sexta-feira, 2 de novembro de 2012

As bonitas que me perdoem

Ingrid Guimarães arrasou quando, recentemente, foi colunista convidada na Revista dO Globo e mandou ver num ensaio sobre a beleza – ou sobre a relação descabelada das mulheres atuais com a cuja. Mencionou a peça Razões pra ser bonita, de Neil Labute (que ela mesma estreou em setembro), e a premissa que a fisgou para a obra: o fato de um marido comentar com a esposa que o rosto dela é simplesmente “comum”, em comparação com o de outra indivídua muito bonita. “A partir daí” – prossegue Ingrid – “ela entra num processo psicológico que a impede de ficar ao lado dele e enlouquece. Vale lembrar que ele não disse ‘feia’ em nenhum momento e, logo depois, afirmou que não a trocaria por ninguém. Mas esta segunda parte ela nem ouviu.” Logicamente não. Mulher de hoje que é mulher de hoje normalmente dispensa ser indispensável: quer ser bo-ni-ta. Ter a presença do marido segura por algo irrelevante como o amor não dá camisa a ninguém. Se plenamente amadas em sua regularidade morninha de traços, estão frágeis, estão cristais; apenas desejadas em sua total impecabilidade de linhas, em perfeita exuberância de lábios e curvas, estão sólidas de felicidade. Por quê? porque amor, o tão inexpugnável, pertence incontrolavelmente a quem o sente e escapa às viciadas em controle. Beleza não; beleza é da dona, e muito dela, e dela permanece quando o marido se amofina da relação, e nela segue (como dote, investimento, cartão de crédito, habeas corpus) a postos para enlaçar qualquer provável candidato. É o que pensam, decerto, essas tais madames mais horrorizadas em ser “comuns” do que em se reconhecer capazes de cativar sem Mary Kay e suadouro de esteira: não ter beleza é ficar refém de coração alheio; é andar por aí desprevenida de contato e contrato para uma nova pensão.   

Acontece que boniteza plena é teoricamente exceção; e, como tem recebido ares de regra, deu de ficar chata pra dedéu. Ficou, olha só: comum. Todo mundo é bonito, todo mundo tem de ser bonito, e o serem todos bonitos começou a tirar o interesse peculiar da coisa. Foi-se acabando o encantamento de descobrir ali um narizito que olha para a lua, acolá uns olhos cheios e pestanudos, lá um conjunto precioso de sardas, aqui um grupo pitoresco de pintas – e cada um dos traços ter em si o valor de uma beleza inteira, potinho de arco-íris iluminando de surpresas o todo desapaixonante. Já que a totalidade das gentes resolveu concordar em quais detalhes são bonitos e feios, foi caindo em desuso o susto com a minúcia inesperada, em geral aquela mesma que salta ao coração farolmente. Aquela mesma que, parece, todos vêm uniformizando. “Corrigindo”. Daí ser natural concluir que mulheres, sobretudo mulheres, não querem ser amadas com ternura antiga, querem casar-se consigo; pretendem agora copular com as próprias fantasias de replicante, as próprias neuroses, as próprias impaciências. Mulheres fazem-se amantes dos espelhos e cobiçam cônjuge não menos exigente: que as adore impecáveis, que as espere perfeitas; que não (com afeto legítimo) chochamente as aceite. Em vez de homens, essas doidas senhoras desposam pretextos. Pretextos para dar a eles a criatura que em si rascunhavam. Um movimento de adoração incondicional da parte do desavisado, uma tentativa de valorizá-la pelo que é tão-somente – e vem choro de traição na certa.

Esperança das fanáticas por beleza imaginária é casar o parceiro com sua (só sua) ilustre desconhecida.

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