Assisti a Precisamos falar sobre o Kevin, numa tentativa de me regenerar por não ter lido o romance tão elogiado pela Martha. Assisti já sabendo que iria sair destruída. Não me enganei. Por mais que tenhamos um interesse mórbido em histórias de psicopatas, é horrivelmente diferente ver Hannibal Lecter comendo miolos e o garoto do vizinho olhando com repulsa para a irmã caçula. Não me aflige ver Hannibal Lecter comendo miolos; pode nos dar um ou outro argh! nas imediações do estômago, mas nenhum soco de desesperança bem na meiuca. Hannibals são exageros, hipérboles, anomalias de cinema. O horror, mesmo, se enfia dentro do possível. Mora no provável. No conhecido. Em todos os sentidos, no familiar. Mora na “experiência” que seu sobrinho fez cortando o rabo do gato, na falsidade assustadora com que seu primo (um bully dos infernos) chora como pombinha quando os pais estão espiando. Mora no olhar petrificado, indiferente do seu filho.
A questão mais incômoda de Precisamos falar..., porém, a meu ver não está na psicopatia embrionária, no monstro ganhando corpo no quarto em frente. Está na raiva irracional dos não psicopatas, os que não nasceram desprovidos de moral e senso e, ainda assim – pela preguiça de verbalizar –, rebaixam-se ao nível dessas aberrações. Certo, Kevin é de natureza terrorista, um assassino; entretanto, na impossibilidade de puni-lo amplamente por seus atos, a cidade concentra na mãe do garoto (Eva, interpretada por Tilda Swinton – so-ber-ba) sua vingança irrazoável. Eva é a primeira, segunda e última das vítimas. A maior. Atormentada desde a gravidez depressiva, desde a infância sinistra da criaturinha, desde a solidão com que observava a tempestade se formando e não achava eco no marido babão. Desde o momento em que se tornou foco silencioso das crueldades do filho. Até o ponto do desgosto de se ver inútil para mudá-lo, inútil para proteger dele a caçulinha. Até o ponto da solidão, sim, oficial; a mais extrema.
Pois é este ser já tão chicoteado que os outros pais (e não pais) pegam para Cristo. Chutam cachorro morto. Xingam e esbofeteiam na rua, castigam com olhares de nojo emudecido, picham-lhe a casa de vermelho, quebram-lhe os ovos no mercado. Eva, a mais absurdamente traída, é o Judas, o boi de piranha. Por quê? Porque ninguém fala. Ninguém sabe falar. Ninguém quer falar que ali há uma mãe como tantas, como todas: incapaz de prever exatamente até onde seus receios estão corretos. Ninguém admite desconhecer o que ela possa ter feito para impedir a tragédia. Ninguém confessa a própria chance de ter, também, um criminoso dormindo em casa. Ninguém põe em diálogo – não em urros, não em agressões, mas em diálogo – sua orfandade emocional, sua empatia materna, seu desalento social, seu trauma irreparável, sua análise consciente, seu pânico definitivo. Colocar em diálogo é pensar sobre. Pensar sobre é desafiar o tabu. Desafiar o tabu do “herdeiro de maldade” é, no caso, vencer a injustiça, quebrar o ciclo de violência, cortar na raiz um ódio que nosso egoísmo infantil (mudo, surdo, analfabeto) perpetua.
Seja do que for, precisamos falar. E quando ainda não estivermos prontos para nos botar em língua de gente, precisamos não falar. Não falar com gatilho apertado e arame farpado na voz. Precisamos só falar quando a palavra for instrumento que amenize e não escarafunche a infecção do mundo.
E que o silêncio antes nos mate, se não pudermos ser melhores do que ele.
A questão mais incômoda de Precisamos falar..., porém, a meu ver não está na psicopatia embrionária, no monstro ganhando corpo no quarto em frente. Está na raiva irracional dos não psicopatas, os que não nasceram desprovidos de moral e senso e, ainda assim – pela preguiça de verbalizar –, rebaixam-se ao nível dessas aberrações. Certo, Kevin é de natureza terrorista, um assassino; entretanto, na impossibilidade de puni-lo amplamente por seus atos, a cidade concentra na mãe do garoto (Eva, interpretada por Tilda Swinton – so-ber-ba) sua vingança irrazoável. Eva é a primeira, segunda e última das vítimas. A maior. Atormentada desde a gravidez depressiva, desde a infância sinistra da criaturinha, desde a solidão com que observava a tempestade se formando e não achava eco no marido babão. Desde o momento em que se tornou foco silencioso das crueldades do filho. Até o ponto do desgosto de se ver inútil para mudá-lo, inútil para proteger dele a caçulinha. Até o ponto da solidão, sim, oficial; a mais extrema.
Pois é este ser já tão chicoteado que os outros pais (e não pais) pegam para Cristo. Chutam cachorro morto. Xingam e esbofeteiam na rua, castigam com olhares de nojo emudecido, picham-lhe a casa de vermelho, quebram-lhe os ovos no mercado. Eva, a mais absurdamente traída, é o Judas, o boi de piranha. Por quê? Porque ninguém fala. Ninguém sabe falar. Ninguém quer falar que ali há uma mãe como tantas, como todas: incapaz de prever exatamente até onde seus receios estão corretos. Ninguém admite desconhecer o que ela possa ter feito para impedir a tragédia. Ninguém confessa a própria chance de ter, também, um criminoso dormindo em casa. Ninguém põe em diálogo – não em urros, não em agressões, mas em diálogo – sua orfandade emocional, sua empatia materna, seu desalento social, seu trauma irreparável, sua análise consciente, seu pânico definitivo. Colocar em diálogo é pensar sobre. Pensar sobre é desafiar o tabu. Desafiar o tabu do “herdeiro de maldade” é, no caso, vencer a injustiça, quebrar o ciclo de violência, cortar na raiz um ódio que nosso egoísmo infantil (mudo, surdo, analfabeto) perpetua.
Seja do que for, precisamos falar. E quando ainda não estivermos prontos para nos botar em língua de gente, precisamos não falar. Não falar com gatilho apertado e arame farpado na voz. Precisamos só falar quando a palavra for instrumento que amenize e não escarafunche a infecção do mundo.
E que o silêncio antes nos mate, se não pudermos ser melhores do que ele.
3 comentários:
Uau, que post forte. Você escreve forte, mas devo considerar que esse filme realmente foi um daqueles que põe nossas cabeças a mil com reflexões... Não assisti, mas certamente, depois dessa "resenha" considero que seja um que valha a pena, embora deva ter um conteúdo certamente pesado, e que certamente vai me deixar tão pensativa, frustrada e revoltada como deixou a você.
http://umamadrugadaqualquer.wordpress.com/
Nossa esse filme parece ser bem forte mesmo!despertou meu interesse...
tb fiquei interessada no filme adorei seu blog muito bom mesmo ja estou te seguindo por favor me segue tb http://cabelosescuros.blogspot.com/
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