terça-feira, 11 de abril de 2017

Alergias

Oficialmente tenho alergia a poeira, ácaro, barata (sério: barata) e uma leve intolerância à lactose. Acabei de espirrar agorinha mesmo, com essa espécie de autodefesa que quem acorda pratica, ao sair da rave de microsseres no travesseiro. Mas eu queria em verdademente espirrar do mundo ou da vizinhança, com a mesma eficiência, umas alergias outras que não arredam com spray nasal, comprimido ou colírio, que não se assustam com cânfora nem soro nem bromelina, e andam pelos quarteirões acabando com meu nariz emocional.

Tenho alergia, por exemplo, a papo coxinha fático. Claro, a papo coxinha em geral; porém aquele estabelecido, já sólido no meio da conversa, a gente está na vibe de contra-argumentar com vigor, a gente está (que jeito) no espírito de receber e retorquir, enquanto o fático nos aborda desprevenidos na fila do hortifrúti, nos encontra cansados no que deveria ser o recesso do táxi, e apenas aborrece as células sem perspectiva de persuasão nem continuidade. Não queremos barraquear no caixa do mercado nos exaltando contra os clichês do mau senso comum, não temos tempo nem gás para perder a sessão de cinema esmurrando ponta de faca, não estamos organizados mentalmente para escancarar nosso arquivo de fatos, então um mero silêncio impaciente ou um suspiro de desgosto respondem à exposição de germes – e vida que segue. Vida que segue inoculada. Abalada. Indisposta.

Tenho alergia a gente buzinando, martelando, cobrando, repetindo, me colocando em estado de zoeira cerebral; fico estomacalmente afetada por nuvens de ruído e ansiedade, necessito pensar e respirar limpo, senão é dor, dor, dor. Tenho alergia aos jornais ora cheios de olhares dramáticos, ora bobo-alegremente circenses, mas sempre odiosos e manipulentos da Globo. Tenho alergia à síndrome de capitão do mato: gente que não enxerga a própria dor e a própria história, que compra-defende-justifica-aplica em outrem o mesmo cabresto e chicote que lhe são aplicados. Tenho alergia a ingerências, perguntações e mexeriquices alheias, já que sou naturalmente reservada e preguiçosa de explicações verbais, Amélie Poulain por fora e cavalo impossuível por dentro. Tenho alergia definitiva a arrogâncias e preconceitos: é o CÚMULO da absurdidade nos acharmos – nós, porcarias que somos pó e ao pó voltaremos, atchim – melhores pela cor de um órgão, pela pronúncia de uma sílaba ou pela quantidade de papel na gaveta. Tenho alergia a modas e necessidades compulsórias. Tenho alergia ao que é grosseiro, desrespeitoso, violento; ao que é incoerente ou muito óbvio, ao que é afetado ou banal.

Tenho alergia ao dia sem efeito, à vida sem propósito e ao término sem final.

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