domingo, 6 de fevereiro de 2022

Os defeitos que por acaso não temos


Ugo Foscolo, autor que produziu uma espécie de Werther italiano (As últimas cartas de Jacopo Ortis) e que hoje aniversaria de 244 anitos, tem entre sua baciada de frases fabulosas uma que espicaça agudo: "Os homens que só pelo seu esforço não são capazes de ganhar a estima dos outros nem a de si próprios procuram elevar-se opondo, aos defeitos dos vizinhos, os defeitos que por acaso não têm". Nooooossa, como esse sapatinho encaixa nas Cinderelas de virtude performadas por nós nas redes sociais – aliás performadas fora das redes sociais, desde que gente é gente e desde que os elementos da espécie se agrupam. Do primeiro episódio de autofrustração humana nasceu, sem dúvida, a primeira comparação desabonadora para o coleguinha, a primeira maledicência encapotada de moralidade, a primeira indignação que nunca foi senão a euforia de não se ver tão solitário na própria miséria. Com a internet e seus ramos, cidadão pode tocar sua Inquisição particular em escala planetária, julgar/condenar no atacado, no varejo, aqui no quintal ou ali na Rússia: vai haver eterna fartura de bruxas caçáveis e apontáveis como o cúmulo da degradação por existirem indiferentemente a seus avaliadores.

Porém os defeitos ou "defeitos" que por acaso não temos – quão melhores nos tornam, se há um completo desesforço em não os termos? Eu, por exemplo (sei que a prática aqui criticada se apoia justamente em trazer o eu para conversas aonde ele não foi chamado, mas trago de fato como exemplo e não self-abono, prometo), com que autoridade poderia meter o dedo na cara dos que são vítimas do alcoolismo, uma vez que sinto uma repulsa natural pelo gosto amargo da bebida e, portanto, jamais tive de lutar contra exageros ou vícios? Que tipo de superioridade demonstro por não me engalfinhar com ninguém em briga de rua, se não se trata de nenhum autocontrole e sim duma obediência à minha índole preguiçosa e introspectiva? Que mérito tenho em não maltratar um filho, se antes de sequer haver essa possibilidade eu já tendia tão decisivamente para nunca ter filhos? Não há merecimento algum em prováveis 98% dos defeitos que não me couberam; não me couberam e acabou-se, sem que haja sido necessário nada além de adequação à minha própria conveniência. Seria dum cinismo vigoroso eu me dar tapinhas nas costas por cumprir exatamente o que me agrada, ou seguir o que foi transmitido por outrem, ou não apresentar determinadas necessidades e carências graças ao tipo de vida proporcionado por esses outrens. Caso não me tivessem embalado circunstâncias sociais e familiares que independeram de minha escolha, não haveria talvez desenvolvido fragilidades muito diferentes das atuais?

O indiscutível: não nos são nenhum salvo-conduto os defeitos que por acaso não temos, aqueles que sequer nos empenhamos em não ter. Se não os temos, temos outros claros e vários, que por sua vez jamais estiveram no radar de pessoas que censuramos por possuírem alguns opostos aos nossos. Que grande heroísmo existe em dar livre curso a falhas que são efetivamente nossas, sob o patrocínio imaginário daquelas que não são sem nos custarem nadita? Não nos falte coragem, ao menos, entre tudo o mais – a coragem de não amargar mais nossos amargos, adoçando-os com a falsíssima doçura das comparações que mentem sempre, por sempre nivelarem unidades incompatíveis. Sermos honestamente melhores implica evoluirmos num gráfico particular, com xizes e ípsilons individualizados, calculados à imagem do que somos e, em especial, do que temos condições gordíssimas para ser.

É até a morte – e eternamente para dentro – que avançamos em nascer.

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