terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A torre de cavalos azuis


Opa, níver de 142 anos do expressionista alemão Franz Marc, fãzaço de cores vivíssimas e de animais, especialmente cavalos. Como há cavalos na obra do pintor! Cavalos vermelhos, cavalos azuis em abundância – aliás é o exatinho espírito da tela acima, The tower of blue horses (1913), em que o autor agrupa logo quatro equinos de enfiada. A pintura não tem como ser mais alegórica e mítica, com seu título que daria romance grandalhudo, seus animais fabulosos quase que feitos de céu (talvez literalmente, já que a criatura exibida em primeiro plano traz no corpo uma lua crescente e uma cruz sugestiva de estrela), seu arco-íris alternativo ao fundo, tinto apenas de verde, amarelo e laranja. Tão épico parece, tão talhado para sagas, que não tenho como não imaginar uma qualquer lenda escocesa, élfica, românica, nibelunga relacionada ao quadro – dessas histórias de muito espectro, muita cavalgada noturna com som e sem imagem, ou com imagem e sem matéria, ou com famílias milenares de cavaleiros encantados que pipocam das molduras.

Em minha lenda imaginária (com o perdão da redundância), há sim um clã ultradicional daqueles tempos sem tempo, no qual nasceu um jovem notavelmente rebelde e discrepante chamado Yaloth. Não é que não quisesse adequar-se à rotina de cavaleiro que todas as gerações pregressas haviam encarado; era, entretanto, incapaz de dominar um cavalo sem sofrer horrivelmente com o sofrimento que julgava infligir ao animal, e ao mesmo tempo tinha um apetite tão furioso pelo mar que era invariavelmente encontrado correndo junto às ondas, correndo, correndo, correndo com ganas iguais de quem busca e de quem foge. Quando a família procurou casá-lo, como uma tentativa antiquíssima de curá-lo da loucura, Yaloth a princípio desesperou-se; amava o mar e só ele, não queria comprometer seu coração oceânico com ninguém que não fosse aquela vastidão. Não imaginavam, porém – nem ele, que temia uma influência ameaçadora, nem os parentes, que esperavam uma decisiva –, o tipo de reação apaixonada da noiva Zandess ao conhecê-lo: como nada escapava a seu olhar de feiticeira secreta, e como ao primeiro relance ela compreendeu que jamais seria correspondida, decidiu consigo mesma torná-lo feliz a fim de tê-lo de alguma forma. Se era o mar que o moço desejava, assim fosse; Zandess esgotou toda a sua generosa magia transformando Yaloth em ondas sem que ele perdesse sua individualidade, algo possível porque ela lhe atribuiu um formato específico, apesar de fluido: fez do noivo um cavalo todo de mar, em homenagem ao enorme respeito do jovem por esses animais e em alusão a suas corridas extremas, mais parecidas com galopes solitários.

Quando os familiares descobriram a traição da moça que deveria trazer Yaloth a seus supostos deveres, em vez de libertá-lo, acusaram-na de bruxaria e a aprisionaram numa torre inacessível, de onde a exaustão de seus poderes não lhe permitia fugir. Mas o rapaz metamorfoseado revoltou-se contra essa violência e, em dívida de gratidão, foi adentrando as terras feito tsunami equina, tudo derrubando e tudo varrendo até chegar à torre em que estava a noiva encarcerada. Quem sobreviveu ao formidável maremoto contou ter visto cavalos e mais cavalos líquidos, azuis, marítimos se empilhando para atingir a janela de Zandess, que fugiu da prisão montada no cavalíder e usou suas últimas forças mágicas para fundir-se ao amado: gravou-se para sempre ao corpo deste em forma de lua e estrela, símbolos de casamento em sua cultura. Tempos afora, sempre que um prisioneiro injustiçado desaparecia do cativeiro, alguém inevitavelmente dizia ter visto uma torre de cavalos azuis e uma tempestade de ondas enfurecidas no entorno – e, ainda que ninguém dissesse, eram visíveis os efeitos duma tormenta marinha até em regiões muito distantes da costa. Sustenta-se tenha sido (e continue sendo) parte da luta dos incompreendidos Yaloth e Zandess para libertar todos os acusados de cometer liberdade urgente.

(Se por acaso sentir cheiro de mar onde não cabe: já sabe.)

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