terça-feira, 19 de março de 2013

Depois da felicidade

Sim, vamos abraçar a cafonice de dizer que nascemos todos para ela. Para a felicidade. Isso é fato. O que me intriga e preocupa é a incapacidade crônica de alguns sobreviverem à plenitude. Quiseram muito, muito uma certa coisa (“coisa” no sentido geral, pois não ponho felicidades legítimas na conta de cismas materiais, a não ser que simbólicas: dar casa própria à mãe, por exemplo), quiseram algo furiosamente e ele veio, embalado numa fase radiosa. Só que a lua de mel com a conquista radiosa – você se casou, se formou, teve um filho, ganhou na loteria, deu um chute no emprego sugante, viajou finalmente para Paris, publicou o livro, foi aceito na ABL, papou o Jabuti ou qualquer desejado etcétera – não tem fôlego para inebriar pela eternidade nem uma pessoa naturalmente eufórica. Que dirá a de impaciência depressiva. Querer é preciso; mas há que se estar coraçãomente preparado para a resiliência do atingir.

Fosse físico como o sexo e o vício (em chocolate, pois me oponho aos outros), nenhum problema. O auge vem hormonalmente e rápido, e novas necessidades brotarão espontâneas na mesma proporção, sem que o motor pare de se retroalimentar – e se parar, parou; o corpo escolhe seus tempos e carências, apenas não podendo desistir da água e dos sólidos básicos que o sustentam. Mas com os prazeres sem matéria, com a vontade imovível por breve reação orgânica, o buraco é mais embaixo. Como manter querente, anelante, o coração que já declarou ter vivido o dia mais feliz da vida? com que facilidade esse vazio essencial se reconstruirá? para onde apontará? Como evitar que um peito assim, na ânsia de continuar batendo e existindo na mesma adrenalina da busca anterior, faça seu palácio em ruínas somente por suspeitar a única felicidade de erguê-lo de novo?

Porque os há dessa maneira – aqueles que empacam em seu dia mais feliz e, na impossibilidade de reinterpretá-lo over and over, como feitiço de marmota, resolvem brincar de armá-lo e desarmá-lo. São os que inconscientemente fracassam de modo retumbante logo após o sucesso mais balofo: ganham o Oscar, e no entanto emendam uma série de filmes bagulhescos; explodem como marca e empresa, e em seguida chafurdam em investimentos temerários; amam e reamam e triamam a pessoa das pessoas e, repetidamente, traem-na e perdem-na para mais e mais arrastar-se na reconquista. São os adictos da felicidade conhecida, palpável, conquanto insossegável e cíclica. Dizem-nos inquietos e de baixa autoestima: acredito. Os de baixa autoestima em que mais poderão crer, senão na própria incapacidade de gerar felicidades novinhas? Têm medo, talvez, de gastar-se na procura; de não carregarem suprimentos bastantes para, mantendo intacta a satisfação atual, colonizarem ainda outra. Pena. Tantos arco-íris deixam de ser expostos por causa desses corações de uma nota só!

Qual a solução para essa alegria ruminante, que se engole e se vomita até o arrependimento? Manter-se em estado perene de felicidade, sem grandes contrastes que gerem o pânico da busca. É um treino. Tântrico. Começa por não se projetar o Grande Evento, a condição sine qua non que coloca todos os sentidos em alerta para a Felicidade suprema. Há objetivos, sim; as pernas estão perdidas sem objetivos; mas há passeios antes dos destinos, há atalhos e flores, há museus e feriados, porque o espírito é enorme demais para saciar-se só de coisas enormes – e os vãos, com que se preencheriam? Há a chance (quase garantia) de que o espírito isento de sortes enormes, oceânicas, ainda assim consiga preencher-se com as gotas cá e lá recolhidas diligentemente, numa atenção incansável – quando é improvável e mesmo impossível que um esperador de Eventos os tenha em número suficiente, durante a vida, para cobrir todos e quaisquer vazios. Somos detalhados, específicos, temos infinitas carências também de pequeno e médio porte. Inútil esperar que só dependamos das conquistas radiosas e então não nos reste fome. Inútil supor que um tempo depois do Grande Evento não nos vá sobrar apenas, ecoando no oco d’alma, um “foi bom para você?”.

Foi, não – respondem os espertos. Eternamente continua sendo.

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