sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Nada do que foi será

Não vejo The walking dead e detesto tudo quanto se refira à turma dos mortos ambulantes – com honrosa exceção a Thriller. Mas Marido adooooora zumbis, o que me faz acompanhar por tabela a série (só na saudável teoria, a uma distância segura de pernas amputadas e braços mastigados). Sei, por exemplo, que há sempre um e outro personagem incapaz de “assassinar” seus beloved ones quando estes são tomados pelo vírus zumbi e se morto-vivam – inclusive o talvez-vilão da história, que armazena a filha zumbizadinha numa camisa de força. Para os outros peregrinos do mundo arrasado, limpos de lembrança amorosa, esses múmios são ameaças ranhentas e sedentas como quaisquer das demais. Para aqueles que amaram os monstrinhos em vida, são ainda e (e)ternamente os mesmos que lhes nasceram com dois quilos de bochecha vermelha, ajudaram a preparar o chá de panela ou ensinaram a cantar toda a obra da Galinha Pintadinha. Amor não é cego: enxerga em calendário específico.   

Mesmo entendendo grandemente o afeto que nos move a preservar nossos zumbis de estimação, me pergunto. Adianta? OK; paira constante a esperança de cura, de alguém descobrir um sorito que desumbize boa parte das vítimas. Mas suponhamos que a morto-vivice seja definitiva e já se saiba, de antemão, estar guardando na despensa uma criatura sem memória ou alma, que passará a eternidade “pensando” em jantar-lhe as orelhas. Sei não. Fico desconfortável com a perspectiva de um filho ou irmão meu interpretar-me como um McLanche Feliz. E no entanto é isso que fazemos: nos algemamos a histórias enterradas, nos afeiçoamos a realidades moribundas, nos rendemos a passados agonizantes – louca, insistentemente trocando, pelo horror conhecido, um novo caminho incógnito. Daí o tanto de bagagem que nos pesa o lombo. Daí o tanto de repetidas mortes que arrastamos em vida.

Antes de alguém tomar a liberdade de entender que defendo alguma ideia eutanásica: não. Por acreditar que o corpo humano é máquina que prega peças, que tem seus caprichos e conta suas lorotas, sou contra a eutanásia física. O que aqui me interessa é a eutanásia emocional de todos os componentes já necrosados de nossa linha do tempo. Um tiro no meio da testa do namoro que te tortura, deprime, desestabiliza e vaga pelas trevas mascando sua autoestima. Uma machadada no crânio do emprego que te assedia moralmente, chuta, humilha e vem de noite te puxar as pernas. Uma amputação radical dos ressentimentos putrefatos que te mordem e envenenam há anos, e geraram rompimentos definitivos cujas razões primeiras você até esqueceu. Uma decapitação de emergência na bagunça embolorada. Uma flechada no olho do culpismo que te faz de cavalinho. Uma faca na carótida do vício que te puxa pros becos. Uma sangria final no lado seu que não desata as correntes.

Que os nossos fantasmas voltem pras sombras a que pertencem ou nas quais se transformaram. Pela estrada afora, vamos (muito) bem sozinhos – spray de pimenta na cesta pra desencorajar a companhia de um qualquer lobo mau.

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