segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Os ruminantes

É uma gente com a qual, admito, me falta paciência: os ruminantes. Aquele povo que, em vez de nutrir-se numa assentada, ingerindo as melhores e piores coisas e, em consequência, procedendo à boa ou confusa – anyway, definitiva – digestão, fica de lero-lero estomacal. Come, mastiga, engole, desengole, remastiga, trimastiga, masca, reengole, sem nunca efetivamente chegar às vias de fato que tornam alimento a comida; sem nunca encerrar a refeição com a alegria cabível e expectar a próxima. Todo mundo conhece esses tais: criaturas que não vão adiante. Estacam no tempo e no espaço gozando infinitamente a dor de cada arranhão, engrolando a delícia de cada afronta, comprazendo-se interminavelmente em mágoas aumentadas, inventadas, pisadas, repisadas. Seu mundo não está apto a digerir; engasga-se em minúcias com cada bocado, na avareza, decerto, de economizar emoção com a novidade seguinte.

Uma minha tia-avó, por exemplo. Sempre foi medalhista em ruminância, mas depois da morte de Vó, sua irmã (sim, recentemente perdi Vó), ficou recordista de ouro. Encasquetou com a necessidade de velório – embora nem Mãe, nem eu, nem qualquer elemento da família nuclear seja de modo algum chegado a rituais longuíssimos de sepultamento, que só estendem infertilmente a morte infértil e nos fazem ter a obrigação de chorar mais tempo. Não se conseguiu capela, realizou-se a só meia hora de exposição do corpo (caixão fechado: ela inchara muito), suficiente para as devidas orações e despedidas. Pouca gente. Algumas flores. Tudo simples e digno. Mas Tia parece ter descrido da humanidade depois dessa ligeireza que julgou imbastante, e, em lugar de prosseguir a vida com seus aniversários, reuniões e celebrações, continuou velando velando velando. Prefere mascar a “ofensa” de agosto a reunir-se natalinamente conosco em dezembro. Cearão os três: ela, o marido e o ressentimento eterno – cada vez mais encarnudado por lhe darem de comer vinte e quatro momentos ao dia.            

Claro, existe o luto. Mas o luto, tristeza de saudade e vácuo de perda, não supõe amargura. Não supõe o câncer da amargura. Porque essa amargura – fim em si mesma – nada mais é que a birra do ego desatendido em suas exigências de universo, birra só pretextada pela (no caso) morte do outro. Mágoas retroalimentadas ad aeternum são festas ao contrário: circo armado permanentemente para descomemorar a existência; centro de gravidade profundo, sem fundo, que brota da feridinha micra e vai devorando o entorno, como bactéria antropófaga. Quem propaga essas inconveniências? Os que aguardam o fora da primeira namorada para serem infelizes para sempre – e fazerem as segundas namoradas infelizes para sempre. Os que esperam o nascimento de um filho para traumatizá-lo de culpa pela perda da beleza. Os que transformam os problemas com trabalho de grupo no 7º. ano em metralhadas na turma de faculdade. Os que tornam um placar ruim na última partida em assassinato a pauladas do torcedor adversário. Nazistas eram ruminantes. Psicopatas são ruminantes. Homicidas são ruminantes. Espíritos de porco são ruminantes. Pais (incluindo mães) azedos são ruminantes. Aqueles que ninguém quer escolher pra equipe ou aguenta na roda de conversa: 89% de chance de serem ruminantes. A ruminância é autorraiva que transborda; sua veneno, baba veneno, espirra veneno e acaba contaminando ambientes com partículas dos próprios desacertos internos. Ruminância é o machucado sem mercúrio-cromo. Ruminância é o vaso sem descarga. Ruminância é o lixão sem recolhimento da Comlurb. O único câncer (já a chamei de câncer) que pega a criatura mais próxima para paraíso fiscal de suas metástases.

Já bem disseram: não importa o que fizeram com você, importa o que você faz com isso. Ruminantes não fazem nada com isso. Voltam pra cama e deixam necrosar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que triste :/

Beijo,
www.estanteseletiva.com