domingo, 24 de março de 2013

Chegar de costas

“Sabe quando a pessoa já chega de costas? Pois é. Eu hoje aqui.” Assim meio-murmurou uma colega de trabalho, visivelmente exaustíssima. Eu nunca tinha ouvido a expressão, mas o contexto e as olheiras da pronunciante não tiveram dificuldade de esclarecê-la: chegar de costas é já aportar onde quer que seja em posição de ir embora, entrar com o espírito de ré, embicado para a saída. Estar e não ter vindo. Vir e não ser vindo. Vestir o dia, tarde ou noite com pijama por baixo.

Me pré-defendo ao esclarecer que não tem a ver, em cinema-teatro-palestra, com gostar de sentar na ponta. Sempre sento na ponta, por motivos de praticidade explícita: cada vez mais a distância entre fileiras é de 0,7 centímetro, e me amofino horrores de amofinar pessoas na passagem; mais: quero garantir meu maior conforto em quaisquer emergências banheiras. O providencial lugarzito na ponta, longe de me pôr na defensiva, dá-me tranquilidade de entrega. Com a fácil evasão assegurada, não há preocupações azedando a relação entre mim e o conteúdo que enche a sala. Não quero, mas posso sair. Diferentíssimo de a pessoa chegar do avesso, querendo e não podendo girar o volante, toda trabalhada na amargura da presença obrigatória.

Aluno, por exemplo, é uma peste para chegar de costas. Vem normalmente tresnoitado – ainda que às duas da tarde –, de cara amarrada com nó górdio, de olhos mal-amados ou descrentes, ou ambos. Vem se arrastando, vem se liquefazendo pelas paredes, vem se lagartixando nas portas e derretendo pelas cadeiras, órfão de consciência e interesse – mesmo aquele interesse de artifício, puramente profissional, que se reserva às coisas não prazerosas mas úteis. É certo que eu não gostava de estudar, porém o ter de me gasolinava suficientemente. Acabou. Quase acabou aquela espécie de aluno que não considerava sua mera presença, mole e alheia, como favor inestimável ao professor. O que hoje “comparece” às aulas são 85% de walking deads restritos a dúvidas viscerais, edificantes: “Posso ir ao banheiro?”, “Quando é o próximo feriado?”, “Vai liberar mais cedo hoje, fessora?”. Monumentos erguidos ao mais nacional dos descasos, à mais patriótica das ineficiências.

Também me dá vergonha quando vejo um desses casais modernitchos que se esbarram no meio do dia, mas não se estão: um com seu tablet para um lado, pinto no lixo, mostrando ao outro os últimos gadgets virtuais adicionados; o outro meio atento à exibição, meio checando o Face no celular, risonho e comunicativo como se ali estivessem os 3.047 amigos todos; os dois sem ser dois, sendo antes multidão de solitários, isentos de soma verdadeira que demanda mais que o cruzar fracionado de olhos. Por sinal, que se passa neste mundo que ando frequentando para virar tribo pós-apocalíptica, cada qual zumbizado por sua matrix de bolso? Que raios aconteceu de tão ligeiro, de tão vicioso há coisa de cinco ou seis anos, a ponto de nos tornar exército de fantasmas fisgados pela realidade que não é? Que nos aconteceu a ponto de desmarcarmos futuros, de ignorarmos presentes, de renunciarmos à vida com oxigênio – com a dor e a delícia do oxigênio – em benefício de telinhas brilhantes, dessas telinhas que GPSsam 26 horas por dia onde estamos só para dedurarem onde gostaríamos de não estar?   

Degeneramos numa raça de impacientes que almoça mastigando sem gosto, fissurada no barulhito de “mensagem! mensagem!”. Involuímos para um Homo aborrecidus que espia o horário na telinha brilhante após 14 minutos de filme. Regredimos à posição fetal de uma espécie caramuja, o universo sou eu; tudo (para além de minha urgência de nada) gera insuperável enfado, rebeldia sem causa de desenfronhar-me, vontade sem razão de descompromissar-me. Right now. Pra quê? pra ir o mais rápido possível entediar-me em outro lugar. Há tantos nos quais compartilhar minha ausência! 

Existir também é facultativo. Exige preencher de escolha o acaso da aparência.

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