sábado, 23 de março de 2013

La vie en rose

Escrevendo sobre o filme O náufrago no quase homônimo texto “A náufraga”, Marina Colasanti fala quão diferente seria a história se, em vez de um Tom Hanks, a ilha deserta recebesse uma nossa colega de gênero. Não haveria morada “na gruta cinzenta e inóspita”: o braço feminino depressinha trançava uma casa habitável, nem que fosse apenas para as noites livres de chuva. Não se comeria com as mãos, e sim com palitos japoneses cortados com a lâmina dos patins. Panelas e pratos seriam assados da argila disponível; algum sal, obtido do mar domesticado; mesmo um leite de coco não deixaria de combater “o tédio alimentar”da zona sem tempero. Mulher também não ia se dar por contente com um incorpóreo Wilson. Segundo a autora, teria parido uma boneca com braços e perninhas – uma sua igual de cara, corpo, madeixa e modelito. Que isso de gestar pequenos humanos é bem de seu departamento.

Marina arremata: “Para um homem, vencer a natureza é afirmar-se como homem. E Tom vence a natureza duplamente, continuando vivo e escapando da ilha. Uma mulher vence a natureza de outro modo, organizando-a. [...] Uma mulher não teria talvez a força física para escapar da ilha. Mas quando alguém finalmente lá chegasse, já não encontraria uma ilha selvagem”.

Discutir como com uma tal Marina? That’s it: mulher é o hotel humano, é a civilizadora pelo lado do conforto e não da beligerância. É a aconchegadora; a amaciadora. Aliás, fujo ao caixote: isso não é coisa intransferivelmente de mulher, mas do feminino – o feminino, o aproximador, o fazedor de uniões, o amestrador de violências, o eros que vive nas mulheres e nos homens. O espírito não desbravador, e sim azulejador; não bandeirante, não cruzado, não guerreiro da Távola Redonda, não soldado do Vietnã ou do Iraque, e sim asfaltador e hospedeiro, decorador e carteiro, faxineiro e agrupador. O masculino (que vive nos homens e nas mulheres) compete e consegue, força e se força, possui e evolui e domina no macro, no grande, no grosso, no trator que aplaina sem fazer caso do detalhe. O feminino vai lá e salva a planta miudinha do trator. O feminino põe quadros e almofadas, senta o art toy na prateleira, enche a casa de livros, compra guardanapos (coloridos). Compra acessórios de cozinha inexpugnáveis. O feminino se pergunta por que chora a criança desconhecida, pergunta à criança desconhecida por que chora. O feminino adivinha o outro pela cara, sabe o que significa o sorrir para a esquerda ou para a direita, volta na loja porque se esqueceu de desejar feliz Páscoa, entra no ônibus dando bom-dia. O feminino de mulheres e de homens reconhece claramente a diferença de diet para light, de alumínio para inox, de xampu para condicionador, do sucrilho vermelho para o azul. O masculino aproxima o longe de telescópio; o feminino aproxima o perto de lupa. O masculino tem roda, o feminino tem asa.

Ar e arte do feminino é ser endereço para quem volta pra casa.

Um comentário:

Tarlei disse...

Que lindo texto, Fernanda! Está ombro a ombro com o lindo texto-fonte da Marina (eu o li há não muito tempo). Resta subscrever: "La vie en close" só é mesmo possível por artes do feminino.
Abs,
Tarlei