sábado, 7 de julho de 2012

Very important people

NO Globo de domingo (mais conhecido como comprado-no-sábado-à-tardinha), Xexéo faz um perfil saudoso da “dama das estreias”, Ivone Kassu – assessora de imprensa badaladíssima, contato de quinze entre dez famosões, falecida por estes dias. A crônica afetiva predispõe a gente inteiro para Ivone; ela dava uma força essencial a jornalistas, ela era fonte que botava sustança nas colunas vazias de assunto, ela arranjava entrevistado de última hora pro Sem censura, ela se quisesse sentava todo o elenco da novela das nove na plateia da peça estreante. Mulher maravilha. Mas a primordial das façanhas vem no último parágrafo: “Ivone Kassu tinha uma qualidade rara. Tratava os integrantes das duas pontas da linha em que trabalhava como VIPs. O cliente tinha tratamento VIP, o jornalista, do outro lado da linha, também. Do iniciante ao mais experiente, eram todos importantes. Ela vai fazer falta”. Vai – e ainda que não fosse por nada mais, ao menos por isso. Faz falta toda criatura iluminada o suficiente para não só pregar, para propagar o simples (que é o de compreensão mais árdua): somos todos VIPs. Todos urgentes. Todos essenciais. Todos figurões. Ausentando-se dois de nossos braços, uma de nossas cabeças, alguma coisa fica malfeita, fica incompleta, fica não dita, fica não pensada, não resolvida. Desajambra-se. Em se extraviando a parte, perde o todo; ninguém mais se encaixa tão a 40 graus leste, nesta latitude, nesta longitude, com tamanha precisão de habilidade e agudeza. Em morrendo 1%, ficam os 99 lamentavelmente órfãos.

Francamente não entendo quem vira a cara pro gari e lustra as botas do chefe com a língua, ou quem preenche camarotes de gala com mulheres hortifrutigranjeiras em vez de convidar médicos, taxistas, professores. Entendo, claro, o mote; não entendo a justificativa. Ah, a Mulher Tamarindo é mais importante que a tia Elisabete de Matemática – por que mesmo, hein? Sem desmerecer as formosudas do pomar, que são belas pela inquestionável finalidade de serem belas, quero ver enfiar na cabeça de 42 godzillinhas a ideia de cateto e hipotenusa, dar de mamar aos gêmeos no intervalo entre duas elaborações e duas correções de teste e ainda ser tratada como Scotch-Brite particular do governo. Quero ver. Quero ver chegar às 6h30 e sair às 17h30, espremida na hora extra e no rush, aguentando TPMzinha de gerente estressado e grude de Excelências que não escolhem cueca sem secretária. Quero ver deixar Copacabana manualmente limpinha no dia 2 de janeiro. Quero ver desconectar o coração de um peito e acomodar outro, ignorando a sangueira que esguicha enquanto se recompõe vasito por vasito. Quero ver passar o dia no quartel. No barco. No frigorífico. Na diretoria da escola. Na emergência do hospital. Sob ameaça da serra, sob o zunido da pressão atmosférica, sob a metralhação da britadeira, sob o paredão da mina. Como o inspetor que atura desaforo de fedelhos, como a catadora que se arrisca entre resíduos pontiagudos, como o revisor que põe decência em frases inexpugnáveis, como o carteiro que suporta verões convictos e cachorros duvidosos. Meus ídolos.

Se tratar bem depende de a criatura fazer parte dos que “são vistos”, seja por isso não. Colocar o nariz na janela, o pé na rua basta: centenas, milhares de desconhecidos topam com a nossa cara por dia, a não ser que o cidadão se eremite. Mas não. A credencial para ser ou não VIPado consiste em frequentar tevê, esse pedestal moderno que tudo legaliza. Foi com vestido curto, provocou grita na faculdade e bombou no noticiário, pronto: VIPou-se. A não ser assim, só com um patrimônio da desgrama. Minto, aliás. Não dá pra não ser assim. Por mais que o bilionário pose de discreto, tevê nenhuma é indiferente a um patrimônio da desgrama. Cumpre-se, involuntário, o ritual de adoração; leva-se ao antipelourinho o novo faraó que combinamos de deusificar em bando.

Ainda cumprimento com maior alegria aqueles com menos ocasião de cair das nuvens que de um andaime no terceiro andar.

Um comentário:

OGROLÂNDIA disse...

Em um mundo cada vez mais cercado de conveniências e preocupações com aparência, as pessoas embarcam na ilusão de que a forma é mais importante que o conteúdo.
Se a embalagem for bonita o suficiente, não importa se está cheia de merda.
Isso explica o metódo que tornou a mulher melancia VIP, digna de mais honrarias do que enfeitar parede de borracharia.