terça-feira, 20 de novembro de 2012

Eu sou você amanhã

Numa deliciosa tirinha do Calvin publicada no Face, o protagonista mais safado das agaquês recebe e lê uma carta de seu “eu passado”: “Caro futuro Calvin, eu escrevi esta carta alguns dias antes de você recebê-la. Você fez coisas que eu não fiz. Viu coisas que eu não vi. Sabe coisas que eu não sei. Seu sortudo de uma figa! Seu camarada, Calvin”. O moleque arremata enxugando uma lágrima e suspirando a pena que sente de si mesmo dois dias atrás. Entendo à perfeição. Não raro me flagro em clima de piedade e alívio com relação a tantos meus eus que ralaram, coitados, para que estivesse aqui-agora esta euzinha duarte, supostamente livre de tamanhas ignorâncias e, felizmente, ignorante quanto a meu estágio de evolução futura. Sempre é produtivo não ter noção completa da magnitude do rombo a ser reparado, ou pularíamos todos do barco, encarnados em desespero.

A infância: que linda. Quantas vezes a criatura não se pega, em meio à tsunâmi adulta, censurando de tarja preta os pedaços de agudo sofrimento moral da meninice e desejando, cantando, recitando – ai, que saudades que eu tenho?... Eu não. Fui muito feliz, tal e coisa, com a felicidade de miúdas ilusões que então me cabia; mas jamais-em-tempo-algum trocaria, pelas dores superlativas da época, aquelas hoje dimensionadas conforme o devido. Não que a infância me tenha doído mais que a de qualquer outro. O caso é que, quando somos e formamos mundo pequeno, as agruras menorezinhas nos engolem em proporção. Cortar o cabelo relativamente curto ou tirar nota um bocadinho mais baixa nos mergulham no inferno de antecipar a zombaria da turma. Gostar de um menino da sala e ver que ele passou o recreio brincando com outra nos joga na depressão mais inteira. Esperar a mãe voltar do trabalho para ver-lhe a reação à queixa da avó nos atira ao precipício de terror e culpa. Todo tormento é over, toda encanação é máxi. Não temos (se somos crianças minimamente limpas de cinismo) escudo bastante contra os horrores que vêm de fora, equilíbrio bastante para regrar as aflições agudíssimas de dentro. Na adolescência, o mundo cresce para ao menos termos espaço de sobrevida à revoada dos hormônios. Chegam sentires mais fisicamente pulsantes, pressões mais definitivas, conhecimentos academicamente mais cruéis: tudo bonito, intenso, poético – graças a Deus que passou. Nada como lembrar-se das intensidades e maravilhas belíssimas quando a cicatriz já há fechado em segurança.

Nada como não ter de chorar sangue estudando as Físicas e Químicas odientas. Nada como saber que não precisamos de cabelo na cintura para ser tão igualmente femininas. Nada como perceber que óculos de lente menor nos deixam enxergar tão igualmente bem. Nada como fazer as pazes com fígados, berinjelas, praias, parques aquáticos. Nada como perder o receio da vida de casada. Nada como já ter organizado o casamento. Já ter montado o apartamento. Já ter anos de experiência para dosar o ferro-e-fogo inicial de sala de aula. Já ter passado por aeroporto americano. Nada como não ter mais de fazer prova de Matemática. Nada como não ter mais de fazer prova oral de Inglês. Nada como não ter mais de fazer prova. Nada como não mais topar com latins e filologias no currículo. Nada como não enfrentar as febres e sufocações da dúvida amorosa. Nada como assinar o ponto em vez de levar carimbada a caderneta. Nada como não ser obrigada a usar lápis. Nada como não chorar porque o brinquedo rachou ou a casa está cravejada de formigas. Nada como assistir a um canal enquanto se grava outro. Nada como relaxar na gravação porque é só procurar o episódio no site. Nada como comer rango sólido e misturado. Nada como mexer com desenvoltura na máquina de lavar. Nada como ter visto impensáveis filmes, peças, expôsis; ter passado sem grilo por duas endoscopias; ter recebido o ato de investidura das duas matrículas. Nada como ter entendido mais ou menos a situação política do Irã nos anos 80. Nada como ter permitido que se quebrasse, ou encolhesse, um caminhão de manias e delírios e preconceitos. Nada como ficar à vontade com o mundo para pegar leve nos rótulos. Nada como aceitar alegremente que ele está dividido em, por baixo, 2.050 tons de cinza. Nada como crescer.

E reaparecer.

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