segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

1.313 dias


Depois de 1.313 dias sem lugarzices, que dizer? Que o mundo não está mais nem menos cretino do que quando saí por aquela portinha (mas, se eu tivesse de jurar, diria que está menos: essas babas de ódio por aí são o último urro do vilão antes de estrangulado). Que alianças rebeldes seguirão explodindo estrelas da morte. Que os vizinhos começaram a bater panelas, pararam de bater panelas, mas desconfio de que há esperança: continuam chegando às janelas assim que ouvem o barulho perfumado da chuva de verão. Que o algoritmo do Face se aperfeiçoou na big-brotherice, porém o perdoamos, já que sabe sempre para onde queremos viajar e busca passeios, como o cãozinho ensinado que volta triunfante com o gravetinho. 

Digo que agora mesmo – bom janeiro que é – está tendo chuva de verão, e para nós tudo bem, há o calmoso sossego de quem não saiu de casa nem tem roupa lá fora; mas nos espanta o cada vez maior espanto dos governos com as calamidades chuvosas, eternamente imprevistas. Digo que, apesar de destra, o que eu tinha de inclinação à esquerda virou residência fixa. Que só aumentou minha paixão por fofuras, em especial se incluem bochechas, em especial se envolvem olhos puxadinhos. Que os clichês me parecem progressivamente mais odientos, exaustivos e indefensáveis. Que a pasmaceira concordante já me dá tanto nos nervos quanto o preconceito histérico. 

Digo e repito que ler demais é melhor que escrever muito, mas não adianta, sem o segundo a gente acaba não fazendo a digestão do primeiro. Que pretendo ficar sabática de filhos por todo o sempre: há muita pessoa para educar sem precisar trocar-lhe a fralda. Que ainda planejo entrar no cadastro dos doadores de medula, porque também há muita forma de se dar à luz. Que continuo fascinada por enfeites de Natal. Que agora me entrego sem pudor às montanhas-russas de looping. Que ainda não aprendi francês, mas já sei contar até dez. Que ando mais incomodada com o fato de ser quase impossível saber tudo quanto se deveria. 

Declaro que sou bem a mesma em outra folha de rascunho, provavelmente também prestes a ser amassada para melhorar em outro esboço. Sou eu ainda e sou ampliada pela paixão de novos personagens, pela cultura de novas séries, pelo desapego de novos cansaços. Se tenho vontade de aqui voltar? não. Mas é meu voo, meu tijolo, meu cinzel, minha resiliência. Meu IPTU do lugar que me coube no mundo. Hei de escrever fatalmente, descarregar as leituras evaporadas, como o verão que chove. 

1.313 dias depois, que a precipitação não seja breve.  

4 comentários:

Nayara Galeno disse...

Oi Fernanda! Que bom ter notícias suas. Te acompanho desde os tempos de "Quase Lugar". Queria saber por uma curiosidade mórbida mesmo se você saiu do município. Eu sigo ligada, já há 7 anos, apesar de estar de licença há quase 2 anos e ter adquirido um Burnout no meio do caminho. Abraço, de sua leitora assídua, Nayara.

Fernanda Duarte disse...

Querida, querida Nayara! Deixei esta resposta há alguns dias em seu blog, mas creio que você não chegou a vê-la. Pena não tê-la conhecido antes; certamente seríamos amigas há muito tempo. :-) Obrigadíssima pelo comentário no Lugarzito e pelo carinho demonstrado. Quero dizer-lhe, flor, que não deixei o município não, e estou muito melhor -- mas só comecei a ficar melhor a partir do início de 2015, quando passei a me tratar com antidepressivo. No início daquele ano eu estava malzão, chorei muito nos primeiros dias de aula, tive febre, até procurar o psiquiatra. Graças a Deus, acertamos de cara o remédio e ele me estabilizou. Não estou um poço de alegria, estou apenas normal: com o antidepressivo certo, voltamos a ser nós mesmos, nas CNTP. :-) Te entendo muito, muuuuito, minha querida; amei seu texto e megarreconheci ali um monte de sentimentos, como se estivesse lendo a mim mesma em alguns trechos. Força, linda; se já não procurou, procure algo médico que te estabilize, te deixe mais serena para tomar qualquer decisão. Enorme prazer conhecê-la! Beijo grandão! <3

Nayara Galeno disse...

Ah, que lindo voltar aqui e ver que você me respondeu! De fato, meu blog anda meio abandonado. Estou fazendo doutorado e passo pouco por lá. Nas poucas horas vagas leio blogs e livros. Não sei porque cargas d' água o Google não me avisou por e-mail que tinha comentário novo. Coisas da tecnologia. Bom voltar também e ver que você tem escrito um bocado. Quando essa onda de tese passar pretendo retomar o blog ou criar outro, sei lá. Quem sabe escrever ficção. Eu não tomo remédio (ainda), mas tenho quase certo de que quando voltar a bater ponto vou precisar. Como eu te disse, estou de licença (sem vencimentos para estudo) e antes fui diagnosticada com Burnout. Não me afastei pela psiquiatria porque já tinha dado entrada na licença sem vencimentos. De fato, na escrita me inspiro muito em pessoas como você. Até na minha escrita acadêmica tenho tentado escrever mais em primeira pessoa. Antes eu tendia a querer me anular para passar objetividade. Hoje entendo que não vale à pena produzir nada sem se implicar. Acho que esse é meu problema. Tendo a me implicar muito, me importar muito. Nesse mundo de automatização e apatia que se tornou o serviço público, os aptos, no sentido darwiniano são os que se orgulham de "não se deixar levar". Eu me deixo levar o tempo todo, e sinto... muito. Beijos!

Fernanda Duarte disse...

Nayaríssima! Desculpe a demora; as escolas e o blog me têm deixado um carretel. Te superentendo em relação a isso de se importar muito; até porque, se a gente deixar de se permitir ser afetado, vale a pena ser "apto" para alguma coisa? Adianta ser apto para viver quem é zumbi? hehehehe... Se em algum momento você retornar à sala de aula, procure ajuda sim, pode ser muito bom. Falo por experiência própria. Você tem Face? Já procurei você por lá e infelizmente não encontrei... Anote meu e-mail: feduarte2@gmail.com. Qualquer coisa, às ordens! ;-) Beijão! <3