falhas que são efetivamente nossas, sob o patrocínio imaginário daquelas que não são sem nos custarem nadita? Não nos falte coragem, ao menos, entre tudo o mais – a coragem de não amargar mais nossos amargos, adoçando-os com a falsíssima doçura das comparações que mentem sempre, por sempre nivelarem unidades incompatíveis. Sermos honestamente melhores implica evoluirmos num gráfico particular, com xizes e ípsilons individualizados, calculados à imagem do que somos e, em especial, do que temos condições gordíssimas para ser.

É até a morte – e eternamente para dentro – que avançamos em nascer.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Não gosto de


Saia plissada, atividade suada, momento de piada, calçada que venta, estampa dos anos setenta. Polenta. Palmito. Vocabulário erudito. Gente gritando "mito" e crendo em facada.

Cerveja; peleja; essência de cereja; brotoeja de verão; suco de limão, laranja, acerola; parede de escola dividida em duas cores; jardim sem flores; entrevistas de jogadores; esporte com ou sem bola.

Novela mexicana, curvador de pestana, banana que não seja prata. Papo de magnata. Regata de alcinha. Pegadinha. Dobradinha. Caipirinha. Almofadinha que promove farinata.

Nabo, quiabo, cabo de aparelho, lavabo sem espelho. Chá de boldo; toldo na ventania; nostalgia; academia; programas de porn dermatologia (aqueles que espremem cravo). Loja que deve centavo. Saia com assimetria.

Purê de inhame. Exame. Madame. Esparrame de elogio ao vivaço. Sono sem cansaço. Palhaço (com exceção do meu Coringa). Torneira que pinga. Gente que rezinga. Gente que rouba espaço.

Cheiro de macela; gordura de mortadela; vizinho tagarela; vela com perfume. Noite sem vaga-lume. Ciúme. Tapume. Telefone. Interfone. Zumbido de drone. Píncaros de volume.

Filmes de três horas, chamadas sonoras, senhoras patriotas. Chacotas. Lorotas. Seres medievais criticando as cotas. Chiclete. Dezessete. Gente-marionete. Fim do videocassete. Caça que não é de comida. Fãs do genocida. Compra retida – ou salgada no frete.

Atrasos de vida.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Sessão (semi)chateação


Tudo bem, admito: o último capítulo de Nos tempos do imperador foi lindamente melhor do que eu esperava, com soluções que não tinham como não emocionar os mais empedernidos; a decisão de arrematar a novela fazendo uma tripla homenagem ao Museu Nacional (e seus reconstrutores), ao eterno sonho do imperador de apenas ter sido o professor Pedro de Alcântara e ao maravilhoso colégio que carrega seu nome e seu sonho – eis algo impossível de ver a seco, a não ser que a gente se pegue metamorfoseado num monstruoso inseto. E a falar em insetos monstruosos: que arremate elegante para o assassinato de Tonico, escalando-se exclusivamente mulheres para dar cabo do psicopata! Foi a merecida consagração especialmente da personagem de Paula Cohen, ES-PE-TA-CU-LAR intérprete de Lota Pindaíba, que tinha tudo para resvalar na afetação, no histrionismo e na insuportabilidade e, entretanto, selou sua participação como talvez o maior destaque da novela. Paula foi COLOSSAL ao nos obrigar a desenvolver afeto por uma criatura tosca, egoísta, amoral, mal-educada, inconveniente, preconceituosa: sustentou (como se brincasse) um arco dramático dificílimo, que ia das atitudes mais sórdidas aos momentos de solidão e sofrimento feminino/materno mais tocantes, da comédia rasgada às cenas de comover placas de granito, das maiores baixezas às maiores doçuras. Não há palmas que cheguem para honrar a composição da eterna Baroa do Ferrrrvedouro.

Mas é aquilo – sou chata, e chatamente não tenho como não comentar um ou outro deslize dentro do bom resultado geral. Uma grande pena, por exemplo, que tenham esquecido ou sido obrigados a tesourar alguns fios anteriormente puxados, tipo a fantasmice rebelde de Licurgo e Germana (que em certo momento até "possuíram" Vitória e Lupita, porém não retornaram manifestados em nenhuns corpos de empréstimo, como as cenas posteriores à morte dos personagens haviam sugerido que aconteceria) e o suposto mistério relativo à mãe de Pilar e Dolores (sobre a qual o coronel Eudoro parecia querer revelar algo importante, antes que a tuberculose o levasse). Outras pendências podem integrar a lista: afinal, qual era a atividade a que Lupita e Lota se dedicavam – não a simples venda de cocadas, segundo o que a atitude de ambas deixava transparecer – quando saíam juntas em capítulos recentes, ou quando a baroa tentava acompanhar sua ainda cativa? E por que Lota era tão aferradamente apegada a um bibelô específico de "sua" casa, uma escultura em formato de papagaio ou ave similar? nesse último caso nós éramos supposed to deduzir algum motivo, hum, travesso, ou havia outra explicação que acabou sumariamente cortada?

