sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Sessão (semi)chateação


Tudo bem, admito: o último capítulo de Nos tempos do imperador foi lindamente melhor do que eu esperava, com soluções que não tinham como não emocionar os mais empedernidos; a decisão de arrematar a novela fazendo uma tripla homenagem ao Museu Nacional (e seus reconstrutores), ao eterno sonho do imperador de apenas ter sido o professor Pedro de Alcântara e ao maravilhoso colégio que carrega seu nome e seu sonho – eis algo impossível de ver a seco, a não ser que a gente se pegue metamorfoseado num monstruoso inseto. E a falar em insetos monstruosos: que arremate elegante para o assassinato de Tonico, escalando-se exclusivamente mulheres para dar cabo do psicopata! Foi a merecida consagração especialmente da personagem de Paula Cohen, ES-PE-TA-CU-LAR intérprete de Lota Pindaíba, que tinha tudo para resvalar na afetação, no histrionismo e na insuportabilidade e, entretanto, selou sua participação como talvez o maior destaque da novela. Paula foi COLOSSAL ao nos obrigar a desenvolver afeto por uma criatura tosca, egoísta, amoral, mal-educada, inconveniente, preconceituosa: sustentou (como se brincasse) um arco dramático dificílimo, que ia das atitudes mais sórdidas aos momentos de solidão e sofrimento feminino/materno mais tocantes, da comédia rasgada às cenas de comover placas de granito, das maiores baixezas às maiores doçuras. Não há palmas que cheguem para honrar a composição da eterna Baroa do Ferrrrvedouro.

Mas é aquilo – sou chata, e chatamente não tenho como não comentar um ou outro deslize dentro do bom resultado geral. Uma grande pena, por exemplo, que tenham esquecido ou sido obrigados a tesourar alguns fios anteriormente puxados, tipo a fantasmice rebelde de Licurgo e Germana (que em certo momento até "possuíram" Vitória e Lupita, porém não retornaram manifestados em nenhuns corpos de empréstimo, como as cenas posteriores à morte dos personagens haviam sugerido que aconteceria) e o suposto mistério relativo à mãe de Pilar e Dolores (sobre a qual o coronel Eudoro parecia querer revelar algo importante, antes que a tuberculose o levasse). Outras pendências podem integrar a lista: afinal, qual era a atividade a que Lupita e Lota se dedicavam – não a simples venda de cocadas, segundo o que a atitude de ambas deixava transparecer – quando saíam juntas em capítulos recentes, ou quando a baroa tentava acompanhar sua ainda cativa? E por que Lota era tão aferradamente apegada a um bibelô específico de "sua" casa, uma escultura em formato de papagaio ou ave similar? nesse último caso nós éramos supposed to deduzir algum motivo, hum, travesso, ou havia outra explicação que acabou sumariamente cortada?

Há também, apesar do grande cuidado demonstrado pelos autores em encaixar todos os elementos relacionados à morte de Tonico, umas coisinhas que permanecem interrogativas. Era assim TÃO incompetente a guarda da Câmara a ponto de deixar o vilão – que supostamente já estava cercado pela polícia ao entrar no prédio, e sairia dali presíssimo – fugir com Dominique debaixo do braço, sem que nenhum agente da lei fosse capaz de segui-lo e apenas Lota e Celestina descobrissem o trajeto? Era razoável supor que Pedro, por mais que estivesse chocado com o retorno do Marquês de Caxias absolutamente DO NADA, fosse por este destrancado do gabinete onde Luísa o trancara (destrancado sob um total de ZERO comentário da parte do militar, diga-se) e logo em seguida entabulasse uma longa conversa com o marquês, ENQUANTO o filho da mulher amada estava sendo sequestrado por Tonico e ela mesma corria para se expor ao vilão? Era coerente que Dominique e a mãe conversassem como conversaram após o rapaz fugir do sequestro – dando a entender que as pessoas iriam perguntar o que acontecera e ele precisaria de alguma versão alternativa –, se o máximo que o moço fizera fora pegar a arma de Tonico, ameaçá-lo e escapar da fazenda sem sequer saber dos tiros dados por Dolores e Lota?

Sim, sou chatíssima como espectadora, concordo; mas juro que as minuciazinhas semitortas (comuns em qualquer novela) não me impediram de colocar Nos tempos do imperador na prateleira das tramas mais queridas. Reitero que o protagonismo poderia/deveria NÃO ter sido da família imperial, e ao mesmo tempo não vejo condições de não reconhecer os avanços no tratamento da questão negra em história situada no século XIX; diferentemente da maioria acachapante entre as produções do gênero, procurou-se evitar o vício do white-saviourismo galopante e destacou-se muito mais a atuação de negros escravizados ou livres em prol da abolição: a revolta dos malês, as estratégias e tecnologias para promover a fuga de cativos e encaminhá-los para o quilombo, as lideranças e organizações da Pequena África (não tinha ainda o nome de Pequena África, eu sei), os manifestos dos Guerreiros, a escola de Justina, o trabalho jurídico de Luís Gama, os embates de Samuel e Olu com Caxias e Pedro a respeito da "alforria" de escravizados apenas para lutarem e morrerem na Guerra do Paraguai. Além, claro, da belíssima representação das religiões de matriz africana, com um respeito e uma reverência que não me recordo de ter visto em tramas anteriores. O conjunto da obra não foi de modo algum impecável; entretanto, mostrou qualidades que espero, com a alma todinha, ver fortemente aprofundadas nas histórias que estão por vir – com o título, os créditos iniciais e a lente da câmera enfim voltados para aqueles que têm o sagrado direito de contá-las e protagonizá-las.

Mudar o foco é a única coisa que salvará um Brasil onde o ódio ainda impera.

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