quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Ilha do tesouro

Adele declarou: vai parar por quatro ou cinco anos e se dedicar à vida pessoal. Especificamente, amorosa. Escândalo. Bafão no Twitter. Como é que uma mulher – de sucesso! –, na segunda década do século XXI, me vira e diz que vai mandar a carreira pastar pra ficar namorando? “Agora terei mais tempo para (...) fazer um disco alegre”, explicou a estrela com candura. O anterior foi triste, triste, reflexo de uma separação; é preciso beber insistentemente em fonte colorida para que o próximo saia banhado de arco-íris. Então tá. O mundo resmungou alguma coisa feminista entredentes, frustrado e amarguinho. Eu – morri foi de inveja.

Sei que há moços e moçoilas tão apegadíssimos ao trabalho que não se reconhecem gente sem sua lufa-lufa profissional, seus MBAs colecionados, seus prêmios ganhos, sua prateleira de troféus, seu cartão de ponto. Respeito. Cada um enterra o baú de joias na ilha que bem entende. Eu, porém, estou com Adele e não abro nem com pé de cabra: pararia tudo que é expediente para cuidar da vida. Da casa. Do marido. De todo esse pequenino universo que gravita de dentro para o entorno de nós, e ao qual não damos a devida atenção porque permanecemos muito ocupados com êxitos publicáveis em revista.

Trabalho pode ser prazer ou contingência, mas o caso de Adele mostra que não importa. Está no primeiro grupo, a cantora; eu estou no segundo; e ambas temos o exato sentimento de usurpação. Há, sim, que se ter uma atividade produtiva (não vivemos num mundo onde corre leite e mel). Só não há – ou é um erro haver – necessidade de que ela engula nosso tempo de ser gente. Ser gente demora. Para a gente se construir, tem de colocar tijolinho de leitura, muito andaime de convívio, muita argamassa de família, muita tinta de arte (desejável) para dar acabamento. Fora o canteiro espiritual a ser regado para responder com perfumes, a prataria cívica a ser polida para brilhar cidadanias; fora o amor – o amor! – que descasca de velho se não levar reboco. Amar demora mais ainda.

E, no entanto, a gente vira a noite trabalhando no projeto ou atualizando o blog; sai cedo, volta tarde, encontra no meio do caminho, segundos apressados entre um trampo e o seguinte – feitiços de Áquila. Não se envolve, se esbarra. Falta o cuidado longo de deixar bilhete, de adivinhar o gosto, a preferência de hoje; falta o tempo essencial da ternura supérflua, do ataque inesperado, incontido, ilimitado. Falta a oportunidade de curtir a importância sem ser nas férias. No meio de tanta sobrevivência exasperada, falta chance de existir.

Papai Noel, me dê um ano – uma vida sabática. Para regar a rosa, a única, o meu centro de planetinha. O tesouro que os olhos veem e o coração sente, todo lindamente óbvio, muito embora soterrado pelas camadas de serviço que pesam sem explicação.

5 comentários:

Carolina Lima disse...

INCRÍVEL! Amei as menções de Adele. Quem observar toda a história amorosa dela conclui que cantar é bem melhor que lavar pratos pro marido!!
*-*

Pamela Kenne disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pamela Kenne disse...

Você escreve crônicas para uma revista/jornal? Se não, deveria.

Tem muito talento e criatividade aí. Em outros textos havia neologismos, que eu vi. Senti até inveja.
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Sobre a Adele, emprego, vida, etc. etc., eu concordo contigo. Apesar de gostar do trabalho na cantora, entendo que ela tenha que viver um pouquinho além do profissional, é admirável. A gente tem de saber a hora de mudar o rumo/os planos, dar uma pausa e viver um pouco. A vida exige essas da gente, às vezes. E se fugirmos da vida em si para viver do trabalho - sem pausa, sem mudar, sem olhar pro lado - aí não se vive em toda essência da vida.

Marco disse...

ela já ganhou milhões estão não precisa se preocupar com a carreira, já ta com a vida ganha mesmo

http://rocknrollpost.blogspot.com/

Michelly Melo disse...

Eu me apaixonei pelo seu texto e pelo Blog! Um beijo