Há também, apesar do grande cuidado demonstrado pelos autores em encaixar todos os elementos relacionados à morte de Tonico, umas coisinhas que permanecem interrogativas. Era assim TÃO incompetente a guarda da Câmara a ponto de deixar o vilão – que supostamente já estava cercado pela polícia ao entrar no prédio, e sairia dali presíssimo – fugir com Dominique debaixo do braço, sem que nenhum agente da lei fosse capaz de segui-lo e apenas Lota e Celestina descobrissem o trajeto? Era razoável supor que Pedro, por mais que estivesse chocado com o retorno do Marquês de Caxias absolutamente DO NADA, fosse por este destrancado do gabinete onde Luísa o trancara (destrancado sob um total de ZERO comentário da parte do militar, diga-se) e logo em seguida entabulasse uma longa conversa com o marquês, ENQUANTO o filho da mulher amada estava sendo sequestrado por Tonico e ela mesma corria para se expor ao vilão? Era coerente que Dominique e a mãe conversassem como conversaram após o rapaz fugir do sequestro – dando a entender que as pessoas iriam perguntar o que acontecera e ele precisaria de alguma versão alternativa –, se o máximo que o moço fizera fora pegar a arma de Tonico, ameaçá-lo e escapar da fazenda sem sequer saber dos tiros dados por Dolores e Lota?

Sim, sou chatíssima como espectadora, concordo; mas juro que as minuciazinhas semitortas (comuns em qualquer novela) não me impediram de colocar Nos tempos do imperador na prateleira das tramas mais queridas. Reitero que o protagonismo poderia/deveria NÃO ter sido da família imperial, e ao mesmo tempo não vejo condições de não reconhecer os avanços no tratamento da questão negra em história situada no século XIX; diferentemente da maioria acachapante entre as produções do gênero, procurou-se evitar o vício do white-saviourismo galopante e destacou-se muito mais a atuação de negros escravizados ou livres em prol da abolição: a revolta dos malês, as estratégias e tecnologias para promover a fuga de cativos e encaminhá-los para o quilombo, as lideranças e organizações da Pequena África (não tinha ainda o nome de Pequena África, eu sei), os manifestos dos Guerreiros, a escola de Justina, o trabalho jurídico de Luís Gama, os embates de Samuel e Olu com Caxias e Pedro a respeito da "alforria" de escravizados apenas para lutarem e morrerem na Guerra do Paraguai. Além, claro, da belíssima representação das religiões de matriz africana, com um respeito e uma reverência que não me recordo de ter visto em tramas anteriores. O conjunto da obra não foi de modo algum impecável; entretanto, mostrou qualidades que espero, com a alma todinha, ver fortemente aprofundadas nas histórias que estão por vir – com o título, os créditos iniciais e a lente da câmera enfim voltados para aqueles que têm o sagrado direito de contá-las e protagonizá-las.

Mudar o foco é a única coisa que salvará um Brasil onde o ódio ainda impera.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Sessão chateação


Tenho (nem preciso dizer) um apreço colossal pela ficção e, em consequência, pela sagrada verossimilhança; se quer me irritar FUNDO é só muxoxar diante de absurdos às vezes presentes em filmes/novelas e tascar: "Ah, pra que esse estresse, isso aí é de mentirinha mesmo, ninguém liga". PERALÁ, MERMÃO. Primeiro, uma construção ficcional não é mentirinha; mentirinha é o que se manda dizer para não atender o telefone. Histórias são uma inteira realidade de outra espécie, e dentro de sua própria dimensão é preciso que todos os tijolitos se encaixem e se corroborem – não à toa falamos em obras ficcionais; se está convencionadíssimo em determinado universo que homens voam e atravessam paredes, perfeito, homens voam e atravessam paredes, e lançam teias e leem mentes e pulam de prédios, sem o mais leve problema. O que NÃO PODE é alguém voar ou lançar teias numa novela do Manoel Carlos, nem montar um filme do Homem-Aranha somente à base de diálogos ao estilo Antes do amanhecer. Ficção não tem, como a realidade do cá-das-telas, o abono do factual para estruturar-se, e com qualquer soprinho do lobo inverossímil a casa toda despenca; já diria Mark Twain lapidarmente (embora eu tenha lido a máxima também com outras autorias e não jure sobre nenhuma) que, ao contrário da realidade, a ficção PRECISA fazer sentido.

