sexta-feira, 14 de abril de 2017

Metade arrancada de mim

Ser brasileiro com uma centelha de cérebro e coração é como ter um filho, um pai, um irmão, um amor drogado.

Que mescla infernal de ternura e impotência, de depressão e raiva, de incondicionalidade no martírio e de vontade do exílio. Já estivemos na fase de corujá-lo perfeito – oh seus verdes! suas flores! seus azuis! –, de adorá-lo em seu sorriso e generosidade; orgulhosa, bobamente. Tanto mais fundo feriu nossa queda do precipício, tanto mais longamente choramos a ingratidão inesperada, tanto mais nos flechou a vergonha, a traição: o ser-idolatrado-salve-salve tem uma recorrência de covardia, é o lindão machista e ególatra com esqueletos no armário, é o sedutor que nos explora e rouba, que nos mente e distrai, que é violentamente abusivo e nos faz rodar e esquecer na gafieira. Promete, promete, mas mora sempre no futuro; e um tantinho só que melhore já é bastante para o puxarem aos antigos vícios, ao passado imundo. Nós o amamos com amor duro, atento, nunca mais encegueirado. Eles, os que arrastam para o pântano, fingem amá-lo com músicas e bandeiras, mimá-lo com elogios e confetes, para melhor o possuírem e isolarem. A sereia canta e ele vai; cada um de nós, mater dolorosa, sai à rua para resgatá-lo nos becos e apanha, apanha, apanha. Gritamos e nos dizem histéricos. Deixe que ele siga! Deixe que ele cresça!

Brasil, nosso amor bandido, nosso quinhão de dor inevitável, nosso enfant terrible que temos gana de abandonar num cesto mas que cresceu em nosso ventre, nossa criança insuportável que não nos permitem educar e que não podemos largar, nessa mistura de afeto, resignação, destino e responsabilidade: Brasil, nosso Jardim das Oliveiras, nosso Gólgota. Brasil, nosso Kevin – psicopata de estimação sobre o qual precisamos falar, criatura isenta de empatia por ter sido entregue a uma indiferença defeituosa. Brasil, filho querido que não conseguimos abordar, belezinha com potencial da qual não nos dão a guarda, terra fútil que não quer estudar para ser séria, entezinho esquivo e lindo que fazemos tudo para arrancar das más companhias. Meu Deus, que parto! que história! Como é amargurante ver que o filho dos outros cresce, aprende, não cai mais em esparrela, e o nosso assim – imaturo, burrinho! E no entanto não é o filho dos outros que amamos, não foi o que nos coube em sorte, não é com ele que rola pertencimento. Choramos, rezamos, damos escândalo na rua, jogamos verdades na cara, mas ele nem: somos os chatos, os implicantes, mal parecemos brasileiros. Nosso coração rasgado. Exausto. Pronto para desistir, sumir no mundo, voltar para terras de onde jamais viemos, porque somos daqui e nunca tivemos outra.

Que amor sangrento o nosso! aquele tão unilateral, tão desapontado, tão espancado, tão farto de tentar que quase deseja (com vergonha) a morte de um ou de outro. Aquele amor que é principalmente dever, que já pouco tem propriamente de ternura e que invoca, com alívio, o dilúvio universal. Deus, que tristeza, que úlcera, que areia movediça entre fé e desespero, entre a agonia dum poeta romântico e a teimosia de Santa Mônica. Como trazer ao abraço o cinismo que nos renega? Como buscar da cracolândia moral quem ri, chafurda na própria recaída?

Brasil: nossa nacionalidade não correspondida.

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