terça-feira, 5 de março de 2013

Esplendor e sepultura



Li num artigo de há bastante tempo que, a cada duas semanas, uma língua desaparece da Terra. Das cerca de 6.000 que hoje existem no planeta, a previsão é de que 90% estejam extintinhas em 2100, ou seja: 5.500 idiomas devem ir para o beleléu ainda neste século. Quase o mesmo que dizer que de quinze em quinze dias, pelos próximos cem anos, alguém acordará literalmente falando sozinho.

Fico pensando nesse último usuário nativo de qualquer língua, chocada com a imagem de horror kafkiano. Todos os demais interlocutores morreram, nenhum nasceu; ninguém a quem se tenha o sagrado dever de transmitir uma gramática do pensamento. Fico igualmente matutando, com uns pequenos terrores, se alguns de nós não vamos fatalmente ser engolfados nesse bolo. Não que o português esteja ameaçado; é uma das vinte línguas mais praticadas no mundo – se não me engano, uma das dez –, o que lhe dá relativa imunidade à extinção. Mas quem gosta de ler repare: certos portugueses têm andado mais e mais extintos. Aquelas formas que (agora nem) tantos aprenderam no berço, no ditado da professorinha de primeira série, no colo dona-bentíssimo de Monteiro Lobato, nos braços saborosíssimos de Alencar e Machado? vão-se escoando.Vão-se dissolvendo aqueles portugueses em que “entendera” e “entenderá”, “cantáreis” e “cantareis” eram coisas de tempo distinto, e não um único verbo sobre o qual despencou um acento de percurso. Aqueles portugueses em que “com certeza” era expressão separada sem titubeio, em que “mas” e “mais” eram questão manjadíssima pelos bichinhos do primário (quanto mais pelos barbudos do doutorado), em que não tanto fazia o jeito como nos desse na telha de grafar “tigela”, “chuchu” e “exceção”. Aqueles portugueses em que as segundas pessoas do discurso escorriam da boca conjugadinhas feito mel (OK, ninguém há de falar século-dezenovemente pela rua; mas e suspirar, não posso?). Aqueles portugueses em que havia uma reverência limpinha, um respeito amoroso à melhor distribuição do período, como quem escrevia frases com sachê: palavras cuidadas, escolhidas, passadas, dobraditas no capricho da gaveta. Não o português amarfanhado em que se pode tudo. Não o português terra de Marlboro, em que se assenta e põe as botas para cima sem registro de nada.

Por favor: não sou purista – e quem me lê com um mínimo de atenção gramatical me sabe não purista. Meto uns oblíquos onde (a Dona Norma diz que) não devo, atravesso sufixações, misturo um e outro pronome quando me parece adequada uma carinhosa mixórdia. Também não sou das tais que embirram com o internetês; uso emoticons adoidado e discordo de que um ser humano esteja condenado a desaprender um dialeto ao aprender outro (assim não fosse, minha língua natal tinha virado fóssil nas primeiras aulas do Brasas). Mas note: na maior parte do tempo, I hope, eu “erro” consciente. Erro sem que, por vício, o erro me impeça de “acertar” em outra chance e mais oficial. O que mais me amofina é que não se andam aprendendo portugueses suficientes para equivocar-se por escolha; absorve-se o basiquete necessário a ser minimamente compreendido e usa-se o mesmo português cambaleante para o mail, a declaração de amores, a redação de vestibular. Não se bebe um leque de idiomas pátrios, desde o dândi oitocentista até o baixo-burguês-informal, desde o literário até o barzeiro, do internauta ao executivo: cumpre-se uma meia dúzia de requisitos linguísticos e está bem, está bom, é o que basta. Não se verga o foco, não se amplia o alcance. O falante não se interessa – se instrumentaliza.

Longa vida, por isso, aos que ainda chamam o português de flor do Lácio. Aos que completam qualquer “Ora!” com um “direis”. Aos que comentam que o céu está plúmbeo. Aos que alternam “devido a”, “por causa de”, “em virtude de” para além do onipresente e modorrento “por conta de”. Aos que se esbaldam de rimas ricas e gozam com as preciosas. Aos que não se algemam à praga egípcia do empresariês, didatiquês e politicorretês. Aos que se apaixonam quando o pretê cita Drummond. Aos que se arrepiam de ternura quando flagram dedicatória de mais de meio século. Aos que abrem o Volp recorrentemente para checar o maldito hífen. Aos que sangram, aos que comem, aos que choram português. Salve, salve.

Virem patrimônio intombável os que querem a Flor tão mais bela quanto menos inculta.


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