Todo esse resmungo apenas para começar a reclamar da reta final de Nos tempos do imperador, novela que acompanhei inteirinha e me pareceu dar várias bolas dentro, apesar de estas ficarem seriamente comprometidas pela boladaça-fora de a família imperial manter o protagonismo. Discussões históricas à parte, a trama tem alinhavado batata em cima de batata nos trechos mais recentes, como se uma edição ofegante e exasperada garfasse desenvolvimentos necessários e o combo roteiro/direção de repente cagasse para obviedades, com o perdão do termo. Em primeiro lugar, aparentemente ganhamos a presença de alguns X-Men na novela, que inclusive voam – ou ao menos se regeneram – e atravessam paredes; é o caso do querido Nélio, que somente quebrou as pernas ao ser atirado de um penhasco sem rolar, segurar-se ou contar com atenuante algum, o que o teria matado de imediato em qualquer face do multiverso (e não é conveniente que o delegado Borges, ao contrário, pareça ter morrido assim que se jogou na água, de altura similar?); é o caso também da condessa de Barral, que adentrou o jornal de Tonico sem ter a chave do cadeado que a direção fez questão de mostrar o criaturo fechando. E MESMO QUE Luísa tivesse entrado enquanto o vilão ainda estava compondo a edição do dia seguinte – o que contraria as cenas exibidas –, não conseguiria sair, sobretudo no meio do fogo que ela iniciou; a coisa ainda piora quando constatamos que o próprio Tonico teve dificuldade de reabrir o cadeado que colocara. "Ah, ela entrou e saiu pela janela" – sério? qual seria o sentido de o vilão trancar a porta e deixar as janelas abertas, em véspera de publicar uma bomba que prejudicaria gente graúda? Por que pitombas esdrúxulas não escalaram Celestina para ser a incendiária, já que seria verossímil ela ter a chave do jornal (seu marido Nino tinha) e não lhe faltavam motivos tanto para se vingar de Tonico quanto para proteger a família real? e, convindo que Luísa fosse a incendiária, por que raios duplos não tacou fogo pelo lado DE FORA, por algum quebradinho que ela fizesse na vidraça – em vez de ser ostentada, como foi, queimando diretamente cada exemplar recém-impresso?

Por falar em Celestina: o fato de a dama de companhia da imperatriz ter escondido por dois anos o manuscrito de Nino também não tem o menor nexo, considerando a sanha sempre demonstrada por ela de pôr na cadeia o assassino do marido. "Proteger a reputação de Nino?" Reaaaaally, gente? O próprio Nino QUERIA publicar o livro, e, se conscientemente se incriminaria de cumplicidade em vida, faria tão enorme diferença incriminar-se depois da morte – principalmente levando em conta que todos os amigos de Celestina já o sabiam cúmplice de Tonico? Outra BATATOSA com dois anos de idade foi o total abandono do colete do vilão (marcado de tinta com a data posterior à do assassinato de Nino) num cesto de roupas a serem lavadas por Zayla, junto ao tanque usado pelas lavadeiras. Vimos que uma escrava de Tonico, ao não conseguir remover a mancha de tinta do colete, preocupara-se com a possibilidade de isso acabar sobrando para ela e deixara a peça com a filha de Dom Olu, sob a promessa duma tentativa de lavagem mais contundente. Zayla, entretanto, sem mais essa nem aquela largou todas as roupas pra lá, e ao que tudo indica nenhuma peça foi reclamada pelo respectivo dono durante os DOIS ANOS convenientes aos roteiristas – até que, numa manhã gloriosa, uma antiga colega de Zayla devolveu-lhe o cesto onde, tcharaaam! jazia prova tão redondinha contra o psicopata. Afinal era relevantíssimo que não se fechasse o cerco sobre o coiso-mor da novela muito antes do fim da Guerra do Paraguai, evento que determinará também o fim da trama; e daí que as explicações para o delay pareçam tiradas da boca do cachorro? Olha: te falar, viu.

Amanhã tem último capítulo, já por natureza um imenso celeiro de irritações. Pior, tem último capítulo com resolução de homicídio, e um homicídio que... Raaam, amanhã (talvez) comento. Torcendo aqui para que as fadinhas da verossimilhança atravessem materiais gravados e ajeitem pernas de história que têm TODA a probabilidade de se quebrar.