terça-feira, 26 de março de 2013

Criar repertório

Na época do carnaval, a Revista dO Globo fez matéria de capa com a recém-eleita Musa dos Blocos do prêmio Serpentina de Ouro: Daniela Bahiense. Linda e leve, a menina de 26. Lembro que elogiou alegremente o ato de caminhar pelo Centro do Rio, onde trabalha, e para justificar o entusiasmo meteu essa: “Gosto de andar, de ver os prédios antigos. Se você fica em casa esperando as coisas acontecerem, não cria repertório”. 

“Não cria repertório”, fiquei mastigando o conceito. Concordo à-beçamente com Daniela; é preciso criar repertório. Só não sou partidária do método. Detesto, admito, ser levada a me enfiar naquelas multidões do Centro – inandáveis se você não vai de tênis com amortecedor para triunfar de paralelepípedos, irrespiráveis se você percorre minicalçada que não deixa desviar do cigarro à frente, chovíveis em excesso se você pega outra minicalçada que não deixa desviar de ar-condicionado mijão. Adoro o Centro espiritualmente e não lhe aturo o corpo. Mas a sorte é que ir ao Centro é metonímia. Até sair de casa é metonímia. O que Daniela quis dizer, aprofundando as camadas, foi que a inércia mental e cultural de uma criatura que fica vendo a banda passar impede-a de crescer, amanhecer e dar fruto. Pouco importa se o ser humano em questão caminha como um alucinado do Largo do Machado ao da Carioca, do Catumbi à Cinelândia, conhecendo todas as bodegas e bibocas na maratona. Se é com janela trancada que caminha, ar fresco não entra. Se é com olhar vidrado e ouvido mouco que caminha, todo possível repertório bate e volta.

Criar repertório é uma olimpíada sobretudo interna. Demanda estado de prontidão, fervor de atenção, mais do que quilometragem rodada. Já vi gente classe-média, professora, com uma década de vida a mais do que eu e total ignorância a respeito dA noviça rebelde e Mary Poppins – para ficar em dois batidões de Sessão da tarde. Por quê? porque é pessoa que seguiu os anos sem tomar posse deles, distraída dos arredores, isenta de apropriação dos vários tipos de inteligência espalhados na rotina. Para se criar repertório colaboram gordamente os livros, os filmes, os jornais bebidos com suficiente devoção. Colaboram as histórias colhidas na padaria, os comentários pilhados no shopping, as cenas garimpadas no YouTube, os causos entredescobertos no ônibus, os acintes presenciados na esquina, os assaltos narrados na portaria, as piadas fisgadas no elevador, os sintomas relatados por senhorinhas de metrô, as tendências semeadas e brotadas de novela. A flor que você não sabia que era a do mês, a cor que você ignorava que era a da hora, o santo que você não desconfiava que era o do dia, a informação de rádio-relógio que te fez finalmente entender a questão árabe-israelense, a aula gratuita de yoga que te apresentou músculos perdidos na faxina, a revirada de gavetas que te retornou um eudolescente perdido na mudança, a colega de seção que te vendeu com elogios o amaciante perfeito – todas essas miudezinhas de vida, esses cacos de tempo que andam aí salpicados na vida mesma e no tempo mesmo, equivalem a criar o mais sólido repertório, quando há respeito e ternura bastantes pelos microconteúdos que nos constroem. Excetuo, naturalmente, os conteúdos que crescem vira-latas, erva-daninhos: fofocas e boatos e mexericos de toda sorte, além de aprendizados perfeitamente envenenantes, como a feitura de uma bomba. Esses não são repertório, são lixo hospitalar a ser incinerado com outros tantos, outros similares efeitos colaterais de estar vivo.

Mas se houver uma só escolha de método repertorial: viagens. Sem dúvida, as viagens – que é quando você finalmente mora nas leituras e filmes, ou quando melhor os metaboliza. Aí não é andar no Centro, é abdicar do centro e andar no mundo, engolfado pela instrutivíssima constatação da própria ignorância.

Entender-se vazio é véspera faminta de aprender.

Nenhum comentário: