quinta-feira, 28 de março de 2013

Em berço esplêndido

Reli a entrevista de Stella Maris Rezende, autora infantojuvenil de A mocinha do Mercado Central. Não, não li A mocinha do Mercado Central (de 2011), mas a reportagem resgatada de 2012 não economizou incentivo: há uma protagonista de 18 anos que sai de sua pequena e mineira Dores do Indaiá para aléns cidades, e vai acrescentando nomes ao seu próprio. Vai somando trabalhos, amigos e até um personagem Selton Mello (sim, ele).  Mais interessante ainda me pareceu a linguagem da autora, pintadíssima de riquezas mineiras, gírias, brinquedos sonoros; uns críticos a dizem “a Guimarães Rosa de crianças e adolescentes”. Mais-mais interessante ainda me soou a resposta de Stella Maris à questão “como sofisticar a leitura dos jovens?”: “A juventude, ao atiçar a imaginação e a sensibilidade, se apaixona por textos mais elaborados. O jovem leitor pode ser sofisticado, exigir mais da vida, ler literatura de fato, porque o ser humano nasceu para a sofisticação, para o mais bonito e bem-feito. [...]”.

Emoção. Alguém também acha que o ser humano nasceu para o sofisticado, sobretudo e fielmente para o sofisticado. Alguém concorda que, sim, há níveis; há diferenciações para além da uniformização politicamente correta; há leituras e leituras, canções e canções, vocabulários e vocabulários. Assim não fosse, não principiaríamos a vida cultural lendo A borboleta Lilica e seu laço de fita para mais tarde levar Machado pra cama, devorando-lhe os sarcasmos. Não ouviríamos Galinha Pintadinha no berço para, anos depois, carregar o mp3 com Beatles. Não passaríamos da cartilha, não chegaríamos a Lobato, não evoluiríamos da beleza rítmica e fácil do chocalho para uma sutileza macia de violoncelo. Nunca seríamos gente de distinguir entre Biancas e Júlias de banca de jornal e um Flaubert ou Balzac na Travessa. Uma coisa é melhor que a outra? sem pudores: é melhor que a outra. Negar uma tão limpa verdade seria corroborar uma demagogia eficientíssima em nivelar-nos o mais possivelmente por baixo.

Não quer dizer que eu rejeite a arte (digamos) mais primeira; sou mesmo amiga de umas necessárias bobices em festa, dancei o tchan como toda mortal de minha adolescência, curto umas tolices kitsch pelo menos pra dar risada. Ninguém perde 5 pontos de Q.I. toda vez que grunhe “ai, se eu te pego” lavando roupa. Mas a questão está na variedade. Na variação. O que não é possível, gente, é a criatura de 34, 46 anos conservar Teló como ícone supremo e vaiar um infeliz que lhe queira fazer a caridade de tocar Vinícius. O que não pode é o sujeito, na existência toda de seis décadas, lembrar-se só e vagamente de uma fotonovela Whatever do coração que saía no Cruzeiro e bater pé que aquilo, sim, era literatura. O que não pode é o cinquentão pseudoevoluído bocejar perante Monet e declarar que a tia-avó entrou para um cursito de pintura e anda produzindo iguais rabiscos. O que não pode é não ter olho, é não ter cabeça, é não ter outros sentidos nem vísceras bastantes para diferenciar a palha da lenha, a ideia do engenho, a fogueira do incêndio. Não pode igualar as fases da criação; não pode confundir os dois acordes do hit chicletoso com as dissonâncias estudadas da rapsódia; não pode nivelar o filmeco-Disney-para-a-família e o oscarizável de tanto roteiro e polimento. Durma com essa: não-po-de. A turma do “pode” quer só cobrir de álibi ideológico (esburacado) o mau e velho populismo, a péssima e idosa preguiça.  

Somos feitos sim para a sofisticação. Feitos para atravessar fases, ter olhos progressivamente desbastados, constantemente abertos, despertados, instruídos. Somos feitos para aceitar ligeiramente o entretenimento de produção ligeira, e cair de joelhos ante a composição meticulosa. Somos feitos para, também em termos de maturidade crítica, passar da infância à juventude e à adultice, sendo mais e mais seduzidos para os detalhamentos que antes nos achavam cegos; que antes achávamos chatos. Somos feitos para construir camadas umas sobre outras, empilhando experiência – que, se tira um pouco o prazer mais inocentinho, retribui com silêncio mais feliz. Somos feitos para não gargalhar sempre das mesmas piadas. Somos feitos para pilhar furos no roteiro. Feitos para identificar músculos e artérias na escultura de Rodin. Feitos para gastar horas embevecidas xeretando os enigmas de Escher. Feitos para ir enjoando de quadrinhos e passar à graphic novel. Feitos para sentir pelitos eriçando ao ler Castro Alves em voz alta. Feitos para – enxergando sombras, enxergando degraus, tons, entonações, nuances, ironias, demais figuras de linguagem, âmbitos, níveis – feitos para ser conquistados pelo muito e não engabelados pelo pouco. Feitos para ser público perigoso e atento, eleitor matreiro. Feitos para ser só muito artisticamente impressionáveis. Docemente difíceis.

Somos (astronautas) feitos para ver o chão muito de cima. Azul.

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