Já vi trocentas vezes e passou na Sessão da tarde de ontem: Encontro de amor. Filme engraçadinho em que Jennifer Lopez, na pele de camareira de hotel chique, envolve-se com o político interpretado por Ralph Fiennes. Um clássico mal-entendido o faz pensar que a funcionária é uma ricaça; e, como em filme a melhor maneira de se desfazer um engano costuma ser a mais estrambólica possível, eis que a moça decide romper o envolvimento num baile de luxo. De luuuuuuxo. Uma porção de fadas madrinhas providencia a beca: vestido, sapato, joias, tudo vem de empréstimo pela mão de amigos vendedores. E a operária, cinderelamente, surge princesa. De dentro da limusine, olha apavorada a colega de trabalho. Socorro. Não vou conseguir. Isso é uma mentira. A outra encoraja, garante que é um sonho a ser vivido em nome de todas elas. Completa com sapiência: “Esta noite, a camareira é que é uma mentira”.
E não é? Tem noite, tem dia, em que a mentira é o nós de sempre. O nós por hábito, sem desejo nem reflexão. O nós que somos porque relapsos, porque indiferentes, porque preguiçosos. Porque conformados. Não era bem o caso de Marisa, a personagem de Jennifer Lopez – alegremente empenhada em suas funções. Era também mutilação, entretanto, que se compreendesse apenas como camareira, renegando sua princesice igualmente autêntica. Deceparmos nosso pianista, por ser o engenheiro eletrônico quem paga as contas; decapitarmos nossa recreadora infantil, por ser a advogada quem dá orgulho à família; sufocarmos nosso mochileiro, por ter sido o pediatra quem herdou o consultório – é o mesmo princípio de cortarmos a mão esquerda porque estamos habituadíssimos à condição de destros. Mentira não há em alternarmos porções de nossa verdade complicada (hoje professores de História, amanhã nadadores profissionais; ao meio-dia geeks, às 21h sambistas de gafieira). Há mentira, sim, em desencaixarmos o pedacinho de verdade do seu respectivo momento. Do seu respectivo decoro. E há mentira em tacar fora uma verdadice da qual simplesmente perdemos o manual.
Não digo e nunca direi que estamos aptos a sacar uma verdade da cartola conforme a paixão e as conveniências. Não digo que aceitemos nossos vícios e más propensões, condescendentes, sob a desculpa da autenticidade. Nada mais cretino. Uma coleção legítima de verdades nos deve asas, e não novos chumbos em nosso pé ou no alheio. Justificar traições, abonar cigarros e outras drogas, permitir irresponsabilidades de impulso – o uso do “respeito ao eu” nesse assunto não passa de charlatanismo. Respeitar-se, em todas as frentes, é também (é principalmente) não faltar à própria palavra, honrar a própria entrega, a própria decisão, o próprio grupo social, pulmões e vísceras próprias. Abarcar nossas realidades várias não representa amar os erros, mas exatamente as alternativas. Amar aquilo que deveríamos estar fazendo, quando decidimos nos emaranhar num atalho duvidoso para não fazer.
Amar a camareira enquanto formos camareiras; a princesa, enquanto princesas. Amar tão incondicionalmente nosso instante, e com tanta convicção e abandono, que tudo mais seja rematado absurdo. Faça-se em nós o necessário de cada noite, o honesto de cada dia, e acabou-se o medo. Que medo é nada mais que isso: não chegar ao fundo de ser carruagem por se crer abóbora.
E não é? Tem noite, tem dia, em que a mentira é o nós de sempre. O nós por hábito, sem desejo nem reflexão. O nós que somos porque relapsos, porque indiferentes, porque preguiçosos. Porque conformados. Não era bem o caso de Marisa, a personagem de Jennifer Lopez – alegremente empenhada em suas funções. Era também mutilação, entretanto, que se compreendesse apenas como camareira, renegando sua princesice igualmente autêntica. Deceparmos nosso pianista, por ser o engenheiro eletrônico quem paga as contas; decapitarmos nossa recreadora infantil, por ser a advogada quem dá orgulho à família; sufocarmos nosso mochileiro, por ter sido o pediatra quem herdou o consultório – é o mesmo princípio de cortarmos a mão esquerda porque estamos habituadíssimos à condição de destros. Mentira não há em alternarmos porções de nossa verdade complicada (hoje professores de História, amanhã nadadores profissionais; ao meio-dia geeks, às 21h sambistas de gafieira). Há mentira, sim, em desencaixarmos o pedacinho de verdade do seu respectivo momento. Do seu respectivo decoro. E há mentira em tacar fora uma verdadice da qual simplesmente perdemos o manual.
Não digo e nunca direi que estamos aptos a sacar uma verdade da cartola conforme a paixão e as conveniências. Não digo que aceitemos nossos vícios e más propensões, condescendentes, sob a desculpa da autenticidade. Nada mais cretino. Uma coleção legítima de verdades nos deve asas, e não novos chumbos em nosso pé ou no alheio. Justificar traições, abonar cigarros e outras drogas, permitir irresponsabilidades de impulso – o uso do “respeito ao eu” nesse assunto não passa de charlatanismo. Respeitar-se, em todas as frentes, é também (é principalmente) não faltar à própria palavra, honrar a própria entrega, a própria decisão, o próprio grupo social, pulmões e vísceras próprias. Abarcar nossas realidades várias não representa amar os erros, mas exatamente as alternativas. Amar aquilo que deveríamos estar fazendo, quando decidimos nos emaranhar num atalho duvidoso para não fazer.
Amar a camareira enquanto formos camareiras; a princesa, enquanto princesas. Amar tão incondicionalmente nosso instante, e com tanta convicção e abandono, que tudo mais seja rematado absurdo. Faça-se em nós o necessário de cada noite, o honesto de cada dia, e acabou-se o medo. Que medo é nada mais que isso: não chegar ao fundo de ser carruagem por se crer abóbora.
Um comentário:
ótimo texto, bastante reflexivo (:
Acho que no fim, o que importa é amar o que faz, e saber lidar com as mudanças da vida, e não cair na armadilha do caminho 'mais rápido' ou que dê mais dinheiro. E sim se manter satisfeito com o que tem sem medo de mudar, no entanto.
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