sábado, 3 de novembro de 2012

O desnecessário

Toca-me pessoal e fundo o verso de Manoel de Barros, um exemplar de sabedorias: “Trabalho arduamente pra fazer o que é desnecessário”. É fato. Identifico-me. Passo horas longas e escorridas fazendo o desnecessário. Torno-me a exausta das criaturas fazendo o desnecessário. O preciso, o cotidiano, o fundamental está lá, gritando quase pacientemente sua existência: a roupa esmolengada no cesto, tão carecida de lavar; os sapatos vindos da rua, pedindo higienização acumulados; os exames deitados na gaveta, comprometidos a tratar-me a gastrite sempre empurrada na barriga; as burocracias subestimadas de importância; os sonos negligenciados de momento; os cabelos inviáveis de comprimento; as camisas moradoras de lavanderia; os legumes; os presentes; os quadros; os espanadores – tudo um pouco indignado de minha ofensa à sua premência incontestável.  Porque, enquanto a vida seríssima (de moletom e olheiras) me empurra sucessivas prioridades de gente seríssima, suspiro de culpa ou adiamento e trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário. Reinvento emergências.

Quais? Escrever, sobretudo. Escrever, escrever com fúria, da tarde à aurora – sem ser por salário, para leitores prováveis, para práticos objetivos. Escrever porque sim: absurdo. E além de escrever, elaborar. Elaborar provas e testes de melhor cabimento a meus olhos, e mais razoável dificuldade, que quaisquer outros já arquivados. O interminável novelo. E além de elaborar, levar infinitas décadas buscando textos e temas. “Perder” tempo essencial à travessia da rua em contemplação da lua. Investir atenções carinhosas na novela preferida. Atrasar a lavagem dos pratos tomando a torneira por microfone. Demorar a saída do trabalho dando azo à conversa que, delicada, há de ressentir-se à menor interrupção (não volta mais). Adiar o encaixotamento de papéis atirando-me à doçura de ler e redespertar ideias. Tapear o sono espreguiçando-me sobre páginas do século retrasado. Interromper a pesquisa imediata debruçando-me sobre a viagem futura. Interromper arrumações do dia futuro elucubrando de escolhas passadas. Desviar decisões de Natal em prol de sonhos juninos. Gastar-me. Inutilizar-me em pequenices. Desperdiçar-me em jotas-pinto-fernandes que não tinham entrado na história.

Inviável a disciplina total do dever previsto. Se destronado por urgências intrusas, o necessário de cada um dá a volta no relógio e aborda o coração pela janela.

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