sexta-feira, 7 de abril de 2017

No meu tempo

Sempre que alguém quer enfatizar que as décadas passadas, sim, é que eram porretas, costuma tascar o típico: “No meu tempo...” – mania que me incomoda um monte. Um bonde. “No meu tempo” em geral puxa memórias em tom de sépia, madeleines de infância, primeiríssimos amores, anos dourados com bailes de formatura, vida sem tevê a cabo (ou sem tevê, ponto), matinê, patins, Pogobol, a gente nos primórdios da gente mesma, fresquinha de felicidade inocente. É um tudão lindo e falso; primeiro, porque não recriamos com nenhuma eficiência o que supomos lembrar – é um processo muito, muuuuito seletivo que embaralha as cartas conforme o capricho do jogo, daí a facilidade de produzirmos “provas” imateriais para qualquer tese. Segundo, porque botar o “nosso tempo” num pretérito perfeitíssimo faz parecer que lá estamos inteira e igualmente, fechados e embalados num passado a que já não devíamos pertencer e, portanto, expulsos do restante da vida, mais conhecido como agora. Se antes era nosso tempo e não atualmente, somos então mortos oficiais, protagonistas de apocalipse zumbi, cadáveres adiados que procriam (nas palavras de P’soa)? estamos – por gentil hospedagem dos que ainda não dizem “no meu tempo” – habitando os acréscimos, caminhando para os pênaltis? vivemos já como quem não vive? existimos como quem meramente continua?

Particularmente, pretendo até uns 457 anos permanecer no meu tempo. Não significa que adotarei todas as modas e redes, que amarei todas as feições e mudanças, que me incluirei em todas as novas fomes, que compartilharei de todos os recentes usos. Fosse eu assim vária e moldável, o tempo não necessariamente seria meu: eu é que seria dele. Não; o tempo será bastante meu enquanto soprar vida, e meu para criticá-lo, meu para volta e meia xingá-lo, meu para fruí-lo, meu para o que der na tê-lho. Enquanto escorrer areia da ampulheta, vou eu mesma tingir o tempo de minhas estampas, vesti-lo de minhas saias, dar-lhe meus costumes, inscrevê-lo em meus motivos. Enquanto os ponteiros deslizarem pimpões, vou modificar meu tempo, influenciá-lo, retocá-lo, cocriá-lo, codesenhá-lo, ajudar a dar-lhe cara e voz, agir sobre o retrato que dele ficará na parede, estar presente e agente em suas metamorfoses, barquear em suas marés, sentir em primeira mão suas páscoas e seus desalentos, seus golpes e suas evoluções.

Meu tempo não era exatamente o de criança, quando vivia em perdidas tolices e ainda muitos receios, muitos preconceitos. Meu tempo não era completamente o da adolescência, quando apenas começava a abrir voos, sondar impressões, ganhar corpo e forma nos objetivos. Meu tempo é cada vez mais o de hoje, porque nosso tempo está dentro e não fora; vem de nossas maturidades e decisões, muitíssimo mais do que de nossas alegrias ingenuazinhas, vividas talvez com mais entrega, mas justamente agarradas como uma tábua no mar, um refresco em meio à insegurança. Quanto mais firmes, mais instruídos, mais informados, mais adultos na inteireza do termo – mais moramos em nosso tempo, porque não o aceitamos com o plano encantamento dos fracos e passivos, e sim o elaboramos com o pleno arbítrio dos escolhedores.

Nosso tempo não é maciamente o que nos fez e de onde viemos; é, sobretudo, o que dele fazemos e para onde caminhamos. Ninguém, com mais genialidade que Millôr, o resumiu e definiu para os que creem no mito do humano ultrapassado: “Olhaí, garotada: quando eu digo ‘no meu tempo’, estou falando é do futuro”.

Nenhum comentário: