quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Sessão chateação


Tenho (nem preciso dizer) um apreço colossal pela ficção e, em consequência, pela sagrada verossimilhança; se quer me irritar FUNDO é só muxoxar diante de absurdos às vezes presentes em filmes/novelas e tascar: "Ah, pra que esse estresse, isso aí é de mentirinha mesmo, ninguém liga". PERALÁ, MERMÃO. Primeiro, uma construção ficcional não é mentirinha; mentirinha é o que se manda dizer para não atender o telefone. Histórias são uma inteira realidade de outra espécie, e dentro de sua própria dimensão é preciso que todos os tijolitos se encaixem e se corroborem – não à toa falamos em obras ficcionais; se está convencionadíssimo em determinado universo que homens voam e atravessam paredes, perfeito, homens voam e atravessam paredes, e lançam teias e leem mentes e pulam de prédios, sem o mais leve problema. O que NÃO PODE é alguém voar ou lançar teias numa novela do Manoel Carlos, nem montar um filme do Homem-Aranha somente à base de diálogos ao estilo Antes do amanhecer. Ficção não tem, como a realidade do cá-das-telas, o abono do factual para estruturar-se, e com qualquer soprinho do lobo inverossímil a casa toda despenca; já diria Mark Twain lapidarmente (embora eu tenha lido a máxima também com outras autorias e não jure sobre nenhuma) que, ao contrário da realidade, a ficção PRECISA fazer sentido.

Todo esse resmungo apenas para começar a reclamar da reta final de Nos tempos do imperador, novela que acompanhei inteirinha e me pareceu dar várias bolas dentro, apesar de estas ficarem seriamente comprometidas pela boladaça-fora de a família imperial manter o protagonismo. Discussões históricas à parte, a trama tem alinhavado batata em cima de batata nos trechos mais recentes, como se uma edição ofegante e exasperada garfasse desenvolvimentos necessários e o combo roteiro/direção de repente cagasse para obviedades, com o perdão do termo. Em primeiro lugar, aparentemente ganhamos a presença de alguns X-Men na novela, que inclusive voam – ou ao menos se regeneram – e atravessam paredes; é o caso do querido Nélio, que somente quebrou as pernas ao ser atirado de um penhasco sem rolar, segurar-se ou contar com atenuante algum, o que o teria matado de imediato em qualquer face do multiverso (e não é conveniente que o delegado Borges, ao contrário, pareça ter morrido assim que se jogou na água, de altura similar?); é o caso também da condessa de Barral, que adentrou o jornal de Tonico sem ter a chave do cadeado que a direção fez questão de mostrar o criaturo fechando. E MESMO QUE Luísa tivesse entrado enquanto o vilão ainda estava compondo a edição do dia seguinte – o que contraria as cenas exibidas –, não conseguiria sair, sobretudo no meio do fogo que ela iniciou; a coisa ainda piora quando constatamos que o próprio Tonico teve dificuldade de reabrir o cadeado que colocara. "Ah, ela entrou e saiu pela janela" – sério? qual seria o sentido de o vilão trancar a porta e deixar as janelas abertas, em véspera de publicar uma bomba que prejudicaria gente graúda? Por que pitombas esdrúxulas não escalaram Celestina para ser a incendiária, já que seria verossímil ela ter a chave do jornal (seu marido Nino tinha) e não lhe faltavam motivos tanto para se vingar de Tonico quanto para proteger a família real? e, convindo que Luísa fosse a incendiária, por que raios duplos não tacou fogo pelo lado DE FORA, por algum quebradinho que ela fizesse na vidraça – em vez de ser ostentada, como foi, queimando diretamente cada exemplar recém-impresso?

Por falar em Celestina: o fato de a dama de companhia da imperatriz ter escondido por dois anos o manuscrito de Nino também não tem o menor nexo, considerando a sanha sempre demonstrada por ela de pôr na cadeia o assassino do marido. "Proteger a reputação de Nino?" Reaaaaally, gente? O próprio Nino QUERIA publicar o livro, e, se conscientemente se incriminaria de cumplicidade em vida, faria tão enorme diferença incriminar-se depois da morte – principalmente levando em conta que todos os amigos de Celestina já o sabiam cúmplice de Tonico? Outra BATATOSA com dois anos de idade foi o total abandono do colete do vilão (marcado de tinta com a data posterior à do assassinato de Nino) num cesto de roupas a serem lavadas por Zayla, junto ao tanque usado pelas lavadeiras. Vimos que uma escrava de Tonico, ao não conseguir remover a mancha de tinta do colete, preocupara-se com a possibilidade de isso acabar sobrando para ela e deixara a peça com a filha de Dom Olu, sob a promessa duma tentativa de lavagem mais contundente. Zayla, entretanto, sem mais essa nem aquela largou todas as roupas pra lá, e ao que tudo indica nenhuma peça foi reclamada pelo respectivo dono durante os DOIS ANOS convenientes aos roteiristas – até que, numa manhã gloriosa, uma antiga colega de Zayla devolveu-lhe o cesto onde, tcharaaam! jazia prova tão redondinha contra o psicopata. Afinal era relevantíssimo que não se fechasse o cerco sobre o coiso-mor da novela muito antes do fim da Guerra do Paraguai, evento que determinará também o fim da trama; e daí que as explicações para o delay pareçam tiradas da boca do cachorro? Olha: te falar, viu.

Amanhã tem último capítulo, já por natureza um imenso celeiro de irritações. Pior, tem último capítulo com resolução de homicídio, e um homicídio que... Raaam, amanhã (talvez) comento. Torcendo aqui para que as fadinhas da verossimilhança atravessem materiais gravados e ajeitem pernas de história que têm TODA a probabilidade de se quebrar.

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