terça-feira, 4 de abril de 2017

Somos nós

Acho tristemente engraçado quando um aluno falta à aula e cinco dias depois, durante o amofinante processo em que saio distribuindo vistos nos deveres, a criatura me olha com o maior ar de perseguição e sofrimento que Deus lhe concedeu e solta: professora, não fiz, NINGUÉM me disse que tinha trabalho, NINGUÉM quis me dar o exercício. Fuzilo de volta, oscilando entre o riso e o ímpeto de defenestração: vem cá, monstrinho(a), por acaso são OS OUTROS que devem correr atrás de você para implorar-lhe a honra de fornecer a tarefa? é interesse DELES, e não seu, providenciar que você se informe direitinhamente? e entre 458.974 colegas de turma, não houve UMA alma minimamente generosa que lhe emprestasse o caderno para cópia – ou será que mal e mal abordaste UM ser humanito mais indiferente que torcedor do Nepal em final de Copa do Mundo? Duas ou três gaguejadas, vinte e sete sorrisos amarelos e o Seu Coisildo (ou Dona Coisilda) faz cara de quem não vai admitir nem morto(a), mas sabe perfeitamente que deu mole. Só faltava essa agora: em tempos de terceirizite aguda, até responsabilidade de sanar a ausência se terceiriza. Não tarda nada e pessoalzinho por aí vai mandar dublê pra formatura.

Lembrei essas criaturas ensaboadas e terceirizantes por ter esbarrado com um trecho de Goethe – creio que das Afinidades eletivas – não diretamente relacionado, mas de espírito parente: “Não conhecemos as pessoas quando elas se dirigem a nós; somos nós que temos de nos dirigir a elas para saber como são”. Claro, nos dirigir ao coleguinha para buscar o dever que nos cabe não é nos dirigir ao coleguinha porque nos cabe o dever de buscá-lo; há um desnível de objetivos e maturidades. Mas há representatividade no desnível. Desde crianças, trabalhamos com o fofo comodismo do venha-a-nós-o-vosso-reino: chegue espontâneo o leite, a fralda, a cadeira, o médico, o bolo, a roupa, a boneca. Porque precisamos, porque queremos, o mundo se desenha. E no entanto o mundo também nos cresce, nos estica, e de tanto dar se pede – e logo se exige – compreendido; cobra juros dos primeiros anos de mamada passiva. Nossa tranquilidade egoísta vira um susto: como assim tenho que dividir? como assim tenho que oferecer um help, ceder lugar, doar tempo, ouvir problema sem despejar os meus? A realidade (constantemente) nos desorganiza e nos chuta da preguiça absolutista que embalou o berço. Hora de acordar, pequeno, a humanidade não tem o dia todo.

Até a morte permanecemos descobrindo: sim, é com a gente mesmo, fora do berço a responsabilidade é nossa. Somos nós que, querendo amar, estendemos a empatia ao universo alheio e o vamos resgatar do fundo de seu absolutismo personalizado, senão ninguém anda, nada muda, ficamos mudos e carentes dormindo cada qual em sua torre ou concha, à espera do beijo acordador. Somos nós que obrigamos o outro a falar do que o asfixia, como quem dá um safanão no diafragma do engasgado, em vez de placidamente aguardar que o indivíduo já roxo dessufoque em seu próprio ritmo. Somos nós que vamos acenar a bandeirinha branca do pós-discussão, em lugar de dormirmos numa Razão dura, seca e desabitada – onde o outro lado também dorme, porque as duas mulas preferem se amargurar com a coluna estropiada a compartilhar uma ternura macia. Somos nós que viajamos ao outro, até porque aquele que viaja é justamente o mais livre, o mais safo, o mais sonhador, o mais buscador, o mais inconformado. De nadíssima serve a curiosidade que não escarafuncha, a indignação que não se mexe, o amor que suspira de casa, a amizade que não interrompe o naufrágio, a razão que fica sozinha no barco e não joga a boia. Sem irmos nós a eles, o que somos? tão bebês quanto, ou (se temos pernas mais fortes) mais bebês do que eles. Se temos voz e não dizemos, se temos braço e não aninhamos, se vemos o desastre e não impedimos, que raio de utilidade damos ao tremendo vácuo, ao silêncio ensurdecedor que nos sobra e se segue à tsunami?

É sempre a nós, se fortes, que cabe o primeiro passo. Alguém neste mundo pré-escolar tem de ser o adulto da relação. 

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