segunda-feira, 3 de abril de 2017

Síndrome da chuva

Não conheço ninguém que já não tenha celebrado íntima ou pra-foramente o fato de estar chovendo, quando se pode/deve ficar em casa e dormir (ou ler, ou ver um filme com chocolate quente, ou qualquer conforto afim). É ao mesmo tempo inegável, natural e – sim, acredito – preocupante. Por quê? Porque esse gozo precioso em se sentir tão mais sortudo e acolhido quanto mais o barulhinho de chuva bate na janela ilustra o que somos: gente que só se considera feliz por comparação. Gente que precisa do egoísmo quentinho de estar aqui dentro, protegidamente, e não lá fora – como as criaturas que já ou ainda trabalham, que ainda não chegaram em casa, que estão resfriadas debaixo do aguaceiro, que estão presas no engarrafamento, que são enfim mais azaradas que nós, pelo menos neste instante. OK, OK, eu exagero e estou espancando com culpas um velho aconchego poético, mas para que servem os amigos senão para atormentá-los com novos questionamentos? Eu podia estar matando, eu podia estar roubando, mas estou aqui passando na sua noite delicinha me perguntando se é crônico isso de tocarmos a vida melhor ao sabermos outros em pior situação. De nada.

Não sei se forço a barra numa relação esdrúxula, porém não pude deixar de lembrar que o contrário costuma se dar numa janela metafórica: legiões de seres aparentemente saudáveis e afortunados entram numa vibe deprê ao ficarem, em horas de Face e Whats, sob o chuvaréu de fotos de vida perfeita da amigalhada toda. A decoração de casamento que não pude fazer, o bebê que nasceu gorducho e suculento mostrando as alegrias que não terei, a defesa de doutorado que nunca celebrarei, o lanche opíparo que não fiz com 235 BFFs na confeitaria oito estrelas, a celebridade que não conheci, as fotos mara que não tirei dos Alpes Suíços que jamais visitei. Não é que tenhamos raiva (eu espero) do contentamento alheio, das conquistas que não nos incluem; no entanto não nos livramos do instinto (imagino) de nos cobrar iguais alcances, iguais disposições, iguais diplomas, como se houvéssemos ficado para trás na maratona de metas. Estamos de boas em nós mesmos – sofá, emprego, travesseiro, salário na conta, chocolate quente, barulhinho de chuva –, mas é só ombrearmos com o coleguinha que vemos não ter crescido o suficiente, que a altura dele ainda é maior. Maior para quê? Ignoro. Desconheço o que raios disputamos afinal; o fato é que somos limitados e incompetentes, nesse infernal pódio humano que nos põe também infelizes por comparação.

Não faço ideia se Rousseau pensou também nisso quando disse que a sociedade corrompe o homem. Juro, entretanto, que consigo entender o movimento emocional de quem, enfastiado da pocket olimpíada que vivemos, decidiu virar ermitão na caverna mais acessível – ou abandonar as redes sociais, o que dá quasezinho no mesmo. Tenho 87% de certeza de que não se trata realmente de desprezar os outros; trata-se, antes, de levá-los em conta excessiva, ou de desprezar quem nós nos tornamos em prol do encaixe (motivado ou imaginário) nos outros. Não há sanidade que persista nesse clipe de Carruagens de fogo que protagonizamos internamente. É, talvez, uma das poucas realizações que me fariam maratonizar um bocadinho a rotina, um graal à altura da câimbra: descobrir a cura de nossa comparite, resgatar-nos de nossa compulsão de colar na prova diária, criar a pílula que nos limpe do excesso de relativização existencial, que nos traga uma paz de absolutice – com ou sem chuva, com ou sem Alpes Suíços lá fora. Paz porque sim, pelo que temos e somos, não porque fizemos mais ou fomos antes. A paz jeitosa e firme que não olha pela janela.

Nosso estado (de graça) somos nós.

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