sábado, 17 de novembro de 2012

Voltar limpos

Assistimos a Argo – o relato dramaticômico de como seis funcionários da embaixada americana foram resgatados do Irã no final dos anos 70, época em que Khomeini papava fígados ianques no café da manhã. O toque de humor fica na conta da estratégia de ação escolhida (segundo um personagem, a “melhor má ideia” que se conseguiu ter entre as opções aventadas pelo governo dos EUA): arrancar as criaturas da terra do aiatolá fingindo serem uma equipe de produção canadense que, supostamente, visitou o país por apenas dois dias, a fim de investigar locações exóticas para um filme de ficção científica. Tornar a coisa crível exigiu a assessoria do pessoal de Hollywood; havia roteiro, cartazes, atores e até storyboards de verdade para o longa de mentirinha. Um dos apoiadores foi o diretor debochado vivido por Alan Arkin, mais uma vez fazendo papel de Alan Arkin como ele só. A uma pergunta do personagem de Ben Affleck (Tony Mendez, o responsável maior pela exfiltração dos refugiados) sobre como ele, diretor, acabara se afastando de sua mulher e filhas, disparou: “Sabe, trabalhar em cinema é como trabalhar em minas de carvão; nem sempre você consegue voltar limpo para a sua família”.   

Por mais que Argo seja gordo de boas tiradas, ficou-me essa. Voltar limpo. Eu, professora casada com professor, brinco que não fazemos DR: fazemos conselho de classe. Chegamos impregnados daquele visgo didático, daquele pesadume engraxado de sala de aula (tapem os ouvidos, românticos: sala de aula, não importa o que lhes contem as matérias fofas do Fantástico, é 96% das vezes um simba-safári de 40 feras e um só domador); o resultado é passarmos boa parte do tempo útil debatendo os absurdos escolares, queimando um tantão de vela com mau defunto. “Ah, mas falar ajuda a elaborar os sentimentos”, papagaiam alguns convictos. Papo-aranha do senso comum: não ajuda a todos. No meu caso, falar sobre o grotesco, o dantesco, só traz cinco ou seis vezes de volta o inferno de Dante, com todas as devidas e reiteradas taquicardias, os repetidos venenos. Bom mesmo é zerar-se; a única chance de sobreviver aos horrores da função que nos cabe (e se alguém disser “troca de função”, como se fora a Grande Ideia e a coisa mais simples, toma um murro) é, sempre que possível, desvivê-la. Dar um mergulho de fim de tarde nos livros. Higienizar-se moralmente em duas horas de cinema. Passar metade do finde brincando de Star wars com seus filhos. Passar metade do finde brincando de Angry Birds - Star wars sem seus filhos. Suar fúrias na academia. Tesourar aborrecimentos na jardinagem. Pisotear canalhices na dança de salão. Viajar! lava-a-jato eficientíssimo de fundos desconsolos. Desintoxicar antes de transpor seu sagrado tapete de Welcome – que a vida não merece ser sacrificada pelos sacrifícios feitos para mantê-la.

Maridos e esposas de médico devem reconhecer o sofrimento alheio, mas não merecem um parceiro amargurado de horror nas poucas horas de parceria que lhes sobram. Filhos de policiais devem estar cientes da violência urbana, mas não merecem pai ou mãe (ou ambos) encrostados de desconfiança e dureza nos parcos instantes de bobeira em família. Pais e mães de missionários na África (ou na esquina) devem ter o entendimento dos mais amplos flagelos, mas não merecem filhos endurecidos de indignação e desespero nas tardes bocadinhas de almoço dominical. Amigos de psicanalistas não merecem lanchar e jantar angústia humana. Sobrinhos de executivos não merecem tios que brinquem com cinco olhos pregados no celular. Irmãos de carcereiros não merecem adormecer pesadelando com atrocidades ocorridas por trás das barras. Não é justo, não é generoso, não lícito com nosso melhor mundo trazermos só nossos mundos piores para residirem nele.

A tendência é a colonização pegar. 

Nenhum comentário: