domingo, 25 de novembro de 2012

Estatísticas

Não tenho nada contra as cujas; minha irmã, inclusive, é estatística de formação. Não tenho nada contra o saudabilíssimo procedimento de, quantificando, ter uma certa ideia do andamento dos fatos. O que me agride está do outro lado do processo: a fabricação desavergonhada de fatos para se enfiarem confortaveizinhos nas desejadas estatísticas. A massinhagem-de-modelar pornográfica que se executa sobre as realidades mais rotas para surgirem lindonas na foto. A nojenta inversão da caverna – em que a vida, a vida, a vida, com suas chagas palpáveis, seus arranhões sangrentos, não existe para os autos. Só existe no reflexo difuso da pedra, na maquiagem indetalhada dos números. Só existe reinventada.

Que o digamos nós, os que levam vida de professorete. Vez por outra nos chegam criaturas – senão de mente – de alma analfabeta. Ou os pequenos cérebros foram criminosamente empurrados séries a fio, sem uma reprovação que lhes farolasse a ignorância, ou, se puderam aprender um qualquer beabá, mastigaram embutido o elogio da mediocridade. Primeira lição mamadeirada pelo aluninho de município: pouco já basta. Já basta para a aprovação com média anual 3,2-que-é-quase-4-que-é-quase-5. Já basta para o gabaritar dos testes de prefeitura oficiais, cunhados para os de idade mental três anos inferior. Já basta para o ganho da bolsa-cartão-família-help-auxílio-carioca, garantidaça a despeito do rendimento escolar mais vexatório. Já basta para a formatura colegial cheia de flor e banda, farta de eleitores radiantemente presentes e futuros. É ensinada desde sempre ao povo miúdo – e seus geradores – a utilidade da paralisia, a vantagem da aceitação cretina, do pensamento desesforçado, em troca da diplomação em massa que parece abrir novas portas e felizes. Tu me dás números de urna, eu te honro com porcentagens de aprovação a serem lidas pelo Márcio Gomes num sorriso de uma à outra têmpora. Eu finjo que te preparo para um dia me questionares, tu fazes de conta que um dia conseguirás ser meu servidor passando no próximo concurso. Bem está o que bem acaba. Beijo de amor. Aplausos. Pano rápido.

Que também o diga Marido, revisor de quantos textos acadêmicos rabiscados por PhDs de Harvard que confundem “mas” e “mais”, por professores-doutores-organizadores do Departamento de Etceterices Latino-Americanas que inauguram e não encerram frase, por mestres yodas das mais altas comandas que separam de vírgula o sujeito e um seu predicado. E vá tentar remendar-lhes o período incompreensível; “deixe como está” – é, entre bufos, o resmungo geral. Desde que a taxa de publicações anuais caia bonitinha no Lattes, desde que os artigos tais e tantos saiam com as titulações em gordo negrito, desde que as sumidades completem a meta do semestre com algum quasímodo embrulhado em capa colorida, quem é que se amofina com o leitor boiandão na leitura, expulso da página onde foi bater de pires na mão? Estatísticas, as bezerras de ouro. Que %s de tijolo e cimento arrendem a antiga terra da beleza inquilina. Ao menos a da justa clareza.

Que as expectativas polianas de vida cortinem de fumaça a medicina que lhe injeta café com leite na veia. Que os pibões balofos fantasiem de glitter as mesas esqueléticas da caatinga. Que os bons números do atacado disfarcem quem morre à míngua no varejo. Que as menores natalidades médias escondam quem tem quinze filhos por profissão. Que o grosso regenere o particular, o global maquie o detalhe, a eficiência morta do algarismo redima a mediocrização galopante da minúcia. Que nos asfaltemos. Que nos generiquemos. Que nos desindividualizemos dentro do Cérebro que se apropria da ciência para nos nivelar subsolamente – com sorriso de Olimpo impresso na cara.

(Já basta.)

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